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Memória

Mais uma tentativa

Terapia de medicamentos já existentes pode ser a nova arma contra o Trypanosoma cruzi

REVISTA MEMÓRIAS DO INSTITUTO OSWALDO CRUZ (AGO, 1909)Desenho da espécie Conorhinus megistusREVISTA MEMÓRIAS DO INSTITUTO OSWALDO CRUZ (AGO, 1909)

No centenário de sua descoberta, à primeira vista parece que a doença de Chagas deixou de ser um problema no Brasil. Em 2006 o Ministério da Saúde recebeu a certificação conferida pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas) pela interrupção da transmissão da moléstia pelo inseto barbeiro (Triatoma infestans). Como é consenso que a melhor forma de combater a doença é acabar com o transmissor, a rota escolhida é a correta. Ocorre que há cerca de 3 milhões de pessoas infectadas no país e o parasita Trypanosoma cruzi está muito longe de ser vencido. As pesquisas para entender sua forma de atuação no organismo humano avançam a passos curtos e a possibilidade de surgir uma nova droga em poucos anos ainda é remota. No entanto, uma proposta baseada em tratamentos que deram certo para outras doenças pode ajudar a mudar esse quadro. Em vez de correr atrás de moléculas e compostos novos que dificilmente receberão investimento da indústria farmacêutica para virar remédio, por que não usar juntas as poucas drogas que já existem? A ideia é repetir o conceito do coquetel de medicamentos, que se mostrou eficaz para tratar aids, tuberculose e hanseníase.

A proposta tem duas vertentes, uma teórica e outra aplicada. A primeira está no artigo de José Rodrigues Coura, pesquisador e ex-diretor do Instituto Oswaldo Cruz, publicado em julho na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. “A intenção é usar as duas únicas drogas desenvolvidas para a doença até hoje – o benznidazol e o nifurtimox –, associar a elas um medicamento antigo de baixa toxicidade utilizado contra gota – o allopurinol – e alguns antifúngicos da classe dos azóis, como o cetoconazol, o fluconazol, o itraconazol”, diz. O objetivo é atacar o T. cruzi com todo o arsenal disponível para ver se ele desaparece do organismo humano durante a fase crônica da doença. “Naturalmente, será preciso fazer estudos experimentais e clínicos antes de começar a usar a terapia”, recomenda.

Aplicação
O biólogo venezuelano Julio Urbina, da Universidade Central da Venezuela, havia testado durante os anos 1990 uma combinação com compostos antifúngicos que inibem a multiplicação do T. cruzi. O problema é que essas substâncias, chamadas de inibidores de biossíntese de ergosterol de primeira geração, embora tivessem um efeito deletério sobre o parasita, não conseguiram eliminá-lo por completo nos ensaios com seres humanos e animais. O professor Coura propõe ir além e combinar todas as drogas possíveis já aprovadas pelas agências reguladoras.

A vertente aplicada da proposta está em andamento na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e surgiu seguindo a mesma linha de raciocínio de Coura, dando continuidade aos trabalhos iniciados por Urbina. A pesquisa é liderada pela bioquímica Maria Terezinha Bahia em trabalho coordenado pela organização internacional Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês). A DNDi nasceu da organização humanitária Médicos sem Fronteiras – ganhadora do Nobel da Paz em 1999 – com o objetivo de firmar parcerias para pesquisar, desenvolver e tornar disponíveis novos tratamentos para as moléstias chamadas de negli­genciadas, aquelas que recebem pouca ou nenhuma atenção dos laboratórios privados e públicos. As principais são a doença de Chagas, a leishmaniose visceral, a malária e a tri­panossomíase humana africana (doen­ça do sono).

Na Ufop a parceria com a DNDi para combinação de fármacos vem sendo feita há cerca de um ano. “As drogas usadas hoje provocam muitos efeitos colaterais, como alergias e neuropatias periféricas, têm baixa eficácia e alta taxa de não adesão dos pacientes”, diz Isabela Ribeiro, diretora de Projetos para a América Latina da DNDi. Por isso, é importante diminuir a dose e o tempo de tratamento, que hoje leva até 60 dias, e ampliar a tolerabilidade da terapia. “Combinando os remédios em doses menores com menor duração poderemos potencializar seus efeitos e melhorar a resposta do doente.”

Médica infectologista, Isabela diz que os resultados de Ouro Preto são promissores e estão na segunda fase de experimentos. “Confirmando-se os dados positivos nesta fase, no próximo ano deveremos partir para os ensaios clínicos, com seres humanos”, conta. Uma de suas atribuições na DNDi é dar um sentido mais prático e voltado às pesquisas científicas para quem realmente precisa delas. “Entre a descoberta de uma nova molécula e até chegar a uma solução disponível vai um longo tempo, entre 10 e 15 anos. Os doentes que precisam desses medicamentos não podem esperar.”

Para João Carlos Pinto Dias, pesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou (Fiocruz Minas), de Belo Horizonte, a proposta de Coura e a tentativa por ora feita em Ouro Preto são iniciativas que podem funcionar. “Não sei por que até hoje ainda não testamos essa terapia seriamente”, diz. Dias sempre trabalhou na linha de frente da profilaxia do barbeiro pelo interior do Brasil e é um dos responsáveis pela atual boa situação de controle da infecção, além de chefiar o Posto Avançado de Estudos Emmanuel Dias, da Fiocruz, em Bambuí (MG). “Hoje, além da falta de drogas eficientes, nosso grande problema é não termos um marcador de cura, ou seja, um teste que nos permita saber se o paciente está de fato livre do T. cruzi.” Na fase aguda da doença os testes sorológicos demoram entre um e dois anos para dar um resultado seguro. Na fase crônica esse tempo pode levar até 25 anos. Isso ocorre porque existe memória imunológica, restos de DNA do tripanossomo e antígenos que não permitem saber se o paciente está mesmo livre do parasita. Quando um marcador de cura for desenvolvido será possível identificar imediatamente se o paciente está curado e qual medicamento funciona em pouco tempo.

© REVISTA MEMÓRIAS DO INSTITUTO OSWALDO CRUZ (AGO, 1909)Formas do T. cruzi, em desenho de Castro Silva© REVISTA MEMÓRIAS DO INSTITUTO OSWALDO CRUZ (AGO, 1909)

Durante a fase aguda, que dura de seis a oito semanas, ainda é possível eliminar o T. cruzida corrente sanguínea usando o benznidazol, que, mesmo assim, funciona em cerca de 70% dos casos. “A droga é menos eficiente se a carga parasitária for muito alta ou se o paciente estiver com a imunidade baixa”, explica o bioquímico Walter Colli, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, pesquisador da doença há 40 anos. A fase crônica é muito mais difícil de tratar por razões menos conhecidas. Pode demorar várias décadas para os sintomas se manifestarem, geralmente no trato gastrointestinal ou no coração. Quando isso ocorre, o órgão já possui focos inflamatórios e destruição de fibras musculares ou tecido condutor que alteram a qualidade de vida e podem levar à morte. Nessa fase, até achar o parasita no organismo é difícil porque ele se esconde nos tecidos. “Quando o parasita está instalado é muito complicado achar qualquer saída. Todas as pesquisas que conheço até hoje para obter uma nova droga ou controlar o tripanossomo não funcionaram”, diz.

Sem vacina
No Brasil não faltam projetos de pesquisa que investigam a fisiologia e a bioquímica do T. cruzi e experiências com os mais variados compostos quimioterápicos para tentar matar o parasita. A maioria dos ensaios se mostra promissora quando testada em ambientes controlados. “In vitro quase tudo mata o parasita, até água”, comenta Coura. Ao passar para a fase de testes em animais e, depois, em seres humanos, a relação se inverte e quase nada se mostra eficaz. E, mesmo quando um composto demonstra ter potencial, não se encontram interessados em fazer o desenvolvimento para virar medicamento.

Dias acredita que o remédio ou a vacina para curar a doença nunca será concretizado. “Não há interesse da indústria em gastar de US$ 10 a US$ 20 milhões com um fármaco para esse tipo de moléstia”, afirma. O cenário desanimador não isenta os pesquisadores da procura por outras soluções. “A OMS, a DNDi e as agências de fomento devem continuar a incentivar e financiar as pesquisas básicas porque precisamos saber mais sobre a doença.”

Por conhecer essa realidade, a DNDi fez um acordo com o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) para o desenvolvimento do benznidazol infantil até 2010. Hoje o comprimido tem de ser partido em múltiplos pedaços ou triturado e misturado na água para ser dado a crianças com grande risco de se errar a dosagem. O outro medicamento contra Chagas, o nifurtimox, por anos deixou de ser fabricado. São por essas razões que, embora se estime grosseiramente entre 20% e 60% a taxa de pacientes crônicos que apresentam sintomas, dependendo da região e da idade, Chagas permanece no topo das doenças negligenciadas e mata cerca de 14 mil pessoas por ano nas Américas – mais do que a malária, segundo a Opas.

Daniel das Neves Países afetados: todos da América (menos Cuba) e também Espanha, Itália, França, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Áustria, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica, Portugual, Dinamarca, Noruega, Suécia, Suíça, Grécia, Israel, Austrália e JapãoDaniel das Neves

A principal forma de contaminação hoje no Brasil é via oral, por ingestão de alimentos contaminados com fezes do barbeiro. De acordo com o Ministério da Saúde, de 2000 a 2004 houve 57 casos da doença de Chagas aguda por transmissão oral. Esse número saltou para 254 entre 2005 e 2007. A maioria dos casos está na Amazônia Legal. A doença atinge também paí­ses que não têm o inseto transmissor, como Canadá, Japão e Austrália, em razão da imigração. Nos Estados, onde há cerca de 300 mil casos, já se estuda aplicar testes para detectar a infecção. Uma das dificuldades da doença é a falta de registros confiáveis. A estimativa para o número de infectados nas Américas vai de 8 milhões a 18 milhões, conforme a fonte.

A inconstância dos números só reforça a necessidade de atenção. Em Lassance, onde tudo foi descoberto há 100 anos, há 31 pessoas infectadas hoje. A mais nova delas tem 60 anos, o que mostra que a infecção ocorreu há muito tempo e se conseguiu controlar a transmissão. “Mas, se houver descontinuidade ou mau desempenho da vigilância, o quadro epidemiológico pode se reverter e paulatinamente voltar a situações endêmicas preocupantes”, alerta Dias. Sem perspectivas reais de cura, para o pesquisador é melhor continuar de olhos bem abertos.

Artigo científico
COURA, J.R. Present situation and new strategies for Chagas disease chemotherapy – a proposal. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. v.104 (4) jul. 2009.

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