Engenheiro eletricista com mestrado e doutorado em tecnologia espacial, após uma carreira de quase 40 anos no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Marco Antonio Chamon assumiu em julho deste ano a presidência da Agência Espacial Brasileira (AEB), instituição responsável pela coordenação do programa espacial.
Ele reconhece que nos últimos 20 anos o país avançou menos do que poderia nessa área, enquanto China e Índia desenvolveram-se bastante, mas também tem boas notícias para os próximos anos, como a perspectiva de lançamento, já em 2024, de dois foguetes suborbitais, que entram e saem da atmosfera terrestre, para pesquisas em microgravidade, e dois novos satélites construídos em parceria com a China e a Argentina.
A construção de foguetes suborbitais deve facilitar o desenvolvimento do Veículo Lançador de Microssatélites (VLM), outra meta do programa espacial brasileiro. Nesta entrevista, concedida por plataforma de vídeo, Chamon conta também sobre o plano de incentivar o uso de dados de satélite e de acordos com outras agências espaciais, alguns discutidos durante um encontro científico recente na Europa.
O senhor participou recentemente do Congresso Internacional de Aeronáutica, no Azerbaijão. O que trouxe na bagagem?
Tivemos uma semana tomada de encontros. Reunimo-nos com todas as agências espaciais de relevo, como a norte-americana, a chinesa, a russa e a europeia. O que me deixou especialmente feliz foi que todo mundo queria conversar com o Brasil. Havia dois assuntos principais. O primeiro foi a reinserção do país no cenário internacional. Temos um programa espacial consolidado, ainda que menor que o de outros países, mas com satélites no ar e acordos internacionais de cooperação científica e tecnológica. O segundo foi nossa posição como um parceiro experiente, que faz a ponte com países que estão entrando na área espacial e ainda não têm programas espaciais consolidados. Para essas nações, como é o caso de Colômbia ou Ruanda, é mais fácil conversar com o Brasil do que com a Nasa [agência espacial dos Estados Unidos]. Percebi que somos vistos como um parceiro confiável. Outro sinal da credibilidade de nosso programa espacial é que fomos convidados para participar do Encontro dos Líderes da Economia Espacial do G20 [Selm], ocorrido em julho na Índia [o G20 é o grupo das 19 maiores economias globais mais a União Europeia e a União Africana]. No próximo ano, vamos organizar a primeira Conferência de Economia Espacial da ONU [Organização das Nações Unidas].
No Azerbaijão, houve procura por lançamentos no Centro Espacial de Alcântara (CEA), situado no Maranhão?
O uso de Alcântara como um centro internacional de lançamento de foguetes não está tão rápido como gostaríamos. Mas é preciso lembrar que o objetivo original quando essa base foi criada, há 40 anos, era termos um sítio para lançar nossos foguetes, de modo a conquistarmos autonomia espacial. Há alguns anos, a Força Aérea Brasileira [FAB] decidiu que seria interessante usar a posição geográfica privilegiada do CEA para lançamentos de veículos de outros países. Isso não foi feito antes porque há 20 anos havia poucos países com programa espacial, mas a situação mudou. Hoje são muitos, embora só alguns com capacidade de lançamento de seus próprios satélites e foguetes. Neste ano [2023], uma empresa sul-coreana, a Innospace, fez um teste em Alcântara, justamente porque queria explorar a vantagem da posição geográfica da base. A proximidade com o Equador proporciona economia de combustível. Em 2024 deve haver nova operação da Innospace, provavelmente um lançamento comercial. Também no próximo ano uma companhia canadense, chamada C6, deve fazer um teste de motor em Alcântara e decidir se vai ou não utilizar a base. O interesse por Alcântara crescerá a partir de um primeiro lançamento comercial.
Como avalia a posição do Brasil no cenário espacial?
Há 20 anos, Brasil, China e Índia estavam no mesmo patamar. China e Índia avançaram muito, e ficamos para trás, andamos mais lentamente do que deveríamos. Passamos por épocas de baixo investimento e a continuidade se tornou difícil. Como havia limitações do orçamento, certas áreas do programa espacial ficaram paradas – e isso atrapalhou. Nos últimos anos, conseguimos fazer a manutenção das instalações de Alcântara, mas não expansões ou atualizações. Quando lançamos o satélite Amazonia-1, em fevereiro de 2021, tivemos de fazer o lançamento da Índia com foguete deles. Custou quase US$ 26 milhões [ver Pesquisa FAPESP no 300]. A boa notícia é que há indícios de que as coisas podem melhorar, porque o programa espacial é importante para o governo. O orçamento da AEB continua nos mesmos patamares dos últimos anos, mas tem sido substancialmente suplementado por outras fontes. Em 2023 ocorreram alguns editais para o setor industrial voltados ao desenvolvimento de satélites e de veículos lançadores de pequeno porte.
Qual é o orçamento da agência?
Para 2024, é de R$ 102 milhões, muito próximo ao deste ano. Se quiser uma comparação, o da Nasa é da ordem de US$ 20 bilhões, aproximadamente R$ 100 bilhões ‒ portanto, 1.000 vezes maior. O orçamento da Nasa equivale a cerca de US$ 60 por norte-americano por ano e o da Agência Espacial Francesa (CNES) é de € 35 per capita por ano. O nosso corresponde a R$ 0,64. O governo brasileiro tem usado outras fontes para aumentar os investimentos no programa espacial, de modo que o orçamento real do próximo ano, considerando os aportes extras, poderá ser até quatro vezes maior, o que permitirá que as coisas avancem. Espero que o volume de recursos cresça nos próximos anos.
Quais os planos para o próximo ano?
Em 2024, se o cronograma se mantiver, devemos lançar o foguete VS-50. É um veículo suborbital, porque não vai para o espaço exterior. Seu voo tem a forma de uma parábola: ultrapassa o limite teórico da atmosfera terrestre [100 quilômetros acima do nível do mar] e volta. Ele não consegue, por exemplo, colocar satélites em órbita, mas durante alguns minutos do voo cria-se no foguete um ambiente de microgravidade, no qual podem ser realizados vários experimentos científicos. Além disso, se for bem-sucedido, será um passo importante para a construção do Veículo Lançador de Microssatélites [VLM], pois ambos usam o mesmo motor (ver Pesquisa FAPESP no 311). Para 2024, prevemos também o lançamento de outro foguete suborbital, o VS-30, no Centro de Lançamento da Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte. Também será importante para pesquisas sobre microgravidade. Um voo suborbital provê um ambiente de microgravidade de alguns minutos e pode ser utilizado para os estudos científicos de fenômenos físicos, químicos e biológicos, tais como crescimento de cristais, aquecimento ou resfriamento de materiais e estresse em culturas biológicas. A ideia é de que o melhor entendimento desses fenômenos em condições de microgravidade possa melhorar processos que são desenvolvidos em terra. As perspectivas são boas e têm o condão de chamar a atenção do público e mostrar ao próprio governo que nosso programa tem dado frutos.
Considerando que o lançamento do VS-50 seja bem-sucedido, quais os próximos passos do desenvolvimento do VLM?
Se o primeiro voo do VS-50 for exitoso, seguramente haverá um segundo, em 2025, porque é preciso fazer vários testes para garantir que as coisas aconteçam de maneira segura. Em paralelo, devemos começar a preparar o VLM. O primeiro lançamento do VLM-1 está previsto para 2026. O VLM-1 é um foguete de propulsão sólida. Já o VLM-X, uma evolução de nosso lançador, tem dois motores de propulsão sólida, herdados do VS-50, e um terceiro motor, de propulsão líquida, que está em desenvolvimento no IAE [Instituto de Aeronáutica e Espaço]. Não há ainda previsão para o lançamento desse foguete.
Quais suas prioridades à frente da AEB?
Inicialmente preciso acalmar meus amigos da indústria e dizer que o programa espacial é um programa de Estado. Tenho obviamente alguma autonomia, mas existem metas, diretrizes e compromissos já estabelecidos que serão mantidos. Do ponto de vista de tecnologia, temos duas linhas, que chamamos de upstream e downstream. A primeira lida com infraestrutura, as bases de controle de satélites, a recepção de dados, as grandes antenas. É bastante cara, tem de ser sustentada pelo governo e inclui instituições como o Inpe e o DCTA [Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, da FAB], que contratam as empresas para a construção de satélites e foguetes. A segunda linha, que pretendo fortalecer, é o uso das informações do espaço, fornecidas por satélites. Empresas privadas poderiam agregar valor aos dados e vender serviços, para fazendas, empresas e para o próprio governo. Os dados de nossos satélites são públicos, o que facilita a entrada de empresas privadas no setor. A ideia seria utilizar os dados e gerar produtos que possam ser utilizados por terceiros. Por exemplo, dados meteorológicos e de umidade do solo podem ser processados e transformados em produtos e serviços para a agricultura. No Brasil, a face mais visível da aplicação de dados por satélite é o monitoramento de desmatamento, mas as imagens precisam ser tratadas e interpretadas. Hoje é o Inpe que faz isso, mas eu gostaria que fosse feito também pelo setor privado, de modo a favorecer a criação de empresas, de empregos e de renda.
O que tem feito para aumentar a participação do setor privado nessa área?
Já conversei com os diretores de alguns parques tecnológicos para que possamos mobilizar principalmente as empresas pequenas, que tendem a ser mais ágeis e inovadoras. Essas novas oportunidades de negócios devem se tornar sustentáveis com o tempo, mas no início provavelmente precisarão de um suporte do governo. Já estamos trabalhando também nessas possíveis formas de apoio. A Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil [Aiab], por exemplo, tem mais empresas do setor upstream do que do downstream. Precisamos fazer crescer as duas partes, mantendo a capacidade de fabricar equipamentos e aumentando o uso dos dados. Queremos ampliar também os acordos internacionais de cooperação. Por meio de acordo com a China, com quem já trabalhamos há muito tempo, estamos desenvolvendo outro satélite, o CBERS-6, no âmbito do Programa Sino-brasileiro de Satélites de Recursos Terrestres. Um entendimento ainda mais recente, com a Argentina, resultou no projeto do satélite Sabia-Mar.
Quais as diferenças entre eles?
São dois satélites distintos. O CBERS-6 é um satélite diferente dos que temos feito com a China. Nesse programa, iniciado há quase 40 anos, fizemos satélites ópticos, que tiram fotos, e com uma massa da ordem de 2 toneladas [t]. O CBERS-6 é um satélite radar, vai fazer outro tipo de imagens, usando o que chamamos de tecnologia radar de abertura sintética. Tem a vantagem de poder “enxergar” através das nuvens, coisa que o óptico não faz. Ao mesmo tempo, será um satélite menor, com aproximadamente 700 quilogramas [kg]. Ele será montado sobre a Plataforma Multimissão [PMM], uma estrutura genérica desenvolvida pelo Inpe nos anos 2000 e que foi empregada na construção do satélite Amazonia-1. Gostaríamos de desenvolver nossos próprios radares, mas esse dispositivo ainda será fornecido pela China. A data otimista de lançamento é 2028.
E o Sabia-Mar?
Está previsto para 2026. Ele vai fornecer informações sobre a qualidade da água das zonas costeiras e continentais, porque o Brasil tem bacias hidrográficas, hidrelétricas e açudes grandes o suficiente para serem visíveis com satélite. Vai mostrar, por exemplo, a quantidade de clorofila na água, importante para avaliar a absorção de carbono e as mudanças climáticas. Na realidade, são dois satélites, os argentinos fazem um e nós outro, cada um com cerca de 700 kg. A ideia é que eles trabalhem juntos para obter o dobro de informação. Outra diferença é que faremos o satélite inteiro, enquanto no programa com a China seremos responsáveis pela metade dele. Poderemos também aproveitar a Plataforma Multimissão para o Sabia-Mar. Já temos 60% da plataforma pronta.
Ao assumir a presidência da AEB, o senhor comentou que o programa espacial brasileiro pode ajudar a diminuir a desigualdade social no país. De que maneira?
Temos buscado os caminhos. Uma das formas é reduzir a concentração de empresas do setor espacial em São José dos Campos [SP] e promover a criação ou o crescimento de outras, em outras regiões. Com esse propósito, estamos buscando parcerias com universidades, parques tecnológicos, federação de indústrias e governos estaduais e municipais para promover atividades espaciais localmente. Isso pode ser feito por meio da construção de pequenos satélites. Para satélites grandes, a infraestrutura necessária também é grande, mas os pequenos promovem o desenvolvimento de empresas e a formação de pessoal especializado. O uso de dados de satélites sobre desmatamento, por exemplo, pode ser feito localmente por empresas privadas. É preciso, claro, um plano de negócios, mas o investimento não é alto, essencialmente em computadores, programas e pessoal. É bom lembrar que adotamos uma política de dados aberta, ou seja, as imagens de satélites e as informações sobre o clima são gratuitas ou de custo baixo. Esse tipo de serviço movimenta a economia local e pode amenizar as desigualdades regionais.
Como está a participação brasileira no Artemis? Mandaremos outro astronauta brasileiro para o espaço ou para a Lua?
Nosso objetivo no projeto Artemis [programa de voo espacial tripulado da Nasa] não é enviar um astronauta brasileiro à Lua, embora certamente vamos colocar outro astronauta no espaço, talvez ainda nesta década. Isso gera visibilidade, mas não é a coisa mais importante do programa espacial brasileiro. Seu objetivo primordial, desde o início, é gerar benefícios para a sociedade. Como outros países, assinamos apenas a parte mais genérica dos chamados Acordos Artemis, que são declarações de princípio sobre o uso pacífico do espaço, a preservação da sustentabilidade do espaço, a troca de dados etc. Nossa pretensão no Artemis é dupla. A primeira é fazer ciência utilizando a Lua como plataforma. Com apoio do Inpe, o ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica] está projetando um satélite pequeno, de 10 ou 20 kg, para ser colocado na órbita da Lua. Ele fará medidas científicas sobre como o Sol se comporta e incide sobre a Lua e, eventualmente, sobre a própria Terra. A segunda área na qual pretendemos trabalhar – e a Nasa já mostrou interesse – é a chamada space farming, para produção de alimentos no espaço. Já temos um acordo assinado com a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] e agora estamos buscando os recursos.
Sua carreira de pesquisador está lhe ajudando a exercer agora um cargo executivo?
Meus quase 40 anos no Inpe facilitam bastante o trânsito na área espacial, que ainda é pequena no país, mas está crescendo. Ao assumir a AEB, já conhecia boa parte do pessoal do Inpe, do ITA, da Força Aérea, das empresas e das universidades. Não concordo com todo mundo nem todos concordam comigo, mas nossas discussões têm sempre um caráter técnico, nunca um caráter pessoal, de modo que mantemos as relações de amizade e profissionalismo. Geralmente conseguimos conversar e estabelecer uma linguagem e objetivos comuns, e assim as coisas andam mais rapidamente.