Imprimir PDF Republicar

Ficção

Manchas roxas com bordas verdes

Na cabine dos pesquisadores, fui apresentado a todos e tive direito a uma aula rápida sobre os equipamentos disponíveis.

O voluntário nº 7 apareceu em seguida. Manuseava cuidadosamente o envelope com as duas fotos solicitadas: a da moça por quem estava apaixonado e outra, de uma amiga. Fazia parte da experiência.

Todos os voluntários recrutados, lá mesmo no campus, atenderam devidamente ao único pré-requisito, o de sentirem-se apaixonados. Apenas um dera negativo, o do quinto voluntário. E só o nº 7 fez jus àquela nova rodada.

O Instituto Tecnológico reservara uma de suas novas salas para o projeto. Uma parede envidraçada dividia o espaço. Equipamentos maiores, tomógrafo inclusive, de um lado, e, do outro, na tal cabine, os dois técnicos, três cientistas, eu, e ainda mais equipamentos.

O nº 7 foi recebido com descontração. Todos agradeceram por haver aceito um segundo teste. Ele entregou o envelope a um neurologista, que o repassou a um dos técnicos. Outro neurologista acompanhou o nº 7 até a mesa, onde ele deitou meio sem jeito, precisando relaxar. Enquanto outro técnico posicionava o scanner ao redor de sua cabeça, fomos para a cabine. De lá, as máquinas foram acionadas. No monitor principal, apareceu um cérebro 3-D, girando sobre fundo preto. As luzes baixaram, lentamente. Pelo sistema de comunicacão, os neurologistas prepararam o nº 7 para as preliminares. Deram a partida no gravador e nas duas câmeras de vídeo. Peguei lápis e papel.

Ele repetiu sua história, a da namorada e a do namoro.

Então, após uma ligeira pausa, acendeu diante dele a fotografia de sua amiga. Os cientistas perguntaram sobre a garota, sobre o que sentia por ela. Havia premeditação na ordem em que as imagens lhe seriam projetadas. A resposta do nº 7 foi morna. A julgar pela reação dos neurologistas, sua namorada teria gostado do que apareceu em nosso monitor. Eu, o que vi, foram manchas pálidas sobre o cérebro digital.

O rosto da namorada do nº 7 chegou num retrato simples; cabeça, pescoço, ombros. Nenhuma sugestão mais forte. A beleza dos traços por excelência; um sorriso, um olhar alongado, um pescoço esguio, ombros largos e suaves ao mesmo tempo.

À flor da pele, os aparelhos registraram uma sutil transpiração no nº 7. Então, bem no meio daquele cérebro real e virtual ao mesmo tempo, quatro pequenas áreas se iluminaram.

“Confirmado: amor à primeira vista” disse um pesquisador.

Embora fosse piada, me pareceu a conclusão lógica. Os neurocientistas, em seguida, estimulariam o nº 7 a pensar em sua namorada, nos momentos que tiveram juntos, nos prazeres comuns. E com isso aqueles sinais, sem dúvida, se transformaram em evidências. Mas o registro da atividade cerebral já tinha se alterado na largada. Foi o rosto dela aparecer.

Um segundo neurologista observou que a parte responsável pela visão, o “cérebro visual”, não havia se iluminado. Aparentemente não sentia, apenas repassava as informações às tais quatro áreas iluminadas, o “cérebro emotivo”.

O terceiro neurologista, e autor do convite para eu estar ali, apontando outra área apagada no cérebro do monitor, disse: “De novo algumas regiões do desejo sexual não se alteraram”.

“Quer dizer que ele não sente desejo pela garota?” perguntei, espantado.

“Quer dizer que o cérebro distingue, sim, o amor romântico do desejo sexual”

“Olhei incrédulo. Isso era uma novidade?”

“Mas não inteiramente” completou. “Essas áreas aqui também se ligam ao desejo sexual, e estão ativadas. É um equilíbrio que pode variar.”

“A voluntária nº 3 teve todas as áreas ligadas ao sexo ativadas? ” comentou outro neurologista.

“Já o nº 4, além das áreas do amor romântico, teve a metade direita do cérebro tão ativada quanto a esquerda” disse outro ainda.

Os pesquisadores riram. Pau pequeno. Ou pai autoritário. Ou os dois divertiram-se todos.

Não entendi. Por um instante, fiquei perdido.

“O lado direito do cérebro está mais ligado às situações negativas. Entre elas, o medo” explicou o neurologista amigo.

Olhei de novo para o menino do outro lado do vidro. E se fosse eu deitado ali? Eu, pensando na minha mulher? Sem racionalizar, com meu próprio órgão da razão me expondo completamente?

No monitor, o cérebro 3-D evoluía nos ângulos de interesse. Descobrimos novas manchas iluminadas, na altura da testa do nº 7. Ao que parece, onde fica a estrutura cerebral que nos ajuda a reconhecer nossas emoções e as dos outros. Uma espécie de classificador de sentimentos.

As manchas cresceram mais, e suas cores ganharam força. Eram roxas com bordas verdes.

Entendi de repente o que meu anfitrião tentara me dizer, quando mencionou que o cérebro do nº 7 separava amor de estímulo sexual. Era o contrário do suposto. Não os separava para manipulá-los, e sim porque nele o amor romântico predominava. Nele, a iluminação das áreas ligadas ao sexo era parcial, até residual. No primeiro teste, os cientistas hesitaram em aceitar semelhante diagnóstico, que lhes soou inverossímil. Daí a segunda rodada.

Tive sentimentos dúbios em relação ao menino. Tentei lembrar como era a sensação de ter um amor generoso, uma pessoa por quem eu dava tudo, uma pessoa a quem eu, sem piscar, estava disposto a entregar, como entreguei, a melhor parte da minha vida.

Talvez, combinando metafísica e psicanálise, materialismo histórico e, dali em diante, a neurociência, eu entendesse meu destino com a mulher que…

Cientificamente falando, quando o amor é estimulado, nossa atividade cerebral comporta milhares de variações. E, cientificamente falando também, o amor não existe numa região cerebral única. Ativa sobretudo pequenas áreas bem-definidas, mas conectadas a muitas outras regiões. Depende de um equilíbrio sutil entre pontos ativados e desativados, que varia infinitamente de acordo com cada um.

Mas existe sim um mapeamento neurológico geral que caracteriza este ou aquele amor, sua composição, nível de intensidade e fusão com o desejo sexual. As máquinas provaram isso. No futuro, psicanalistas, juízes de conciliação e terapeutas conjugais farão tomografias do nosso amor, a partir das quais começará a conversa. É.

Beirava o ridículo eu já querer tudo organizado na minha cabeça, na vida. Euzinho, decifrando a natureza sem a bioquímica, a neurociência e a computação. As manchas no monitor, sua infinita variação em cada voluntário, eram um novo caminho. Um enigma científico, que explicava tudo e nada ao mesmo tempo.

Mas era a chance de ter uma imagem palpável do sentimento, uma que eu pudesse colocar num envelope, levar de um lado para o outro, mostrar para os amigos, ou mirar com olhos vidrados, em horas escuras e de silêncio. Estávamos na era do visual?, eu queria ver.

Atentei de novo para o retrato da namorada do nº 7. O rosto anguloso, mas feminino, muito feminino, e o olhar de sol nascente. Atentei de novo para o garoto, de sentimentos tão férteis.

Nos últimos tempos, ao ver casais se beijando na rua, nos bares, nos clubes, eu os encarava exibindo sua felicidade, a ponto de me tornar inconveniente. Morto de pena do meu espírito hípercrítico. Nem todos os amantes, afinal, viviam querendo explicar a entrega. Eu desconstruíra o sentimento no cotidiano, para tentar prolongá-lo ao máximo. Acho que foi.

No entanto, eu já mal conseguia lamentar que meus filhos estivessem crescendo. Nem conseguia imaginar a velhice naquela vida…

Não senti inveja do nº 7 e de sua namorada, eu juro; nem raiva, nem ressentimento, nada condenável. Pelo contrário.

                                                             

Rodrigo Lacerda, 35 anos, é escritor. Seu último romance, Vista do Rio (2004), foi publicado pela editora Cosac & Naify.

Republicar