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Zoologia

Membros grandes de artrópodes podem ser usados para regular o calor

Besouros e caranguejos podem usar chifres, garras e pinças gigantes para resfriar ou esquentar o corpo

O besouro-rinoceronte Megasoma gyas, da Caatinga, mantém constante a temperatura do chifre enquanto o corpo aquece

Wellima / iNaturalist

Quando a Receita Federal apreendeu 99 besouros da espécie Megasoma gyas na mala de um japonês com voo marcado para a Tailândia, partindo do Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo, um grupo de pesquisadores brasileiros e canadenses teve seu dia de sorte. A equipe queria descobrir se partes desproporcionalmente grandes do corpo de insetos e artrópodes – como as garras dos caranguejos –
podiam servir para regular a temperatura desses animais. Os besouros apreendidos têm longos chifres pontudos.

“Os insetos foram levados para o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo [MZ-USP] e conseguimos ter acesso a eles antes de serem eutanasiados e adicionados à coleção do museu”, conta o fisiologista Danilo Giacometti, pesquisador em estágio de pós-doutorado na USP, com bolsa da FAPESP. Ele é o autor principal dos dois artigos que resultaram da pesquisa e foram publicados em março e maio nas revistas Insect Science e Integrative and Comparative Biology, respectivamente.

Com os insetos em mãos, o primeiro passo do experimento foi aquecer o ambiente em até 30 graus Celsius (°C) e deixar exemplares dos besouros com chifres e sem chifres reagirem ao calor por 15 minutos. Depois, a equipe usou um aparelho para medir as temperaturas do corpo dos besouros a cada 30 segundos por 5 minutos.

Como resultado, o chifre manteve uma temperatura média durante o aquecimento e foi a primeira parte do corpo a resfriar depois que as temperaturas da sala pararam de subir. Foi o oposto do esperado, pois a hipótese era de que a hemolinfa, como é chamado o sangue dos insetos, fluiria para o chifre para não superaquecer o corpo e o tornaria mais quente, como ocorre nos tucanos. Em dias frios, o sangue dessa ave flui do bico para o corpo, esquentando o tórax do animal, mas em dias quentes parte da circulação se concentra no bico, que atua como um dissipador de calor (ver Pesquisa FAPESP n° 162). “Não encontramos o mesmo processo que ocorre nos vertebrados, provavelmente porque os insetos não controlam tão bem o fluxo de hemolinfa e o mecanismo de dissipação ativa de calor não ocorre”, conta o biólogo Alexandre Palaoro, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), um dos autores.

Househopper_jr / iNaturalistO gorgulho Lasiorhynchus barbicornis é menor em climas mais friosHousehopper_jr / iNaturalist

Na dissipação ativa, um mecanismo fisiológico é ativado para a termorregulação. “É o caso de insetos voadores que tremem as asas antes de alçar voo para esquentar o corpo”, descreve Giacometti. Já a termorregulação passiva é uma consequência natural de partes do corpo que têm muita superfície e pouco volume e, por isso, ganham e perdem temperatura com facilidade. “Em M. gyas, o resfriamento do chifre indica que há um processo de dissipação passiva muito forte.”

Giacometti destaca, contudo, que a termorregulação ativa ainda não foi completamente descartada, porque alguns besouros aguentam temperaturas de até 50 °C sem demonstrar sinais de estresse térmico. “Se esquentarmos mais o ambiente, talvez o besouro ative algum mecanismo que ainda não foi verificado.” Além disso, a equipe detectou no tórax o maior aquecimento. É ali onde estão os músculos de voo, nos quais o fluxo de hemolinfa gera muito calor.

O experimento estimulou a criatividade do grupo e eles decidiram convidar o biólogo canadense Glenn Tattersall, da Universidade de Brock, no Canadá, autor principal do artigo sobre o bico do tucano, para se juntar ao grupo e escrever o trabalho publicado na revista Integrative and Comparative Biology. Nele, os pesquisadores reuniram os resultados de outros estudos com artrópodes que têm apêndices grandes em comparação ao corpo do animal e viram como eles se distribuem pelas regiões do mundo. Em geral, essas partes do corpo são resultado de evolução, em que os machos com as maiores presas atraíam fêmeas e ganhavam disputas com outros da espécie.

Depois de garimpar entre os poucos artigos sobre termorregulação em invertebrados, os biólogos reuniram estudos de três besouros – um gorgulho (Lasiorhynchus barbicornis), uma tesourinha (Labidura xanthopus) e um besouro-veado (Lucanus cervus) – e dois caranguejos (Leptuca panacea e L. pugilator), todos com algum tipo de garra, chifre ou pinça grande.

A equipe mapeou os animais conforme o ambiente em que vivem e descobriu que, em climas mais frios, a tesourinha tem apêndices maiores e os gorgulhos, menores, mas nos caranguejos e no besouro-veado não parece haver relação entre o tamanho e a temperatura do ambiente. Os resultados dos besouros indicam que as estruturas selecionadas pela evolução interferem no modo como os animais se relacionam com as várias temperaturas.

Alexandre Palaoro / UFPRO caranguejo chama-maré Leptuca leptodactyla, com cerca de 1 centímetro de largura, tem garra desproporcional ao corpoAlexandre Palaoro / UFPR

Outra descoberta foi que a maneira como a termorregulação vai agir depende muito do formato das grandes partes do corpo. Se forem finas e longas, elas esquentam e esfriam rapidamente. Já estruturas volumosas e compactas esquentam e esfriam lentamente, retendo calor por mais tempo – como uma boa garrafa térmica de café quente em um dia frio.

Sem ter participado dos estudos, o biólogo alemão Klaus Hartfelder, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, considera “difícil ver uma função termorreguladora” no chifre de M. gyas. “A estrutura fixa é feita basicamente de cutícula, diferente do bico do tucano, que é altamente vascularizado, ou mesmo das patas de artrópodes, que têm vários músculos”, diz ele, que estuda a fisiologia de insetos.

Mesmo com essa ressalva, para Palaoro a composição do chifre não exclui por completo a circulação de hemolinfa. “São estruturas que estão muito perto do tórax, onde tem grande quantidade de músculos. Quando o besouro contrai e relaxa os músculos do corpo, toda a carapaça acompanha e recebe hemolinfa”, adiciona ele.

Embora tenha reservas com os experimentos com M. gyas, Hartfelder reconhece que os caranguejos e as tesourinhas podem conseguir regular o calor pela presença de músculos nas suas garras e pinças. “O mesmo ocorre com alguns insetos voadores que usam as asas para aquecer o corpo mesmo sem voar, e precisam desse aquecimento para alçar voo”, acrescenta.

O grupo já planeja novos estudos para testar hipóteses. Um caminho é tentar descobrir como animais de espécies com apêndices para luta grandes e pequenos reagem ao aquecimento e resfriamento. “Temos muitas questões básicas para responder. Ainda mais que qualquer apêndice, até um exoesqueleto, pode ter instrumentos de termorregulação”, pontua Giacometti. “Uma pergunta que queremos responder é em que medida os insetos ou artrópodes conseguem controlar o fluxo de hemolinfa para distribuir calor.” Palaoro lembra que é importante considerar não só o quanto os animais conseguem reter calor, mas também a sua capacidade em variar a temperatura corporal muito rapidamente. “Temos que ter em mente que são bichos muito pequenos. Para uma abelha, voar no sol ou na sombra é completamente diferente. Esse é o lado fascinante dos estudos de variação de temperatura”, conclui o pesquisador da UFPR.

A reportagem acima foi publicada com o título “Bichos pequenos com grandes termostatos” na edição impressa nº 357, de novembro de 2025.

Projeto
Febre comportamental em vertebrados ectotérmicos: Padrões, processos, e implicações ecológicas (nº 25/06560-5); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Carlos Arturo Navas Iannini (USP); Bolsista Danilo Giacometti; Investimento R$ 497.772,00.

Artigos científicos
GIACOMETTI, D. et al. Exaggeration through sexual selection may impact the thermal biology of arthropods. Integrative and Comparative Biology. 1º maio 2025.
GIACOMETTI, D. et al. Regional heterothermy in Megasoma gyas is not related to active heat dissipation by the horns. Insect Science. 6 mar. 2025.

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