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Covid-19

Mais um passo rumo à vacina universal contra os coronavírus

Começam ensaios clínicos com imunizantes de amplo espectro que buscam proteção contra o Sars-CoV-2, suas variantes e vírus semelhantes

Ilustração sobre foto do frasco da candidata à vacina SpFN do Instituto de Pesquisa Walter Reed, nos Estados Unidos

Mike Walters / US Army

Enquanto a variante ômicron do vírus Sars-CoV-2 se alastrava com rapidez pelo mundo no início deste ano e as farmacêuticas Pfizer e Moderna anunciavam testes com uma vacina específica para essa cepa, instituições de pesquisa e empresas de biotecnologia avançavam também em outro sentido. O foco delas era o desenvolvimento de imunizantes que dessem conta de múltiplos coronavírus – e não apenas da variante “do momento” na pandemia de Covid-19. Ao menos duas vacinas de amplo espectro começaram a ser testadas em humanos e outras estão a alguns passos de serem colocadas à prova em ensaios clínicos de fase 1, após resultados satisfatórios em ensaios pré-clínicos com animais. O objetivo dos testes de fase 1 é analisar a segurança do imunizante e avaliar as indicações preliminares da capacidade da vacina em estimular o sistema imunológico.

A que está em processo mais avançado é a vacina SpFN, desenvolvida no Instituto de Pesquisa Walter Reed (WRAIR), do Exército dos Estados Unidos, onde os cientistas anunciaram a conclusão da primeira fase de testes em humanos, mas ainda não divulgaram os resultados. Antes de chegar ao mercado, toda vacina precisa passar também pelas fases 2 e 3 dos ensaios clínicos, aplicadas a um número muito maior de pessoas com o objetivo de obter mais dados sobre a segurança, a eficácia do produto e suas possíveis reações adversas.

“Nossos pesquisadores estão analisando as informações e escrevendo um relatório com os resultados [da fase 1, em humanos]. Eles já estavam animados com os dados pré-clínicos e os novos resultados serão conhecidos quando forem publicados em estudo revisado pelos pares”, informou a Pesquisa FAPESP Lee Osberry Jr., da área de comunicação do Walter Reed. A vacina SpFN usa uma plataforma com nanopartículas de ferritina. O imunizante gerou em primatas não humanos uma forte resposta imune não apenas contra a cepa original do Sars-CoV-2 e em variantes de preocupação, mas também contra o vírus Sars-CoV-1, que emergiu em 2002. Variante de preocupação é como são chamadas aquelas que trazem maior risco potencial à saúde pública.

O alvo desse e de outros imunizantes que seguem a mesma linha do amplo espectro são as cepas classificadas dentro do subgênero sarbecovírus, que englobam tanto o vírus Sars-CoV-1 como o Sars-CoV-2 e suas variantes. “A próxima geração de vacinas que vamos desenvolver lidará também com os merbecovírus [como o Mers] e os embecovírus [dos resfriados comuns], de forma que, com esses três subgêneros juntos, ela cobrirá todos os betacoronavírus”, disse a Pesquisa FAPESP Kayvon Modjarrad, diretor do programa para doenças infecciosas emergentes do WRAIR e coordenador do ensaio. Betacoronavírus são um dos quatro gêneros de coronavírus.

Laboratórios do Brasil também desenvolvem vacinas contra o Sars-CoV-2 apostando em uma abordagem universal

Outra instituição que anunciou o início da fase 1 de ensaios clínicos foi a unidade de pesquisa clínica de Southampton do Instituto Nacional para Pesquisa em Saúde (NIHR), do Reino Unido. Os pesquisadores testam uma tecnologia de vacina de DNA desenvolvida na Universidade de Cambridge e na spin-off DIOSynVax. De acordo com Jonathan Heeney, pesquisador responsável pela criação da DIOSvax, trata-se do primeiro passo em direção à vacina universal em desenvolvimento na instituição, “que deverá nos proteger não apenas das variantes da Covid-19, mas também de futuros coronavírus”.

No site da Universidade de Cambridge, o grupo afirma que buscou tipos de antígenos (moléculas de regiões-chave do vírus capazes de deflagrar a produção de anticorpos) que permanecem os mesmos em muitos dos coronavírus encontrados na natureza, incluindo os de morcegos, para gerar a produção tanto de anticorpos neutralizantes, que bloqueiam a infecção viral, como de células T, capazes de remover as células já infectadas pelos betacoronavírus conhecidos. “São estruturas de importância crucial para o ciclo vital do vírus, o que significa que é improvável que mudem no futuro.”

Outra diferença da DIOSvax é que ela é aplicada com uma injeção intradérmica sem agulha, em meio a um jato de ar liberado com pressão suficiente para levar o composto para dentro do corpo, uma tecnologia desenvolvida pela empresa Pharmajet, com sede nos Estados Unidos.

A preocupação com as possíveis mutações do vírus aumentou no fim de 2021 com o surgimento da ômicron, que apresenta cerca de 50 alterações genéticas, mais de 30 delas apenas na proteína spike, em comparação com o vírus originalmente identificado em Wuhan. Essas mutações fazem com que o vírus seja capaz de infectar parte das pessoas que tiveram Covid e mesmo as que foram vacinadas com três doses. Embora a Pfizer tenha previsto obter resultados dos ensaios clínicos específicos para a vacina contra a ômicron no primeiro semestre de 2022, não há certeza se essa variante será relevante até lá. A ideia dos imunizantes universais ou pelo menos pan-variantes (para diferentes cepas do mesmo vírus) é que sejam eficazes de modo que os cientistas não precisem desenvolver novas vacinas a cada variante que surgir.

Reforços
Com isso em mente, a empresa norte-americana de biotecnologia Gritstone bio, da Califórnia, lançou em setembro do ano passado em Manchester, no Reino Unido, um ensaio clínico de fase 1 para vacinas de doses de reforço (booster) feitas a partir de um método conhecido como RNA de autoamplificação (samRNA), uma versão mais recente de tecnologia de RNA mensageiro. A vacina também busca estimular a imunidade celular por meio de partes que não mudam tanto no Sars-CoV-2. A imunidade celular é proporcionada pelas células T.

“Conforme observamos com a variante ômicron, as proteínas da superfície viral, como a spike, apresentam um alto índice de mutação. Isso faz com que a imunidade fornecida por vacinas que têm como alvo a spike fique vulnerável a variantes que contenham numerosas mutações nessa proteína”, informou Andrew Allen, cofundador, presidente e CEO da Gritstone, em um comunicado da empresa. “Essa inovação permite a inclusão de uma ampla série de epítopos virais altamente preservados, podendo criar um estado imune capaz de oferecer uma proteção clínica mais robusta contra as atuais e as futuras variantes do Sars-CoV-2.” Epítopo é a região do antígeno à qual o anticorpo se liga.

Nos Estados Unidos, o imunologista Barton Ford Haynes, da Escola de Medicina da Universidade Duke, na Carolina do Norte, informou à reportagem que o seu grupo havia recebido até meados de janeiro deste ano US$ 4 milhões dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos para desenvolver várias versões de uma vacina que cubra qualquer variante que possa surgir do Sars-CoV-2 e outros sarbecovírus. A previsão é de que os ensaios clínicos ocorram a partir de setembro. O grupo usa como plataforma nanopartículas de ferritina com proteínas que expressam 24 moléculas do domínio de ligação ao receptor (RBD) da proteína spike, região em que o vírus se liga às células humanas.

A bioengenheira Pamela Bjorkman, do Instituto de Tecnologia da California (Caltech), também espera iniciar os ensaios clínicos ainda este ano com uma vacina feita em mosaico, com partes de vários vírus e que apresentou bons resultados em animais. “Estamos no processo de tentar organizar a logística para estabelecer os ensaios clínicos em humanos por meio da Universidade de Oxford, no Reino Unido”, escreveu por e-mail, acrescentando que estava em negociação com uma agência de financiamento para receber apoio para a realização dos ensaios.

Outra frente que ganhou impulso recentemente foi a das vacinas intranasais. Pesquisadores da Universidade Yale e do Instituto Médico Howard Hughes, ambos nos Estados Unidos, divulgaram em janeiro dados de ensaios pré-clínicos, realizados com camundongos, indicando que um imunizante ministrado via spray nasal provocou uma forte resposta imune nas mucosas do trato respiratório contra o Sars-CoV-2 e outros sarbecovírus.

Andriy Onufriyenko / Getty Images Representação das variantes do Sars-CoV-2: uma vacina universal deverá ser eficaz contra todas elasAndriy Onufriyenko / Getty Images

Pelo menos 10 vacinas contra o novo coronavírus estão sendo aplicadas em larga escala ao redor do mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Outras 132 estão em desenvolvimento na fase clínica, com testes em humanos, e 195 encontram-se na etapa de desenvolvimento pré-clínico. No Brasil, cinco imunizantes estão na fase inicial de testes e um na fase intermediária (ver Pesquisa FAPESP nº 310).

Cerca de cinco laboratórios ou centros de pesquisa do país desenvolvem vacinas contra o novo coronavírus apostando em uma abordagem mais universal, segundo o virologista Flávio Guimarães da Fonseca, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Todos têm como escopo principal o novo coronavírus e suas variações. “A preocupação é que surjam variantes que escapem totalmente das respostas vacinais. As variantes são consideradas hoje o grande desafio para o controle contínuo da Covid-19, para o fim da pandemia e para a forma como esse vírus vai se integrar à nossa realidade”, diz Fonseca. “No exemplo da vacina da UFMG, nosso foco é o Sars-CoV-2 e a geração de uma resposta celular contra ele. É uma vacina universal para diferentes variantes de Sars-CoV-2.”

A estratégia usada pelo grupo foi construir uma quimera, uma proteína artificial que não existe na natureza, cujo antígeno principal é a proteína do nucleocapsídeo, também chamada de proteína N. Diferente da proteína S, da spike, ela não está na superfície do vírus, região que mais sofre mutações. “A proteína N muta muito menos de uma variante para outra, então ela tem esse caráter mais universal.”

Embora os estudos pré-clínicos da UFMG tenham sido conduzidos apenas contra o Sars-CoV-2 e suas variantes, Fonseca acredita que a vacina em desenvolvimento pode em tese despertar uma resposta contra outros vírus da família do Sars-CoV-2, como Sars-CoV-1 e o Mers, já que eles têm muitas semelhanças em suas proteínas N. No momento, a equipe da UFMG responde a questionamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que possa realizar os primeiros ensaios clínicos com o imunizante.

Em São Paulo, o Centro de Desenvolvimento e Inovação (CDI) do Instituto Butantan informou ter avançado nos estudos de provas de conceito, in vitro e in vivo,  de uma vacina multiantigênica, formulada com diferentes antígenos, e pretende publicar em breve os resultados de seu pipeline e dos candidatos vacinais testados.

De acordo com Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, diretora do CDI, desde o início da pandemia, os pesquisadores do centro vêm fazendo uma análise computacional para entender as possibilidades de mutação do Sars-CoV-2: em quais pontos das proteínas virais elas ocorrem, quais deles têm potencial mutagênico menor  e o quanto podem ser imunogênicos – ou seja, provocar uma reação do sistema imune. Além disso, o instituto desenvolveu uma plataforma proteica recombinante capaz de conter informações de uma proteína distinta, bem como partes de várias proteínas diferentes. Não há previsão de quando o instituto iniciará ensaios clínicos em humanos com sua vacina multiantigênica.

Artigos científicos
JOYCE, M.G. et al. A Sars-CoV-2 ferritin nanoparticle vaccine elicits protective immune responses in nonhuman primates. Science Translational Medicine. 16 dez 2021.
MAO, T. et al. Unadjuvanted intranasal spike vaccine booster elicits robust protective mucosal immunity against sarbecoviruses (preprint). bioRxiv. Postado em 26 jan 2022.
MORENS, D.V. et al. Universal coronavirus vaccines — an urgent need. The New England Journal of Medicine. 27 jan 2022.

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