No campo da arqueologia, São Paulo foi por muito tempo considerado um estado quase sem registros do passado. Para desconstruir essa imagem, a arqueóloga Marília Perazzo, pesquisadora em estágio de pós-doutorado no Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas em Evolução, Cultura e Meio Ambiente (Levoc), do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), resgatou pesquisas na literatura científica, como as realizadas pelo explorador francês Guy Christian Collet (1929-2004), um dos pioneiros na investigação de registros feitos na rocha (rupestres) no estado. A partir delas, buscou lugares com grafismos e pinturas no território paulista. “Até agora, os trabalhos na região tinham sido pontuais, sem uma pesquisa sistemática que permitisse a identificação de sítios, além da caracterização e análise dos registros rupestres”, conta Perazzo. “Essa pesquisa vem suprir uma lacuna no âmbito da arqueologia paulista, permitindo inserir São Paulo no mapa rupestre do Brasil.”
No contexto de projeto coordenado pelo arqueólogo Astolfo Araujo, Perazzo e colegas do Levoc vêm fazendo desde 2019 um levantamento dessas áreas e agora criaram um mapa interativo de sítios arqueológicos com registros rupestres no estado de São Paulo. Com 21 sítios conhecidos quando começaram, em 2023 a equipe do MAE registrou outros 33, totalizando 54. Contaram para isso com a parceria do engenheiro Marcelo Zuffo e da geóloga Camila Duelis Viana, ambos da USP.
No mapa, é possível ver fotografias dos painéis rochosos, modelos tridimensionais, referências bibliográficas, datações e outras informações gerais sobre os sítios. O grupo usou técnicas de fotogrametria e escaneamento a laser para criar réplicas digitais das gravuras e pinturas que estão no site. “Leva por volta de duas horas para fotografar o conjunto que posteriormente dará origem ao modelo 3D”, conta Perazzo. O site classifica os sítios em três categorias: visitados, não visitados pela equipe do Levoc – mas com registros de existência na literatura – e sítios destruídos. A equipe já processou as imagens em 3D de seis deles.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
O mapa paulista se inspirou no projeto Summa Arqueológica, da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), em São Raimundo Nonato, no Piauí, sede do Instituto Nacional de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semiárido (Inapas), que se dedica a mapear informações arqueológicas e paleontológicas da região do semiárido do Nordeste do Brasil. O centro de pesquisa é um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em desenvolvimento há 10 anos, o Summa foi um dos projetos pioneiros no Brasil em termos de organização de dados arqueológicos e mapeamento. Há 2.172 sítios registrados na plataforma, que está sendo reformulada para ficar mais rápida, entre outras melhorias.
No site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), há registros de milhares de sítios espalhados pelo Brasil, mas sem detalhes sobre cada um. “Mapear é uma tendência no campo da arqueologia, os pesquisadores buscam há muito tempo uma forma interativa de conectar as informações que colhem com a sociedade, gerar conteúdo educacional e de divulgação científica”, diz o cientista da computação Eduardo Krempser, pesquisador do Inapas e um dos responsáveis pelo desenvolvimento da Summa e do mapa de registros rupestres de São Paulo. “No caso paulista, usamos tecnologias e linguagens de programação robustas, tudo com livre acesso”, conta.
A intenção foi deixar o mapa o mais simples possível de usar, leve ao carregar e duradouro – uma decisão estratégica, comenta Krempser. “Muitos projetos falham por não pensar no longo prazo; daí a importância dos softwares livres, que são de fácil manutenção e podem ser levados para outros servidores, o que torna esse sistema sustentável”, completa. Preservar a memória é o objetivo principal do projeto, e a proposta é que o banco de dados seja aberto, de modo a ser acessado por outros pesquisadores e pessoas interessadas.
Marilia Perazzo / USP Mamífero representado no sítio Fazenda Alto da Boa Vista, em PedregulhoMarilia Perazzo / USP
Para alimentar o mapa, Krempser adotou uma plataforma em que o pesquisador, ao retornar de uma viagem de campo, insere os dados coletados, que ficam disponíveis em tempo real para o usuário do mapa. “Ela guarda as informações desde a coleta em campo até seu armazenamento em uma instituição de pesquisa ou em um museu”, diz. “Assim, é possível reconstruir todo o processo de trabalho do achado científico.” Também o sistema adotado para alimentar o mapa do Levoc pode receber registros desde o momento em que o pesquisador inicia seus estudos, sendo cruciais as observações das viagens de campo.
Pessoalmente, Perazzo visitou 39 sítios em quatro anos de pesquisa. “Alguns são muito cansativos para chegar, anda-se muito”, conta a arqueóloga, que não consegue escolher um favorito, mas se encanta a cada viagem de campo. “Quando chego e olho aquelas figuras é como se eu não tivesse andado nada, me renovo e fico horas sentada ali.”
A grande maioria dos sítios paulistas se situa em propriedades privadas – apenas um deles fica em um local de visitação aberto ao público, o do morro do Nhangussu, em Guarulhos, na Região Metropolitana da capital. Para elaborar o banco de dados, foi preciso pedir autorização dos proprietários das terras onde estão as gravuras. Há registros de sítios visitados pelos pesquisadores do Levoc, sítios não visitados, mas conhecidos por arqueólogos, e sítios já destruídos. Apenas um, que fica em Piracicaba, se encaixa no último item. Registros sobre ele estão presentes apenas na literatura a partir dos anos 1960, segundo as informações bibliográficas presentes no mapa.
Marilia Perazzo / USP No sítio Clemente também há pinturas zoomórficasMarilia Perazzo / USP
“É muito importante que esse trabalho tenha sido feito nesse momento, porque ele registra a existência dos sítios antes de seus desaparecimentos”, opina a arqueóloga Daniela Cisneiros, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Arqueologia da UFPE e pesquisadora da Fumdham, que não participa do trabalho da USP. “Muitos dos sítios de São Paulo estão em estado avançado de deterioração e de grande fragilidade, em áreas não protegidas. O conhecimento sobre eles pode contribuir para sua proteção.”
Entre os painéis visitados mais impressionantes está o da Pedra do Dioguinho, no município de Dourado, no centro do estado, a 280 quilômetros da capital. Com 48 metros de extensão, é considerado o maior painel de grafismo rupestre do estado. Ali estão tipos gráficos chamados de tridígitos, que são desenhos de linhas que lembram pegadas de pássaros, além de formatos lineares, figuras em círculos simples, semicírculos e pontilhadas. Ao todo, foram identificadas 16 manchas gráficas. “É um sítio lindo, um dos mais expressivos de São Paulo”, afirma Perazzo.
As análises indicam uma datação de cerca de 4 mil anos atrás – o que não significa que grupos humanos fizeram registros na mesma época, alerta a arqueóloga. Ela destaca outros dois sítios que a equipe do Levoc conseguiu datar: o Abrigo do Alvo, em Analândia, e o Abrigo de Itapeva (na cidade de mesmo nome). O primeiro é o mais antigo que se conhece no estado, com registros rupestres de cerca de 7,5 mil anos atrás; o segundo tem idade estimada de 4,7 mil anos.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
O Abrigo do Alvo foi um dos que Collet explorou nos anos 1980. Na época, o Exército brasileiro usava a estrutura rochosa como alvo em exercícios de artilharia e o pesquisador solicitou aos militares que deixassem de realizar as atividades ali. O pedido foi acatado e a equipe do arqueólogo francês aplicou uma resina sobre os grafismos, o que manteve o material bastante preservado. Assim como na Pedra do Dioguinho, o Abrigo do Alvo tinha registros em tridígitos, figuras circulares e pontilhadas, além de conjuntos de linhas e asteriscos.
O mesmo padrão é observado nos registros encontrados na serra da Capivara e em outras partes do Nordeste. Para os especialistas, é difícil precisar o significado das gravuras e pinturas, principalmente pela falta de contexto. Por isso, o trabalho dos pesquisadores da USP é mais voltado à catalogação, preservação e tipificação. É notável, no entanto, que possa ter havido algum tipo de intenção por parte de quem desenhou cenas e formas sobre rochas. “Os registros rupestres, seja pintura, seja gravura, são marcadores da memória dos grupos autores”, avalia Cisneiros.
Entrevista: Marília Perazzo
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Em São Paulo, as gravuras, talhadas diretamente na rocha, são mais frequentes do que as pinturas, que envolvem pigmentos e predominam no Nordeste. “No Sudeste, há domínio de formas geometrizadas, com poucas cenas e mais grafismos isolados: as figuras têm pouco dinamismo, são mais estáticas”, analisa a arqueóloga da UFPE. Boa parte dos registros no Nordeste fica em margens de rios e a céu aberto, ao contrário dos paulistas, que se localizam sobretudo em abrigos protegidos por rocha.
Todas as características dos registros rupestres fazem Cisneiros pensar sobre as pessoas que viveram ali há milhares de anos. “Entrar em contato com essas informações, poder ver essas gravuras, para mim é um encontro com a ancestralidade, vai muito além de uma descoberta científica”, reflete a pesquisadora.
Projeto A ocupação humana do sudeste da América do Sul ao longo do Holoceno: Uma abordagem interdisciplinar, multiescalar e diacrônica (nº 19/18664-9); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Astolfo Gomes de Mello Araujo (USP); Investimento R$ 2.236.584,53.
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