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História natural

Mapa interativo traça rota de Hercule Florence na expedição Langsdorff

Plataforma digital reúne relatos e desenhos que vão de 1825 a 1829, em viagem que cruzou os atuais estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Pará

Documento permite explorar trajeto de 13 mil quilômetros, com desenhos e relatos

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No dia 3 de setembro de 1825, o futuro inventor francês Hercule Florence (1804-1879), então com 20 anos, embarcou em um navio no Rio de Janeiro para uma viagem que viria a durar quatro anos. Contratado como segundo desenhista da expedição Langsdorff, financiada pelo Império Russo para documentar a história natural do Brasil, ele iniciaria naquele dia sua jornada científica país adentro. “Ajudados por um vento fresco, fizemos em 24 horas uma travessia de 70 léguas até Santos […], cidade de seis mil habitantes, onde vimos apenas um veleiro três-mastros português e algumas embarcações de cabotagem, é, todavia, o primeiro porto da província […]”, escreveu.

Observações como essas, além de ilustrações da paisagem, da população e dos costumes locais registrados por Florence, marcam a segunda etapa da expedição e podem ser exploradas em um mapa interativo lançado em outubro de 2020 pelo Instituto Hercule Florence (IHF), que traça a rota de 13 mil quilômetros (km) percorrida pelos atuais estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Pará. Além do mapa do IHF, outra versão da expedição foi incorporada, simultaneamente, ao Atlas dos viajantes no Brasil, com menos pontos registrados e relatos mais extensos. Todos os trechos e desenhos foram retirados do conjunto documental L’ami des arts livré à lui-même, da seção Voyage fluvial du Tiété à l’Amazonie, última versão do diário de Florence sobre a expedição, depois de ele tê-lo revisto por 20 anos.

Depois de chegar a Santos, Florence iniciou sua jornada rumo ao interior, passando pela capital e por cidades como Cubatão, Jundiaí e Campinas. Em junho de 1826, já na cidade paulista de Porto Feliz, ele inicia a etapa fluvial da viagem, começando pelo rio Tietê. Junto ao barão Georg Heinrich von Langsdorff, então cônsul da Rússia no Brasil, eles passaram a maior parte do trajeto em canoas, que seguiram ainda para os rios Paraná, Paraguai, Coxim, Tapajós e seus afluentes. Interessado em conhecer as riquezas naturais do país, Langsdorff, médico alemão naturalizado russo, capitaneou a famosa expedição, cuja primeira etapa havia passado por Minas Gerais e Rio de Janeiro.

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Durante a viagem, Florence descreveu quedas que não existem mais, como as cataratas de Avanhandava, no Tietê, depois submersas para a construção da usina hidrelétrica homônima: “Avanhandava! ainda vejo e admiro sobre teu anfiteatro [formato curvo] de granito, um caudaloso rio […]”, anotou em julho de 1826.

“Essas eram consideradas as maiores cataratas do rio Tietê”, explica o historiador João Carlos Cândido, responsável pela elaboração do mapa, fruto de uma parceria entre o IHF e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da Universidade de São Paulo (USP). “Ao consultar documentos para a pesquisa, fica claro que mudanças drásticas ocorreram nos rios de São Paulo, principalmente depois da segunda metade do século XX, como a construção de hidrelétricas e o desaparecimento de matas e povos que ocupavam suas margens”, observa Cândido, que cursa mestrado em história social na USP.

Outra mudança notada por Cândido ocorreu ao longo do rio Coxim, em Mato Grosso do Sul. “É perceptível o assoreamento [processo em que o leito do rio se eleva após acúmulo de sedimentos] da região ao longo do tempo, por conta da pecuária, da produção de soja e de outras culturas”, diz. Para localizar os pontos geográficos relatados pelo viajante francês e apresentá-los no mapa digital, o pesquisador utilizou bases cartográficas, levantamentos agrários e relatórios institucionais, além de telefonar para departamentos públicos das cidades citadas em busca de documentos e pistas. Ele também contou com o auxílio inusitado de um aplicativo de transportes. “Só localizei os nomes de algumas corredeiras e saltos porque esse aplicativo manteve os nomes originais em seu mapa, que provavelmente usava uma cartografia antiga”, revela.

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O objetivo dos viajantes da expedição era chegar até a cidade de Manaus, mas os planos foram interrompidos por uma série de problemas. Um deles foi o adoecimento de Langsdorff, que, acometido por febres intensas, passou a apresentar confusão mental. “Pesquisadores da expedição também apontam outros fatores, como o difícil trato do barão com os seus funcionários e a morte do primeiro desenhista, Aimé-Adrien Taunay, que se afogou nas águas do Guaporé, após o grupo se desmembrar para cobrir um maior território”, conta Cândido.

Já quase no final da viagem encurtada, ao percorrer o mapa, o leitor se depara com a chegada de Florence na cidade paraense de Santarém. “As ruas da cidade são largas, bem alinhadas e com ângulos retos. A igreja, situada no centro da cidade, é a melhor que vi desde São Paulo. Sua fachada é coroada por um frontão e dois campanários”, observou o desenhista francês em julho de 1828. Sobre a plataforma digital, elaborada em cima de uma interface de programação de aplicativos (API) do Google Maps, é possível ver o ponto de Santarém onde está a Catedral Metropolitana Nossa Senhora da Conceição. “É possível ler um relato sobre um local descrito no século XIX e, com um clique no mapa, ver uma foto atual do lugar, às vezes inserida por um usuário. São camadas de tempo que se sobrepõem”, finaliza o historiador.

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