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Matou a Liberdade e foi ao cinema

Site revela documentos de como a ditadura censurou cineastas brasileiros

REPRODUÇÃO / ENCICLOPÉDIA DO CINEMA BRASILEIROLúcio Flávio, o passageiro da agonia, de Hector BabencoREPRODUÇÃO / ENCICLOPÉDIA DO CINEMA BRASILEIRO

O que os olhos não vêem o coração não sente. Foi com esse espírito que o regime militar atuou sobre a cultura brasileira, mutilando e proibindo livros, filmes, peças e músicas, no longo período que vai de 1964 até 1988, quando, enfim, a nova Constituição aboliu de vez a censura no país. “Nosso esforço criador é imenso, mas a eficiência incrível, maravilhosa, racional que a censura faz para destruir tudo é maior ainda. Do serviço público, ela é uma das raras coisas que funcionam neste país”, avisou o dramaturgo Zé Celso em 1968.

A posteridade preferiu lembrar-se apenas do lado anedótico dos vetos de censores brucutus e analfabetos. “Esse é um erro grave. A censura afetou a formação de gerações inteiras e foi fundamental na manutenção do regime ditatorial, que não teria durado tanto sem ela. Para os militares, era uma estratégia fundamental destruir a identidade cultural do Brasil e substituí-la pela deles. E o lócus preferido dessa ação foi o cinema”, explica Leonor Souza Pinto, autora da tese de doutorado Memória da ação da censura sobre o cinema brasileiro, defendida na Universidade de Toulouse, e coordenadora do recém-lançado site homônimo (www.memoriacinebr.com.br), que dá acesso gratuito e irrestrito aos processos de censura, incluindo pareceres dos censores, em edição facsimilar.

Partindo da proposta de que “é preciso expor para guardar”, esse primeiro bloco do projeto disponibiliza 6 mil documentos sobre 175 filmes brasileiros, parte do acervo sobre a censura que, desde os anos 1990, está no Arquivo Nacional, em Brasília. “A pesquisa a esses processos derruba a idéia de que a censura era só tacanha, mal-informada e malformada, revelando-se um instrumento organizado, importante pilar de sustentação para a consolidação do regime militar”, afirma. “A ditadura reconhecia o cinema brasileiro como o meio de formação de mentalidades e fortalecimento da identidade nacional e, por isso, não mediu esforços no investimento de uma censura cada vez mais eficiente que não só impediu cineastas de se expressar, mas também acabou por ajudar a afastar o público do cinema nacional.”

O crítico Inimá Simões, autor de Roteiro da intolerância, igualmente não subestima o poder do veto. “O cinema nos anos 1960 e 70 era um grande instrumento de mobilização e houve, por parte da ditadura, um claro projeto de controle da sociedade por meio dele. A censura não era, como se pensa, feita por um bando de idiotas.”Toda regra, é claro, admite exceções. Como o censor que via nos filmes de kung fu um canal de difusão de teses maoístas. Ou um seu colega que definiu assim o enredo de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade: “História de um preto que vira branco e vai para a cidade dar vazão aos seus instintos sexuais, voltando depois para a selva”. Em Como era gostoso o meu francês a censura podia ser motivada por brios nacionais ofendidos em sua macheza: “O pênis do francês é maior do que o dos índios brasileiros. Assim não dá”, reclamou um policial para o diretor do filme, Nelson Pereira dos Santos.

O que começou comédia terminou como tragédia. “A censura foi se adaptando às necessidades políticas da ditadura de forma gradativa. Até 1967 ela é moralista, em sintonia com anseios da sociedade conservadora brasileira e da Igreja, ambas simpatizantes e atores do golpe”, conta Leonor. Nesses tempos, a proibição total era rara e o que abundava eram os cortes. A censura está mais ocupada em tirar da vista do povo o que julgava inapropriado. O que incluía exigir até mesmo de Zé do Caixão que mudasse o fim de seu protagonista ateu em Esta noite encarnarei no seu cadáver, obrigando-o a gritar: “Deus, eu creio em tua força”. Eram os tempos da censura feita por esposas de militares, ex-jogadores de futebol, classificadores do Departamento de Agropecuária, contadores, apadrinhados, que passam a julgar o que os brasileiros podiam ou não assistir. Durante as sessões de censura, quando viam algo “impróprio”, tocavam uma sineta e o projecionista colocava um papel no trecho a ser cortado.

Ainda assim o cinema nunca deixou de ser visto pelos militares como um assunto sério. “O governo militar reconhecia o cinema como uma força transformadora importante. Prova disso foram os filmes do Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), responsáveis pela desmoralização da imagem de Goulart. Produzidos em 1962, já revelam a visão da direita sobre o potencial do cinema. São filmes de excelente qualidade técnica, mostrando um grande investimento, de capital e esforço, na sua produção.” Segundo a autora, após reconhecer o potencial das telas, torna-se uma obsessão da ditadura afastar o público do cinema autoral. Para sorte da nossa cultura, os cineastas insistiram em fazer filmes.

“O crítico francês Georges Sadoul mandou, por meio de Roberto Farias, um recado para os diretores brasileiros: ‘Façam seus filmes, como for possível. Não parem. Porque um dia isso vai passar e, nesse dia, os filmes estarão lá, para contar essa história'”, lembra Leonor. Se não conseguiram fazer as obras com que sonhavam, os diretores deixaram um legado notável de resistência, em especial após o AI-5, em 1969.

Mas já a partir de 1966 a censura vai mudando seu foco e, aos poucos, se preparando para a repressão à expressão política. Censores fazem cursos na Universidade de Brasília, com o crítico Paulo Emilio Salles Gomes, e nos pareceres começam a aparecer, lado a lado, cortes de teor moral e ideológico. Em El justicero, de Nelson Pereira dos Santos, de 1968, “a análise dos censores indica a presença de cenas e frases de baixo calão misturadas aos chavões conhecidos da propaganda subversiva”. Todas as cópias foram apreendidas e destruídas. Nelson só verá o filme novamente anos depois. “Em 1967, diretores e chefes de censura, até então funcionários civis, são aos poucos substituídos por militares e, ao final de 1968, quase todo o quadro de direção é militarizado. Com o AI-5, e a extensão da censura a todos os produtos culturais, entra em cena a proibição bem organizada, feroz e implacável”, fala Leonor.

Cada vez mais os censores são treinados a descobrir mensagens subliminares seja onde for. Em Macunaíma, por exemplo, um censor mandou cortar as cenas em que a atriz Joana Fomm aparecia com um vestido que teria as cores da Aliança para o Progresso, organização americana odiada pelos militares. O parecer de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha, mostra essa mudança de olhar da censura: “Glauber aproveita bem o tema que escolheu para fazer, de forma sub-reptícia, pregação política. Sugiro cortes para as cenas em que o diretor faz isso. Quanto às cenas de violência, apenas chamo a atenção da douta chefia para as mesmas, pois considero que num filme todo violento elas são essenciais”. Sangue, sim. Idéias, não.

Veneno
“Vejo, senhor chefe, a utilização de simbologia ardilosamente arquitetada para impressionar espíritos desprevenidos, que pode servir de perigosa arma dentro da estratégia da ação subversiva, tendo o escopo de transmitir mensagens revolucionárias através de imagens aparentemente ingênuas, mas que contêm, sublinarmente, o veneno insidioso da propaganda comunista”, alerta o parecer de Cabeças cortadas, também de Glauber. A mulher de todos, de Rogério Sganzerla, traz uma lista de cortes cuja ordenação é sintomática: “1. Cortar a cena em que aparece um jornal exibindo o título Delfim Neto diz que 69 será ano de ouro; 2. Cortar a cena em que a mulher aparece dançando com os seios nus; 3. Retirar da trilha sonora a frase ‘não existe liberdade individual sem liberdade coletiva’ etc.”. A cada linha, a “dialética” entre moral e política.

“Uma cena mostrando um jovem de punhos fechados contra a opressão e cantando a Internacional estava no mesmo patamar de outra cena em que um casal aparece envolvido em atividades sexuais. A censura se esforçava em ressaltar o ideal da época, que preconizava estar o comunismo internacional entranhado no todo da vida cotidiana. Para os teóricos da segurança nacional, mostrar sexo antes do casamento, críticas ao autoritarismo dos pais, revolta dos adolescentes, tudo eram “manifestações do comunismo” para destruir as famílias e as instituições. Era um vírus invisível a olho nu, só percebido pelas pessoas preparadas, como os censores se sentiam”, explica Inimá Simões.

Nos anos 1970, porém, o mesmo governo que reprimiu, uma década antes, as pernas com meias de Fernanda Montenegro em A falecida, de Leon Hirszman, foi conivente com a ascensão da pornochanchada. “Essa é a pergunta que me faço ao analisar o segundo bloco de documentos da censura, em breve no site. Minha intuição, ainda inicial, me faz pensar que o estímulo à pornochanchada foi mais uma forma encontrada pela ditadura para afastar os espectadores dos cinemas. Ainda não estou certa, mas que outro objetivo haveria em incentivar um tipo de cinema que obviamente iria provocar a ira da burguesia conservadora e formadora de opinião?”, questiona Leonor. Para o crítico Inimá, a leniência com os filmes de mulher pelada também funcionou como forma de distanciar os cineastas dos assuntos sérios. Davam dinheiro sem provocar dor de cabeça.

No campo político, a boa vontade era mais difícil. Ou melhor, a estratégia cabotina desenvolvida por alguns censores em liberar filmes que achavam que o público não iria entender e, logo, seriam politicamente inócuos. “Partindo da ficção, Glauber consegue fazer do irreal uma idéia mais perfeita que o original. Contudo o tema não agradará ao público leigo pela sua complexidade e mais ainda pela montagem elíptica da narrativa. Trata-se de um filme destinado a uma elite intelectualizada, pois sua construção e expressão é por demais cartesiana, buscando algo abstrato para expressar um problema político”, observou um censor sobre Terra em transe, de Glauber, sugerindo a liberação do filme. Poucos meses depois, um documento confidencial pedia “informar qual censor foi responsável pela liberação dos filmes A chinesa, Terra em transe, esclarecendo, outrossim, qual o conteúdo ideológico dos citados filmes e se houve irregularidades na sua liberação”. É preciso proibir quem não proíbe.

“Até 1966 eram raros os pareceres que pedem avaliação das instâncias superiores. Os censores se sentiam seguros com a sua avaliação. A partir de 1968 isso começa a acontecer com regularidade, o que denota a mudança de direção que se estrutura dentro da censura, de certa forma um reflexo da dubiedade do embate entre militares da linha dura e os mais abertos. Com o AI-5, qualquer erro traz punições. Os censores passam a temer liberar um filme.” Apesar de dissecado pelos censores Os inconfidentes, de Joaquim Pedro, não se achou motivo para proibir o filme (até professores foram convocados para ajudar a descobrir mensagens ocultas). Com o filme já em cartaz, um documento confidencial de 1972 pede esclarecimentos sobre a liberação: “A revista Manchete publicou uma reportagem afirmando que o ‘filme era a história de Tiradentes que os livros não contam’. Há suspeita, então, de que o filme apresente conotações subliminares de caráter subversivo”.

Mesmo ícones nacionais podiam estar sujeitos a problemas. Para que o trailer de Roberto Carlos em ritmo de aventura, de Roberto Farias, fosse liberado, Delfim Netto enviou um pedido para o ministro da Justiça: “Venho solicitar abrir uma exceção no caso do filme, pois se trata de história cujo protagonista é o mais admirado artista popular brasileiro”. O cerco se fechava. “Passa a ser comum os filmes serem ou não liberados pelo diretor-geral da censura, que pegava os pareceres e dava a decisão final a seu bel-prazer”, conta Leonor. Como em Pra frente, Brasil, também de Farias. “A mensagem principal é uma chamada à conscientização, que leva a meditar na perniciosa insegurança em épocas de convulsão intestina. Entretanto, diante da abertura política, não há como negar sua desobrigação censória”, diz um parecer.

Chega-se mesmo a pedir ao diretor para inserir, na abertura do filme, um recado do regime: “Esse filme se passa em 1970, num dos momentos mais difíceis da vida brasileira, quando o governo se empenhava na luta contra o extremismo armado. Seqüestros, mortes, excessos, momentos de dor e aflição. Hoje uma página virada na história de um país que não pode perder a perspectiva do futuro”. Tudo parecia em ordem e o filme foi liberado pelos censores. Farias, porém, recebeu uma nota curta: “Comunico a V.Sa. que esta divisão, após o devido exame, não liberou para exibição o filme Pra frente, Brasil. Cordialmente, Solange Maria Teixeira Hernandez, diretora da Censura”. Dona Solange pensou diferente dos colegas.

Se os cineastas sofreram, o público perdeu o seu cinema. A necessidade de recorrer às metáforas nos filmes, como forma de vencer a censura, fez com que diretor e espectador se separassem. “Nós dificultamos a comunicação conscientemente. Não havia outra opção. A censura era sofisticada, chegava a ser cínica. “Ninguém vai entender esses filmes”, sempre me dizia um censor”, lembra Nelson Pereira dos Santos. Para Leonor, ao serem obrigados a mudar estilos e linguagens para continuar a trabalhar, os cineastas caíram num hermetismo cujo resultado foi a desconfiança do público com os filmes brasileiros, ainda hoje não superada de todo. Muitas vezes, porém, a complexidade não era proposital.

Vários filmes sofriam vetos tão extremos que chegavam aos cinemas praticamente incompreensíveis. “Melhor proibir o filme, pois os cortes são tantos que a fita vai virar um curta-metragem sem sentido”, observa um censor. Alguns diretores colocavam cenas polêmicas para criar “gorduras” que permitissem ao censor cortar sem proibir. “Parece ser essa a intenção do autor, Neville d’Almeida, com Piranhas do asfalto. Mas por se tratar de cinema nacional, demonstrando assim a nossa compreensão cristã às insanidades humanas, sugerimos a liberação do filme desse estróina, cópia carbono de Godard”, esbravejou um censor em seu parecer.

Seja como for, se não fosse Mazzaropi ou Os Trapalhões, o público corria ao ouvir falar em cinema nacional. Por vezes, até exigia a censura deles. Há várias cartas pedindo proibição de filmes em cartaz, denúncias levadas a sério e anexadas aos processos. “É um caso de polícia. Tem cenas que nem mesmo os mais vividos dos mortais pode suportar. Não sou puritana, pois conheço a vida como ela é. Mas estou com nojo de ser mulher. Tenho vergonha de me olhar no espelho. É preciso proibir esse filme”, desabafou uma espectadora em carta ao ministro da Justiça após ver A dama do lotação. Exageros, pois a polícia estava alerta. Relatórios minuciosos confirmam que Glauber, Ruy Guerra e Joaquim Pedro, entre outros, eram vigiados pelo Departamento de Ordem Política e Social (Deops). Com Glauber, a revelação tem um sabor especial: o cineasta queixava-se muito de ser espionado e acabou ganhando fama, injusta, de paranóico.

Embrafilme
Se esse não era o caso do diretor, com certeza a esquizofrenia era a doença de que padecia a censura. Afinal, boa parte dos filmes que eram censurados ou cortados no Brasil recebia o indicativo de “boa qualidade”, que os qualificava a ser exibidos, na íntegra, no exterior (fato que ajudou a salvar muitas fitas para a posteridade, já que ficaram longe da tesoura dos censores). “Daí a criação pelo regime, em 1969, início do AI-5, da Embrafilme, que começa como empresa distribuidora. Isso mostra que a censura reconhecia a qualidade do nosso cinema e sabia como ele ajudava a construir, no exterior, uma imagem de um Brasil democrático, onde o governo “incentivava cineastas”, embora, por aqui, eles penassem para aprovar um filme”, observa a pesquisadora.

Com a democratização, a censura mudou o seu foco e, aos poucos, deixou o cinema livre para atacar o novo grande veículo de comunicação da ditadura, a TV. “Filmes eram liberados para a telona e dilacerados na telinha, quando não eram programados em horários tardios. A visão de que a censura cede com a abertura política é falsa. Na verdade, seu trabalho continua da mesma forma, só que agora controlando a televisão e só se encerra com o fim da censura em 1988”, ressalta Leonor. Diretores passam por uma segunda via-sacra para conseguir a veiculação de seus filmes na televisão. Hoje quem censura é o mercado. “A TV não transgride, não passa dos limites impostos pelo mercado. Se não houve o beijo gay da novela América, com certeza as pesquisas feitas pela Globo mostraram que ela teria mais a perder com patrocinadores do que a ganhar em pontos do Ibope”, diz Inimá Simões. A tesoura do mercado vence até pedra.

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