Número de candidaturas coletivas propostas em eleições subiu de 98, entre 2016 e 2018, para 542 registros, entre 2020 e 2022
Valentina Fraiz
Definidos como um conjunto de pessoas que assumem uma única cadeira em câmaras de vereadores, assembleias legislativas ou no Congresso Nacional, os mandatos coletivos emergem como estratégia para ampliar a presença de grupos sub-representados na política brasileira, como mulheres (ver box) e pessoas negras. Pesquisa realizada pela cientista política Debora Rezende de Almeida, da Universidade de Brasília (UnB), revela que a quantidade de candidaturas coletivas e compartilhadas no país aumentou de duas, em eleições realizadas entre 1994 e 1998, para 542, em pleitos ocorridos de 2020 a 2022. Apesar do potencial de fomentar o desenvolvimento de cenários políticos mais diversos, o modelo ainda não é regulamentado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), esbarrando em desafios que colocam em xeque o seu pleno funcionamento.
Para investigar essa temática, Almeida realiza há três anos pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Como os mandatos coletivos são um fenômeno político recente, há ainda poucos estudos como o dela sendo desenvolvidos no país. Até o momento, a cientista política elaborou um banco de dados com informações sobre 319 candidaturas apresentadas em eleições municipais de 2020 e outras 218 postuladas em 2022, em pleitos para deputados estaduais e federais. Também entrevistou integrantes de 35 mandatos coletivos eleitos para diferentes cargos no Poder Legislativo. O levantamento indica, por exemplo, que nas eleições de 2020 e 2022, entre as candidaturas coletivas, mulheres brancas foram maioria dentre os postulantes ao cargo de vereador, em comparação aos homens brancos. Além disso, também entre candidaturas coletivas, o estudo mostra que o número de mulheres pretas para os cargos de deputado estadual, federal e vereador superou o de homens pretos (ver gráfico).
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Segundo Almeida, em países como Espanha, Colômbia e Argentina, iniciativas similares aos mandatos coletivos abarcam as chamadas candidaturas compartilhadas ou democráticas, que também existem no Brasil. Conforme a definição da pesquisadora, o modelo compartilhado, compreendido como um mecanismo de democracia participativa, teve sua primeira experiência no país proposta em 1994. Ele prevê que candidatos eleitos individualmente criem espaços e mecanismos de consulta à sociedade em processos de elaboração e votação de projetos de lei. Nessas situações, o parlamentar abre canais na internet ou organiza rodas de conversa com a população para conhecer o posicionamento dessas pessoas sobre determinados assuntos ou políticas públicas. “É um modelo diferente das candidaturas coletivas, formadas desde a campanha por um grupo de pessoas, chamadas de covereadoras ou codeputadas. Elas concorrem a uma mesma vaga no Poder Legislativo e se comprometem a exercer conjuntamente o mandato”, compara a cientista política. Para identificar quais candidaturas eram coletivas ou compartilhadas, Almeida analisou a base de dados do TSE, cruzando-a com informações disponíveis na internet sobre os programas de governo dos políticos e coletivos em questão. De acordo com a pesquisadora, há candidatos e grupos que não informam se a candidatura é coletiva ou compartilhada, de forma que o número total de propostas com essas características pode ser mais elevado do que aquele captado por seus estudos.
Por sua vez, a assistente social Luciana Lindenmeyer, que investiga candidaturas coletivas em pesquisa de doutorado no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), lembra que a legislação brasileira não permite o seu registro formal. A solução adotada é escolher um dos integrantes do grupo para fazer a inscrição individual da candidatura em seu nome. Lindenmeyer, que integra a Frente Nacional de Mandatas e Mandatos Coletivos, comenta que, até recentemente, o TSE proibia que a candidatura em questão se declarasse coletiva na composição de seu nome. “Em 2020, o Tribunal chegou a suspender algumas candidaturas que continham a palavra ‘coletivo’ em sua descrição, por considerar que elas confundiam os eleitores”, relata a pesquisadora. No entanto, essa regra mudou em 2021, quando o TSE passou a permitir a menção do coletivo na composição do nome da candidata ou do candidato oficial. Apesar da falta de reconhecimento pelo TSE, os mandatos coletivos costumam elaborar uma carta de compromisso para definir aspectos do vínculo entre o parlamentar oficialmente eleito e os coparlamentares.
“Antes de 2021, não era possível identificar se a candidatura era coletiva ou individual analisando apenas os registros do TSE”, comenta Almeida, da UnB. Conforme sua pesquisa, até 2018, a eleição de candidaturas compartilhadas, que totalizaram 28 naquele ano, predominou em relação às coletivas, que foram quatro. “Esse cenário se inverteu em 2020, na disputa municipal, quando o número de candidaturas nas duas modalidades aumentou e foram eleitos 29 mandatos coletivos e somente cinco compartilhados”, detalha a pesquisadora.
Considerando apenas o universo de candidaturas coletivas, elas subiram de 98, entre 2016 e 2018, para 542 registros, entre 2020 e 2022. Almeida identificou, ainda, que em 2022 foram propostas 218 candidaturas coletivas para os cargos de deputado estadual e federal, além de outras cinco para o Senado. “Foi a primeira vez que registramos tantas candidaturas para esses postos”, afirma. Segundo ela, esses avanços estão acontecendo por causa da atuação de grupos que se consideram sub-representados na política brasileira. “Como não encontram espaço em mecanismos tradicionais de partidos para disputar eleições, optam por formar candidaturas coletivas e somar capital político”, explica a pesquisadora. De acordo com ela, a democratização do país foi acompanhada por uma maior interação de movimentos sociais com o sistema político, por meio da ação de atores sociais em governos, a ocupação de cargos e a participação na formulação de políticas públicas. “O crescimento das candidaturas coletivas representa um dos desdobramentos desse cenário”, avalia.
Nas eleições de 2020, a pesquisa de Almeida identificou que as candidaturas coletivas se concentraram no Sudeste (52,4%). Outro dado levantado sinaliza o alto nível educacional dos membros desses grupos. Naquele ano, 28,7% do total de candidatos às eleições municipais tinha ensino superior completo ou incompleto. Já entre as candidaturas coletivas, 61% dos candidatos oficiais contavam com ensino superior completo. “O maior nível de formação superior dos postulantes a vereador em mandatos coletivos mostra que a qualificação não é suficiente para garantir sucesso eleitoral por meio de caminhos tradicionais do sistema político”, avalia a pesquisadora da UnB. As duas pautas mais defendidas por essas chapas foram os direitos de grupos sub-representados e as políticas sociais.
Valentina Fraiz
Em relação aos 34 mandatos coletivos eleitos às câmaras de vereadores em 2020, 23 deles tinham mulheres como candidatas oficiais. Do total de mandatos, em 19 casos o postulante oficial se autodeclarou como branco, em 10 como preto, em 4 como pardo e em 1 como amarelo. Almeida também mapeou o perfil de 106 integrantes das candidaturas coletivas eleitas naquele pleito. No levantamento, identificou que 67 eram mulheres e 39 homens, sendo que três declararam-se como mulheres (2) e homem transgênero (1). Dentre esse grupo, 39 pessoas se definiram como pretas e 16 como pardas, enquanto as brancas somaram 48. Duas delas se apresentaram como indígenas e uma como amarela.
Em seu doutorado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), defendido em 2022, o psicólogo José Fernando Andrade Costa, da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), na Bahia, estudou a experiência de alguns mandatos coletivos no Brasil. É o caso de um grupo de cinco pessoas escolhido em 2016 para atuar na Câmara Municipal de Alto Paraíso (GO), sendo que apenas um dos integrantes era responsável oficialmente pelo cargo, enquanto os outros atuaram como covereadores. Costa também analisou mandatos coletivos eleitos em 2018 para o Poder Legislativo estadual de São Paulo e Pernambuco. Do ponto de vista da atividade legislativa, o pesquisador destaca que o grupo paulista foi um dos que mais apresentaram projetos de lei. “Dentre os 94 deputados eleitos no estado, esse mandato ficou em 8º lugar na quantidade de projetos apresentados”, contabiliza Costa.
Por outro lado, o pesquisador também identificou nas experiências uma grande dificuldade para equalizar as pautas defendidas por cada um dos membros. “Observamos a ocorrência de disputas em relação a quais assuntos deveriam ser priorizados. Mesmo dentro dos partidos, há pessoas vinculadas a correntes de pensamento distintas, que podem divergir na hora de votar projetos de lei”, comenta Costa.
Outra característica dos mandatos coletivos, segundo o jurista Ricardo Alves Cavalheiro, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), é que eles podem atrair diferentes vertentes do espectro político. O pesquisador participou de um estudo em 2019, coordenado pela organização não governamental (ONG) Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, sediada em São Paulo, que identificou que 1% das candidaturas coletivas e compartilhadas formadas até aquele ano apresentava ideologia política de direita, 14% de centro-direita, 38% de centro, 33% de centro-esquerda e 14% de esquerda. Na perspectiva de Cavalheiro, os mandatos coletivos podem ser compreendidos como uma nova ferramenta de inovação democrática, como são os casos dos orçamentos participativos, por exemplo. Por meio desse mecanismo, os governantes criam meios para que a população possa decidir sobre quais áreas devem ser prioridade no orçamento público.
Em seu mestrado concluído em 2021 na Universidade Federal de Lavras (Ufla), em Minas Gerais, a jornalista Samara Aparecida Resende Avelar também estudou a atuação de mandatos coletivos. Seu foco foram as câmaras municipais de Belo Horizonte (MG) e Alto Paraíso (GO). De acordo com a pesquisadora, um dos pontos positivos da atuação desses coletivos abarcou a elaboração de instrumentos para se comunicar com as comunidades durante as votações e a elaboração de projetos de lei. Os mandatos coletivos criaram conselhos políticos, realizaram assembleias públicas e organizaram gabinetes itinerantes e reuniões pelos territórios, que eram abertas à participação popular. Nesse sentido, a pesquisadora relaciona o trabalho dos coletivos com o conceito de democracia deliberativa do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. “Para ele, a democracia também deve incorporar a sociedade em decisões sobre a regulação da vida coletiva, por meio de processos deliberativos. Habermas sustenta que, quanto mais espaço as pessoas têm para discutir demandas e expressar opiniões, maior legitimidade terão as leis e maior probabilidade de elas serem seguidas”, explica.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Entretanto, Avelar também constatou que, apesar da quantidade significativa de projetos de lei criados a partir do diálogo com as comunidades, poucos deles foram aprovados. O grupo de Belo Horizonte, por exemplo, propôs 25 projetos de lei, mas apenas um deles foi sancionado até o final de seu estudo, garantindo que mulheres vítimas de violência doméstica tenham acesso a um programa de moradia social da prefeitura. Por sua vez, em Alto Paraíso, o único projeto aprovado pelo grupo abarcou a compra de um equipamento pela concessionária de água para remover o ar de tubulações das casas, conquista que serviu a todos os cidadãos da cidade. “Apesar de os mandatos coletivos muitas vezes defenderem pautas relativas a direitos de grupos minoritários, apenas conseguiram aprovar projetos de lei que beneficiaram os habitantes dos municípios como um todo”, observa.
Almeida, da UnB, enfatiza que é preciso ter cautela em relação ao potencial democratizador desse formato de candidatura. “Ainda há muitas barreiras no sistema político e partidário à inclusão efetiva de grupos sub-representados”, pondera. De acordo com ela, o problema da falta de regulamentação faz com que a experiência política de mandatos coletivos varie muito conforme o município em questão. Diante da impossibilidade legal de todos os membros de um coletivo ocuparem o posto oficial de vereador, em cidades maiores como São Paulo, por exemplo, a solução encontrada por alguns grupos tem sido a nomeação de coparlamentares como assessores, para que consigam compartilhar funções e responsabilidades com o vereador oficialmente eleito. “Dessa forma, os covereadores conseguem ter uma atividade legislativa ativa, participando de plenárias, reuniões de comissões e frentes parlamentares. Eles recebem salários e podem se dedicar exclusivamente à atividade parlamentar”, explica Almeida. No entanto, como cidades de pequeno porte nem sempre dispõem de cargos de assessoria, o covereador não tem livre acesso às câmaras municipais e tampouco participação ativa em processos institucionais. “Conflitos internos podem surgir em razão dessa falta de amparo institucional”, afirma a cientista política.
Ao analisar a experiência de mandatos coletivos, Almeida observou que as iniciativas que reuniram pessoas de partidos distintos foram malsucedidas e grande parte dos mandatos desfeitos depois da eleição envolveu membros que se conheceram somente no momento de criar a candidatura coletiva. “Para funcionar, os integrantes dos mandatos coletivos precisam ter afinidade ideológica, pessoal e programática. Como tendência geral, os grupos mais bem-sucedidos foram aqueles que reuniram pessoas que já se conheciam antes das eleições”, aponta a pesquisadora, recordando que no pleito de 2020 foram eleitos 25 mandatos coletivos no país e sete deles se desfizeram logo no primeiro ano. Nessas situações, permaneceu à frente do mandato a pessoa eleita como candidato oficial, pois os demais membros da chapa não são reconhecidos pelo TSE como parlamentares. Além da falta de amparo legal e institucional, Almeida afirma que muitos partidos não apoiam as candidaturas coletivas por considerar o formato injusto. “A união do capital político de diferentes integrantes é uma vantagem das candidaturas coletivas, quando comparadas ao alcance de uma pessoa que disputa as eleições sozinha”, comenta.
Apesar das adversidades, no entanto, os pesquisadores ouvidos concordam que a experiência das candidaturas coletivas é positiva, porque permite chamar a atenção para o problema da falta de inclusão na política de determinados grupos da sociedade. Além disso, essas iniciativas constituem um caminho para aumentar a diversidade do ponto de vista simbólico, “na medida em que incentivam as pessoas a refletirem que a política deve ser coletiva e garantir a alternância de poder”, como destaca a antropóloga Carmela Zigoni, assessora política da ONG Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), sediada em Brasília. Já segundo Lindenmeyer, o primeiro passo para superar as barreiras que prejudicam o funcionamento desse formato de candidatura abarca a sua regulamentação, algo que pode acontecer a partir da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 379/2017 e dos projetos de lei (PL) nos 4.475/2020 e 4.724/2020, que atualmente tramitam no Congresso Nacional.
Entretanto, de acordo com os pesquisadores consultados para essa reportagem, a PEC é pouco detalhista e propõe a inserção de um parágrafo no artigo 14 da Constituição Federal, para permitir a existência de mandatos coletivos no âmbito do Poder Legislativo. Já os PL dispõem sobre o exercício coletivo do mandato no Poder Legislativo, definindo como deve ser a sua estrutura, e estabelecendo, por exemplo, que esses grupos precisam desenvolver um estatuto para regrar o seu funcionamento. Esse documento deve conter informações sobre os critérios de entrada na chapa, as regras para substituição de coparlamentares em caso de renúncia e a distribuição de funções e salários.
Disparidade de gênero nas eleições No pleito brasileiro de 2022, das 9,2 mil mulheres que se postularam a diferentes cargos, apenas 308 conseguiram se eleger
Com 105 milhões de mulheres, ou 51,5% da população, conforme o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil é um dos países com maior disparidade de gênero na política da América Latina. É o que aponta estudo de 2020 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da ONU Mulheres. A pesquisa analisou a situação de 11 nações, constatando que o Brasil figura entre os três países do continente com menor presença de mulheres em diferentes esferas do poder público.
No Brasil, as mulheres ocupavam 17% das vagas na Câmara dos Deputados e 12% das cadeiras no Senado em 2023. Além disso, somente Pernambuco e Rio Grande do Norte elegeram governadoras nas últimas eleições. Segundo o Censo das Prefeitas Brasileiras (2021-2024), realizado pela organização não governamental (ONG) Instituto Alziras, do Rio de Janeiro, as mulheres comandam 12% dos municípios, percentual que cai para 4% quando consideradas as mulheres negras. As prefeitas se concentram em cidades menores e governam para 9% da população brasileira. Além disso, dados do TSE mostram que, nas eleições gerais de 2022, foram registradas 29,2 mil candidaturas, das quais 19,4 mil eram de homens e 9,8 mil de mulheres. Entre as candidatas, 308 conseguiram se eleger, enquanto entre os candidatos o número equivalente foi de 1.375.
Desde 1997, a Lei nº 9.504 prevê que partidos e coligações preencham pelo menos 30% de suas candidaturas com postulantes mulheres em eleições para a Câmara dos Deputados, o Senado, a Câmara Legislativa do Distrito Federal, as assembleias legislativas e as câmaras municipais. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a distribuição de recursos do Fundo Partidário para financiar campanhas eleitorais deve ser feita de forma proporcional, conforme a quantidade de mulheres que disputam os pleitos. “Apesar das determinações legais, a cota de gênero e os patamares de financiamento não são respeitados pela maioria dos partidos, que costumam priorizar o direcionamento de recursos para candidatos com maiores chances de vencer as eleições”, avalia a antropóloga Carmela Zigoni, assessora política da ONG Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), sediada em Brasília. Segundo ela, a sub-representação de mulheres não vem sendo resolvida por meio de cotas e diretrizes de financiamento, de forma que elas têm apostado na formação de candidaturas coletivas como estratégia para tentar ampliar sua participação política.
A reportagem acima foi publicada com o título “Democracia no plural” na edição impressa nº 340, de junho de 2024.
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