LUCILA WROBLEWSKIA reorganização da escala de trabalho e o tratamento dos distúrbios do sono em funcionários de uma grande empresa de ônibus interestadual diminuíram de 3,6 mortes, em média, para 0,6 morte a cada 100 mil quilômetros rodados nos últimos anos nas estradas brasileiras. Deixaram de ocorrer 32 mortes por ano depois do trabalho realizado com os funcionários, feito pela equipe do Cepid do Sono, do Instituto do Sono. “Esse é um grande exemplo de como a atenção correta a um problema subestimado pode ajudar de modo concreto toda a sociedade”, diz Marco Túlio de Mello, um dos principais pesquisadores do instituto e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Mello não tem autorização para dar o nome dessa empresa, mas cita dois estudos com entrevistas de motoristas que falam por si sós. O primeiro, de 2000, indicou que 16% dos condutores de ônibus interestaduais assumiram que dormiam ao volante quando dirigiam – em média, oito cochilos por viagem. A segunda pesquisa, realizada em uma empresa interestadual em 2004, indicou que 48% dos motoristas estavam fatigados e com sono ao volante. Túlio Mello dá ainda um outro exemplo, o da primeira empresa de ônibus com quem a equipe do Instituto do Sono fez contato, em 1995. Essa experiência ajudou a moldar alguns dos procedimentos e padrões do setor de difusão do Cepid do Sono, que seria criado em 2000.
Trata-se da Nacional Expresso, de Uberlândia, em Minas Gerais, que serve a seis estados e chega até o Paraguai. Na época, Mello estudava o movimento das pernas em paraplégicos durante o sono e precisava de uma empresa de transporte que levasse voluntários para serem estudados em São Paulo. “Nós topamos transportar as pessoas gratuitamente e em troca ele nos ofereceu examinar e estudar nossos motoristas”, conta Luzmarina de Ávila Fernandes, gerente de Valores Humanos e Qualidade da empresa de ônibus.
Os pesquisadores fizeram palestras para motoristas e pessoal administrativo e convidaram os que apresentavam indício de terem distúrbios a se submeterem a exames de polissonografia no Instituto do Sono. Nesse exame, o paciente dorme em período diurno em um quarto preparado (confortável e à prova de ruído), com eletrodos e sensores na cabeça e no corpo. Depois passa mais dez horas sendo acompanhado para
os pesquisadores fazerem o que é chamado de avaliação objetiva da sonolência (teste das latências múltiplas do sono) com o intuito de saber o quão sonolento está o paciente. No caso da Nacional Expresso, 52% dos motoristas ainda se mostravam sonolentos. “Não era de admirar que os desastres acontecessem com freqüência naquela época”, diz Mello.
O trabalho feito envolveu toda a empresa por dois anos: psicólogo, assistente social, técnicos de segurança no trabalho, médico e gerentes. “Estudamos a fisiologia do sono, compreendemos as suas etapas e, em especial, percebemos a importância de buscar uma coerência entre o ritmo circadiano e o trabalho para tentar padronizar as escalas somente noturna ou somente diurna”, explica Luzmarina. Os motoristas classificados como vespertinos foram colocados em escalas noturnas e os matutinos na diurna – o método hoje está incorporado ao processo seletivo para criar maior segurança na escolha dos novos motoristas.
As famílias foram incluídas nas mudanças. “Falamos com as esposas para conscientizá-las da importância do descanso em casa e os motoristas foram orientados a se preparar para dormir bem”, diz a gerente da empresa. Os resultados compensaram: “Estamos sem acidentes graves há sete anos”.
Mortes nas estradas
O procedimento com outras empresas em que os pesquisadores trabalharam posteriormente segue padrão semelhante, com os avanços naturais trazidos pela experiência. Pode-se medir a importância desse trabalho quando se sabe que o custo médio de acidentes com feridos é de R$ 90 mil e com vítimas fatais é de R$ 421 mil, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), dados de 2004 e 2005. O órgão nacional responsável pela administração do trânsito, o Denatran, estima em 34 mil o número de mortes por ano nas estradas. A falta de sono está diretamente ligada a boa parte desses acidentes fatais. “Escalas de trabalho mal elaboradas podem provocar uma séria privação do sono e vários distúrbios que afetam diretamente o trabalhador”, diz Mello. Os distúrbios mais comuns são insônia, apnéia obstrutiva do sono, síndrome das pernas inquietas, ronco, bruxismo, fala noturna e sonambulismo.
LUCILA WROBLEWSKIEm um estudo realizado nos Estados Unidos em 2001 foram comparados motoristas que não haviam dormido com um outro grupo que havia bebido álcool e um grupo de controle. Os que ficaram acordados horas excessivas e os que ingeriram bebida alcoólica tiveram desempenho abaixo do grupo de controle, em especial nos testes de tempo de reação e coordenação motora. “É por isso que toda informação que conseguimos difundir para o público em geral tem conseqüência quase imediata na sociedade”, afirma Roberto Frussa Filho, coordenador de difusão do Cepid. O risco não atinge apenas profissionais do volante. “Profissionais da saúde em geral estão sujeitos a mais erros médicos quando fazem plantão após plantão, sem dormir”, diz Mello. O mesmo vale para bombeiros, policiais, funcionários de plataformas petroquímicas e siderúrgicas.
Exposições
Esse trabalho de difusão de conhecimento sobre a privação de sono para os trabalhadores de turno e empresas é a face menos visível, mas talvez mais importante das numerosas ações do centro. “O importante é ter informação disponível para quem precisa e sempre tentar levá-la para públicos diferentes”, diz Frussa. Em novembro de 2000 foi criada a exposição artístico-científica Insone durante o 8º Congresso Latino-Americano do Sono no Shopping Nações Unidas, em São Paulo. Foram expostas fotos da fotógrafa francesa Isabelle Rosembaum e da brasileira Lucila Wroblewski sobre o tema, além de poemas de Arnaldo Antunes e painéis com informações sobre fisiologia e higiene do sono, principais distúrbios, abuso de drogas relacionadas ao sono, acidentes de trânsito e problemas específicos verificados em crianças e idosos, tudo abordado de forma didática. Multimídia, a exposição tinha também sons considerados indutores do sono.
“A Insone foi a nossa primeira ação de difusão, talvez até a primeira de todos os Cepids”, diz Luiz Eugênio Mello, coordenador de Inovação e Tecnologia do Cepid do Sono e pró-reitor de Graduação da Unifesp. “Na época, o segundo semestre de 2000, os Cepids já haviam sido aprovados, mas o dinheiro ainda não tinha saído.” Luiz Eugênio achou que aquele era o momento de fazer a exposição por causa do congresso e usou R$ 40 mil da reserva técnica de um projeto de pesquisa pessoal que não tinha a ver com o Cepid. “Depois tive de me justificar em um relatório detalhado e apresentei todas as notas, mas esse foi o jeito que achamos de conseguir levar informação para o público em geral durante um evento específico”, conta.
Três anos depois, em maio de 2003, foi realizada outra exposição, De Somno, dessa vez em parceria com o Sesc São Paulo, na unidade Consolação. A cada dia era abordado um tópico relacionado ao sono por meio de painéis e vídeos distribuídos nas dependências do prédio. Palestrantes se revezaram para falar com a população em geral, embora tenham sido convidados também professores e educadores da rede pública de ensino. Foram distribuídos 10 mil panfletos informativos e a Revista E, editada pelo Sesc, com tiragem de 50 mil exemplares, trouxe o tema na capa. O edifício central do Banco Itaú, em São Paulo, e o Morumbi Shopping receberam mostras semelhantes em setembro de 2004 e agosto de 2005, respectivamente. No total, os pesquisadores estimam que 25 mil pessoas visitaram as exposições e conheceram um pouco mais sobre o sono.
“Esses trabalhos abertos para o público levam informações que, às vezes, salvam vidas”, diz Lia Bittencourt, uma das pesquisadoras que trabalha na linha de frente do Cepid. “Apenas o fato de dizer a pais e médicos que bebês não devem dormir em decúbito ventral pode diminuir o risco de síndrome da morte súbita infantil (morte no berço) em 50%.” Esse foi um dos problemas presentes em um suplemento de 30 páginas escrito pelos pesquisadores em parceria com a Johnson’s & Johnson’s, que rodou 40 mil exemplares e distribuiu para gestantes e profissionais da saúde em clínicas e hospitais especializados. Lia é uma das que se empenham em dar palestras dentro de um programa experimental para estudantes do ensino médio, em São Paulo. As escolas Elvira Brandão, Waldorf Rudolf Steiner e Humbolt receberam os cursos e os alunos participantes foram convidados a visitar as instalações do Instituto do Sono.
Curso para médicos
A pesquisadora defende o mesmo procedimento em congressos médicos sobre sono. “Nos Estados Unidos é comum pacientes e interessados irem a congressos para se informar sobre problemas de saúde porque lá eles têm profissionais que respondem às questões do público”, diz. No Brasil, o pessoal do Cepid do Sono tem levado médicos para atender a essa demanda. “Seria muito bom para o público se nos grandes encontros médicos houvesse sempre especialistas à disposição para tirar dúvidas do público.” Também os profissionais da saúde são alvo dos pesquisadores, que promovem cursos especiais para eles. Até 2007, foram realizados 11 cursos semestrais de especialização para 500 novos técnicos de polissonografia e outros 11 de medicina do sono, para 220 médicos. Os integrantes do Cepid já proferiram 83 palestras, no total, para os diversos profissionais da saúde, e atingiram por volta de 11.600 pessoas.
LUCILA WROBLEWSKIOs cursos para o pessoal da saúde são importantes porque há sempre médicos de todo o Brasil interessados em abrir suas próprias clínicas de distúrbios do sono. A demanda vem crescendo – hoje uma média de 60 médicos por ano buscam informações específicas no Instituto do Sono. Essa procura se justifica: a Unifesp é a única universidade do país que tem a disciplina Medicina e Biologia do Sono (MBS), ministrada para alunos da graduação médica, biomédica e enfermagem. Também é ensinada na pós-graduação em psicobiologia e como especialização médica, além dos cursos que são dados para outras universidades.
Artigos científicos
Desde a criação do Cepid, a publicação de artigos científicos sobre o sono vem aumentando. De 1995 a 1999 o maior número de papers publicados foi 11. De 2000 a 2006, o ano em que a produção foi menor, em 2001, saíram 21 artigos. O pico ocorreu em 2005 e 2006, com 51 em cada ano. Entre eles, um chama a atenção por ser específico sobre os resultados da difusão. Publicado noBrazilian Journal of Medical and Biological Research em 2006, o artigo de Silvia Conway, Sérgio Tufik, Frussa Filho e Lia Bittencourt avaliou ações de difusão entre 2001 e 2004. É possível medir a atividade de difusão pelo número de eventos feitos e pessoas atingidas. Nesse artigo, os pesquisadores procuraram quantificar o impacto modificador das suas atividades de difusão. Verificaram que após numerosas inserções em todos os tipos de mídia, exposições, palestras, aulas e cursos foram atingidos cerca de 2 milhões de pessoas e 55 mil profissionais da saúde. De maior importância, os pesquisadores demonstraram que essas atividades de difusão alcançaram seus objetivos: “Verificamos que após nossas atividades de difusão há mais médicos generalistas encaminhando pacientes para nós já com um pré-diagnóstico correto”, conta Frussa.
Uma boa mostra de até onde podem chegar as ações de difusão são os projetos de lei estacionados em Brasília sobre medicina do sono. Um deles reivindica o fornecimento de CPAP, sigla em inglês que significa pressão positiva contínua nas vias aéreas, um aparelho importante para quem tem apnéia porque torna a respiração regular durante a noite. Nos Estados Unidos e na Europa o CPAP é pago por planos de saúde. Aqui há o projeto de lei com essa proposta, já aprovado em 2005, mas atualmente parado por falta de verba – cada aparelho custa US$ 500.
Outro projeto em andamento proposto com a colaboração do Cepid do Sono é a criação de oito centros de excelência em várias regiões do país bancados pelo SUS com normas específicas para credenciamento em serviço de alta complexidade nos transtornos respiratórios do sono. Por fim, os estudos sobre o sono levaram a uma proposta para que o Denatran desenvolva critério de avaliação dos distúrbios para o motorista profissional (categoria C, D e E) com risco de distúrbios de sono e para indicação de exames de polissonografia na renovação, obtenção e alteração da Carteira Nacional de Habilitação. Esses dois projetos ainda estão em andamento.
Origem
Com tantos resultados, o Instituto do Sono tornou-se um dos Cepids mais ativos na atividade de difundir o conhecimento gerado pelos pesquisadores. Embora exista há sete anos, sua origem está em estudos desenvolvidos pelo professor Sérgio Tufik nos anos 1980, que em 1992 já haviam resultado no lançamento do instituto. A pesquisa científica continua sendo o carro-chefe do instituto, embora o ensino e os serviços na área de diagnóstico e tratamento de distúrbios sejam partes indissociáveis do projeto. São realizadas também pesquisas clínicas para investigar a regulação do sono e os mais eficazes tratamentos para os diversos distúrbios. Por outro lado, o Instituto do Sono é o de maior número de leitos no mundo: 90, divididos entre os bancados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), os pagos pelo atendimento privado por meio de planos de saúde e os usados unicamente para pesquisa.
A parte de difusão do Cepid não recebe nenhum patrocínio, além do que vem da FAPESP. Os trabalhos feitos em empresas que têm trabalhadores de turno são cobrados. “Mas gastamos esse dinheiro com contratação de muitas outras pessoas para fazer o acompanhamento dos funcionários e com os numerosos exames”, diz Túlio de Mello. “Não sobra nada para ser reinvestido em outras atividades de difusão.” Olhando de fora, não parece necessário. Os sete pesquisadores principais e outros 20 que lá trabalham têm sido extremamente eficientes na arte de chamar a atenção para os problemas do sono.
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