Imprimir Republicar

Saúde pública

Melhorar a gestão da saúde não basta

Estudo indica que a única alternativa para evitar o colapso do sistema até o fim do mês é aumentar o número de leitos e respiradores

O hospital de campanha montado no estádio do Pacaembu começou a funcionar no dia 6 de abril

Miguel Schincariol / Getty Images

Simulações de como deverá se comportar o sistema de saúde brasileiro com o aumento do número de infecções pelo vírus Sars-CoV-2 e de internações decorrentes da doença Covid-19 indicam que apenas a melhor gestão de todos os recursos existentes, públicos e privados, não será suficiente para dar conta da explosão de demanda por leitos hospitalares, vagas em unidades de terapia intensiva (UTIs) e ventiladores mecânicos. Se não houver elevação significativa da capacidade de atendimento, com a abertura de novos leitos e UTIs e a instalação de mais respiradores, a procura por esses três tipos de serviços médicos deverá ultrapassar o limite de operação do sistema no país a partir do final de abril.

Delegar temporariamente ao poder público, que hoje administra o Sistema Único de Saúde (SUS), a gestão da rede privada de hospitais, como Espanha e a Irlanda fizeram recentemente durante a pandemia de Covid-19, atrasará em, no máximo, uma semana o colapso do sistema, de acordo com um novo estudo. Mesmo se metade da taxa média de ocupação dos leitos hoje existentes no sistema de saúde fosse alocada para cuidar exclusivamente dos futuros casos associados à pandemia (não se pode destinar aos pacientes com Covid-19 todos os recursos, pois outras doenças continuam ocorrendo), o saturamento dos hospitais seria adiado somente em poucos dias. O outono marca o início de demandas sazonais sobre o sistema de saúde. Em 2019, por exemplo, 45% das internações por causa da dengue, que este ano voltou com força, ocorreram entre março e maio. Esse último mês também sinaliza o começo da temporada de gripe, que igualmente provoca hospitalizações. Diante desse quadro, melhorar a gestão do sistema é importante, mas insuficiente para dar conta do desafio da epidemia de Covid-19, de acordo com o trabalho.

“A única medida que pode alterar essa situação é a expansão da oferta de serviços de saúde”, comenta a estatística e demógrafa brasileira Marcia Castro, da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, principal autora do estudo que fez as simulações, publicado em 1º de abril no repositório MedRxiv. “É preciso construir hospitais de campanha, algo que, felizmente, alguns estados já estão fazendo.” Também assinam o trabalho, que ainda não passou pelo processo de revisão por pares, outro pesquisador de Harvard, um da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e três técnicos do Ministério da Saúde do Brasil.

Entrevista: Marcia Castro
00:00 / 22:10

Hoje cerca de 75% dos brasileiros contam exclusivamente com os serviços do SUS, mantido pelo governo federal, estados e municípios. Cerca de um quarto da população nacional tem planos de saúde ou paga diretamente, de forma particular, por atendimento médico. Segundo o estudo, 67% dos leitos hospitalares e 48% das vagas de UTIs ofertados no país em dezembro de 2019 eram administrados pelo SUS. No país, há cerca de 426 mil leitos gerais (2 por mil habitante; a Itália tem mais de 3 e a China mais de 4) e 60 mil vagas de UTIs, segundo o Datasus. A quantidade de respiradores está na casa das 65 mil unidades, com dois terços deles administrados pelo SUS. Esses números apresentam grandes variações em razão de diferenças e desigualdades regionais. No Amazonas, mais de 80% dos leitos são mantidos pelo SUS. Em algumas partes do país, como os estados do Pará e Rondônia e o centro-oeste gaúcho, menos de 25% das UTIs estão sob as asas do sistema público (ver mapas abaixo).

O estudo simulou 12 cenários distintos para calcular quando os recursos do sistema de saúde atingiriam sua capacidade máxima de operação em nove macrorregiões em torno de capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Fortaleza, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador e Manaus). Os parâmetros adotados no modelo levaram em conta a quantidade diária de casos confirmados nos municípios pelo Ministério da Saúde até 27 de março (3.417 ocorrências e 92 mortes); a dinâmica da evolução da epidemia de Covid-19 em dois lugares distintos (China, onde proporcionalmente houve menos necessidade de internações, e Itália, uma situação extrema, que exigiu mais do sistema de saúde); e a taxa média de ocupação de leitos gerais e de UTI dos hospitais públicos por outras condições clínicas em 2019, respectivamente, de 45% e 85%. Essas porcentagens foram extrapoladas para a rede privada, pois os pesquisadores não tinham esses dados para os hospitais particulares. “Se alterarmos os dados que abastecem o modelo, teremos resultados diferentes”, explica Castro. “Se, por exemplo, o número de leitos e de UTIs aumentar e a velocidade de progressão da epidemia diminuir, os recursos do sistema de saúde podem dar conta da situação por mais tempo.”

Cada cenário foi rodado mil vezes até o ponto em que, de acordo com as simulações, 10% da população brasileira teria sido infectada pelo Sars-CoV-2. Depois desse limite, o crescimento da epidemia deixa de ser exponencial e as simulações perdem força. Três parâmetros ditaram as condições de cada simulação. O primeiro diz respeito à quantidade de leitos, de vagas de UTIs e de ventiladores colocados à disposição dos pacientes com Covid-19. Para essa variável, havia duas possibilidades: o sistema de saúde seguiria usando seus equipamentos de acordo com as taxas médias de ocupação do ano passado e dedicaria os recursos que sobrassem para a pandemia; ou a rede de hospitais reduziria à metade a infraestrutura médica usada em 2019 para os demais problemas de saúde e concentraria esforços para conter a Covid-19.

O segundo parâmetro trata da proporção de infectados pelo novo coronavírus que demandariam internação em leitos de terapia intensiva. Novamente, para esse quesito, existiam duas alternativas: 5% dos infectados precisariam de UTI, como ocorreu na China, ou 12%, que é o quadro mais dramático, da Itália. O terceiro parâmetro enfoca a forma de gestão do sistema dos hospitais. Nesse item, havia três possibilidades: a demanda pelos serviços seguiria a proporção atual de usuários dos sistemas público e privado de saúde; 80% dos atendimentos seriam fornecidos pelo SUS; ou os hospitais privados passariam a ser temporariamente administrados pelo poder público, unificando a rede. No final de todas as simulações, os resultados para cada macrorregião não apresentaram diferenças substanciais. No máximo, ocorria o adiamento do colapso do sistema por alguns dias.

Para o médico Victor Wünsch, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), que não participou do trabalho de Castro e seus colaboradores, os diferentes níveis de governo estão se preparando para o pico da epidemia da Covid-19, com a construção de hospitais de campanha e a ampliação da oferta de leitos em UTIs. Os primeiros hospitais de campanha, como o do estádio do Pacaembu, em São Paulo, com 200 leitos de baixa e média complexidade, começaram a funcionar nesta semana. “Essas iniciativas estão de acordo com o proposto pelos autores do trabalho. A disponibilidade de ventiladores pulmonares me parece uma situação mais complicada. Não sei se as iniciativas propostas serão suficientemente rápidas para evitar a escassez desse equipamento.”

Embora, segundo o estudo, a unificação das redes pública e privada não altere substancialmente o nível de resposta do sistema à pandemia, essa ideia não foi descartada pelo Ministério da Saúde. Na sexta-feira, 3 de abril, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse, em reportagem do portal UOL, que “se (o SUS) precisar (de leitos privados), vai usar”.

Constituição do SUS
A pandemia de Covid-19 pressiona a rede de serviços de saúde dos países de uma forma nunca vista nas últimas décadas. Mesmo nações ricas com sistemas públicos de acesso universal, como o Reino Unido e a Itália, não têm dado conta da demanda por internações e respiradores. Nos Estados Unidos, novo epicentro da pandemia, onde não existe um sistema público de saúde, quem não tem um plano privado pode simplesmente ficar sem atendimento. No final de março, um adolescente de 17 anos morreu de Covid-19 na cidade de Lancaster, na Califórnia, depois de seu atendimento ter sido recusado por um hospital do estado. O jovem não tinha seguro saúde. Essa situação, em tese, não deve ocorrer no Brasil, onde o acesso a atendimento médico gratuito é garantido a todos pelo SUS. “Esse sistema é uma grande fortaleza do país”, afirma o médico Luiz Augusto Fachinni, do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), estudioso de ações no âmbito da saúde da família. “Mas a pandemia chega em um momento em que o SUS está fragilizado.”

Além das desigualdades de atendimento entre as regiões do país, e mesmo dentro de cada região, o sistema público de saúde tem sofrido com subfinanciamento crônico e redução ou extinção de programas, como ocorreu no ano passado com o Mais Médicos. Em 2019, o governo federal destinou ao SUS R$ 122,2 bilhões, os estados R$ 75,8 bilhões e os municípios R$ 84,8 bilhões. No início dos anos 1990, Brasília chegou a financiar mais de 70% dos gastos com o SUS. Hoje esse índice chega a 43% e estados e municípios, juntos, investem mais do que o governo federal no sistema. Segundo dados do Datasus, o SUS e a rede privada contavam com 465 mil leitos gerais em outubro de 2005 (quando a população do país tinha 25 milhões a menos de habitantes). O número equivale a 39 mil postos a mais do que hoje. No mesmo período – e aí está uma boa notícia – o número de vagas de UTI passou de 33 mil para os atuais 60 mil. Antes da eclosão da pandemia de Covid-19, existiam cerca de 50 mil leitos de UTI na China, segundo artigo publicado em janeiro deste ano na revista Critical Care Medicine. Na Itália, há atualmente 8 mil vagas de terapia intensiva.

Se há problemas em preparar o SUS para responder aos casos de Covid-19, sem ele seria quase impossível coordenar essa tarefa. Caso a pandemia da doença tivesse surgido antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, que tornou um direito universal o acesso gratuito à saúde pública, mais da metade dos brasileiros poderia não ter acesso a qualquer atendimento médico. “Antes da criação do SUS, apenas quem tinha carteira assinada e contribuía com a previdência social tinha direito a atendimento na rede pública de saúde”, lembra a cientista política Marta Arretche, professora da USP e coordenadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. “O SUS é importantíssimo, mas ele está sucateado, sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro, e não sabemos como ele vai responder à Covid-19.”

Segundo a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que abrange dados do trimestre entre novembro de 2019 e fevereiro deste ano, a força de trabalho do país é de 106,1 milhões de pessoas, cerca de metade da população brasileira. Desse total, 93,7 milhões estavam empregadas e 12,3 milhões (11,3%) desempregadas. Dos que não estavam desocupados, 40% tinham empregos informais, sem carteira assinada. Se não houvesse o SUS, desempregados, trabalhadores informais, além das pessoas em desalento (que não estão nem mesmo procurando trabalho) e seus dependentes, não teriam acesso a atendimento. Sem dinheiro para um plano de saúde, teriam de contar com a sorte e a benemerência de instituições filantrópicas, como as Santas Casas de Misericórdia, diante do avanço do vírus Sars-CoV-2.

Artigo científico
CASTRO, M.C. et al. Demand for hospitalization services for Covid-19 patients in Brazil. medRxiv. 1º abr. 2020.

Republicar