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COVID-19

A busca por uma vacina brasileira

Pesquisadores usam tecnologias variadas, mas poucas iniciativas receberão apoio para os dispendiosos testes clínicos de fase 3

Mesmo com cerca de 60% dos brasileiros vacinados com pelo menos duas doses e a perspectiva de importar imunizantes suficientes para atingir a totalidade da população, projetos avançam em laboratórios do país para desenvolver uma vacina que não dependa de insumos do exterior. Das 16 iniciativas que receberam apoio da Rede Vírus do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cinco terminaram ou estão prestes a terminar os testes pré-clínicos, com animais, e aguardam autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para começar a próxima fase. A ButanVac, fruto de uma colaboração internacional com participação do Instituto Butantan, começou a ser testada em seres humanos no Brasil e em outros países.

Uma vacina nacional é importante para diminuir os custos de importação e manter alto o nível dos anticorpos na população, na avaliação dos pesquisadores ouvidos por Pesquisa FAPESP, já que o novo coronavírus deve continuar circulando e serão necessárias doses adicionais. Eles buscam inovações que aumentem a eficácia, diminuam a transmissão e produzam uma imunidade mais duradoura – resultados iniciais com as vacinas em uso indicam que a primeira imunização deve durar de seis meses a um ano. Além disso, uma versão brasileira poderia ser adaptada para as variantes locais, como a gama, não contemplada pelas vacinas importadas. Os mesmos objetivos valem para o resto do mundo. Além disso, procura-se produzir vacinas baratas que possam aumentar a vacinação nos países de baixa renda, principalmente na África e Ásia, onde apenas 2,6% da população completou o esquema de vacinação, segundo dados do Banco Mundial de 18/11.

Os quatro projetos que estavam mais adiantados em março deste ano (ver Pesquisa FAPESP nº 301) adiaram o início dos testes clínicos em relação ao cronograma previsto: a Versamune-CoV-2FC, uma parceria entre a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), a startup paulista de biotecnologia Farmacore e o laboratório norte-americano PDS Biotechnology, ainda aguarda o primeiro lote de vacinas encomendado nos Estados Unidos; a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) recomeçou o desenvolvimento da UFRJvac, para contemplar as novas variantes; a Flu-CoV, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), FMRP-USP e Butantan, apresentou eficácia reduzida; e o spray nasal do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, em São Paulo, passa atualmente por testes adicionais para responder a questionamentos da Anvisa.

“Os projetos poderiam ter avançado mais se o setor privado tivesse participado do processo desde o início”, afirma o imunologista Ricardo Gazzinelli, da UFMG e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia das Vacinas (INCTV). O pesquisador assinala que o setor público, representado pelo Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é eficiente na produção de imunizantes, mas o fato de ser subsidiado pelo governo acaba coibindo a entrada do setor privado no ramo de vacinas de grande importância médica. “O desenvolvimento de vacinas requer um investimento elevado e de risco, o que contribui para afugentar as farmacêuticas nacionais”, completa.

Um dos problemas das vacinas atuais, aplicadas de forma intramuscular, é que elas estimulam a produção de anticorpos no sangue, mas não nas mucosas do trato respiratório. Assim, a pessoa não sofre – ou sofre pouco – os efeitos da doença, mas pode desenvolver a infecção e transmitir o vírus por gotículas ou aerossóis expelidos pelo nariz e pela boca.

“As vacinas atuais têm eficácia de apenas 30% pra combater a infecção no nariz, por isso vacinados podem transmitir o vírus”, alerta o imunologista Jorge Kalil, da FM-USP. A ideia de desenvolver um spray nasal é barrar o patógeno assim que ele é aspirado. O pesquisador coordena a equipe que desenvolveu nanopartículas que carregam os antígenos e são capazes de atravessar os cílios e as secreções, sendo absorvidas pela mucosa. “O spray ataca não só a doença, mas a infecção, e a instilação nasal deve torná-la mais aceitável para as pessoas”, prevê Kalil.

Para aumentar a resposta imune, o grupo de Kalil recortou a proteína S, principal componente das espículas que caracterizam o Sars-CoV-2, e usou sua região mais importante: aquela que se liga às células humanas para facilitar a entrada do vírus, o chamado domínio de ligação ao receptor (RBD). “As células do sistema imune reconhecem o RBD, que é o principal antígeno do coronavírus”, explica Kalil.

O antígeno inclui o RBD das variantes alfa, beta, gama e delta. “Testamos as 36 proteínas do vírus, quebradas em 66 pedaços, e percebemos que essa região é a que estimula a resposta imune mais completa”, relata Kalil. Em camundongos a vacina induziu, além da produção de anticorpos, a morte de células infectadas no sangue e na mucosa. Essa resposta em duas frentes indica que a vacina pode provocar uma defesa mais duradoura, um dos desafios da nova geração de vacinas.

Também focada em partes essenciais do Sars-CoV-2, a vacina SpiN-Tec, da UFMG, usa a proteína N, cuja função natural é proteger o RNA dentro do vírus, para estimular uma imunização mais completa junto com o RBD. “Como usamos várias regiões da proteína, seriam necessárias muitas mutações para que uma variante nova não seja percebida pelo sistema imune”, explica Gazzinelli, coordenador do projeto.

A proteína N parece estar sob menor pressão seletiva pelo sistema imunológico. O pesquisador conta que avaliou por bioinformática cerca de 100 isolados do vírus e não encontrou trocas de aminoácidos na proteína N que estivessem associadas às novas variantes. Juntos, RBD e N resultam em uma proteína quimérica, que não existe no vírus original.

A vacina Versamune-CoV-2FC usa nanopartículas para carregar outro antígeno: o trecho S1 da proteína S, onde fica o RBD. “Além de promover a produção de anticorpos, a composição da proteína S1 com o carreador e imunoestimulador Versamune é capaz de ativar o sistema imunológico como um todo, com proteção de longo prazo”, explica Helena Faccioli, CEO da Farmacore, empresa de biotecnologia de Ribeirão Preto.

Essas nanopartículas esféricas de um lipídio que facilita a circulação do antígeno no corpo, aumentando a resposta às variantes por meio da estimulação de células T, são uma tecnologia da parceira norte-americana PDS Biotechnology. “A parceria entre uma universidade pública, a FMRP-USP, e a iniciativa privada ajuda a tornar viável o projeto, pois desde o início pensamos em estratégias de produção e de regulamentação”, explica Faccioli, mencionando uma colaboração pouco frequente no desenvolvimento de imunizantes brasileiros.

O antígeno da UFRJvac é composto por três unidades da proteína S completa (um trímero), como existe naturalmente na superfície do vírus. “Partindo da sequência codificante publicada na revista Science por um grupo norte-americano, desenvolvemos células geneticamente modificadas e toda a tecnologia de produção em biorreatores, até a escala-piloto. Depois desenvolvemos tudo de novo para sete variantes e fizemos testes em quatro espécies animais”, explica a engenheira química Leda Castilho, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, coordenadora do projeto da UFRJvac. “Os ensaios clínicos vão avaliar as versões monovalente, baseada na variante delta, e trivalente, baseada nas variantes delta, gama e D614G, mas a UFRJvac pode ser atualizada em menos de 150 dias para novas variantes.”

A ButanVac é a única que já fez os testes clínicos da fase 1, com aprovação da Anvisa. O imunizante, desenvolvido por cientistas do Mount Sinai Medical Center, nos Estados Unidos, usa o vírus da doença de Newcastle – que afeta apenas aves – alterado para produzir uma proteína S modificada e mais estável, conhecida como HexaPro.

O vírus se reproduz em ovos embrionados, mesma tecnologia da vacina da gripe, e visa combater as variantes gama e delta, mas é possível fazer alterações para novos alvos. “Poderemos entregar 80 milhões de doses da ButanVac por ano ao Ministério da Saúde”, estima o médico Dimas Covas, presidente do Instituto Butantan.

Para ele, a ButanVac não substituirá a CoronaVac, cuja produção deverá ser mantida. Por ser feita com vírus inteiro, a CoronaVac inclui uma maior diversidade de antígenos; a ButanVac estimula uma resposta imune mais forte. O Butantan já fez estudos clínicos de fase 1 em 120 pessoas e pretende prosseguir para a fase 2 com 4 mil voluntários.

Nem só de inovação tecnológica são feitas as vacinas contra o novo coronavírus. Pesquisadores da Universidade Estadual do Ceará (Uece) estão testando uma vacina veterinária contra um coronavírus de aves, feita do vírus atenuado, para ser usada em pessoas sem a necessidade de alteração. “Funcionários que borrifam a vacina nas granjas, mesmo sem equipamento de proteção, não adoecem”, conta o veterinário Ney de Carvalho Almeida, estudante de doutorado na Uece sob orientação da bioquímica Izabel Florindo Guedes.

Em fase pré-clínica, a vacina veterinária produziu anticorpos contra o Sars-CoV-2 em camundongos e em células humanas, destruindo 95% dos patógenos, segundo o pesquisador. A pedido da Anvisa, a equipe de Guedes fez testes com hamsters para ver se surgiam lesões nos pulmões ou no sistema circulatório, o que não aconteceu.

O imunizante é aplicado por spray e o custo deve ser baixo, pois pode ser produzido em fábricas já existentes de vacinas para aves, com produção em ovos. “A pessoa poderia pegar o spray no posto de saúde ou comprar na farmácia e fazer autoaplicação”, diz Almeida, que já registrou uma patente para o segundo uso no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), em nome da Uece. Por se tratar de um vírus completo, a vacina não perde a eficácia facilmente. Mas talvez precise ser complementada caso surjam novas variantes.

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