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GEOMAGNETISMO

Memórias magnéticas das missões jesuítas

Em ruínas no sul do Brasil, geofísicos recuperam informações de como era o campo magnético terrestre 350 anos atrás

Podcast: Wilbor Poletti

 
     
O piso de argila cozida das ruínas dos Sete Povos das Missões, no noroeste do Rio Grande do Sul, preserva mais do que a memória do traumático processo de catequização dos índios guaranis pelos padres jesuítas, que terminou em uma guerra sangrenta e na expulsão da ordem religiosa e dos seus seguidores daquela região em meados do século XVIII. O material guarda também um registro precioso para entender como o campo magnético natural da Terra varia ao longo dos séculos.

Analisando fragmentos de pisos de três missões jesuítas, os geofísicos Wilbor Poletti, Gelvam Hartmann e Ricardo Trindade, todos da Universidade de São Paulo (USP), descobriram qual era a intensidade do campo magnético terrestre no sul do Brasil na segunda metade do século XVII. “São os primeiros dados da região Sul naquela época”, diz Wilbor Poletti, um dos autores do estudo. “Em trabalhos anteriores, haviam sido analisadas amostras apenas das regiões Nordeste e Sudeste.”

Ao combinar os dados desse estudo e dos anteriores, a equipe de Trindade concluiu que no século XVII a intensidade do campo magnético no sul do país era significativamente menor do que no norte. Essa conclusão indica que um importante fenômeno magnético em atividade no planeta, a Anomalia Magnética do Atlântico Sul (Sama, na sigla em inglês), começou a influenciar a intensidade do campo magnético no continente sul-americano cerca de 200 anos mais cedo do que se supunha. “Diferentemente do que os modelos atuais sugerem, a anomalia já se fazia presente no continente entre 1650 e 1700”, diz Trindade. “Precisamos aprimorar os modelos incorporando esses dados.”

De acordo com a teoria mais aceita pelos geofísicos, o campo magnético da Terra é gerado pela movimentação da camada de ferro líquido que envolve o núcleo sólido de ferro do planeta. Como o núcleo da Terra gira mais rapidamente do que a superfície, surgem correntezas nesse oceano de ferro líquido que produzem um campo com dois polos magnéticos opostos, cada um deles mais ou menos próximo aos polos Norte e Sul geográficos da Terra. Embora o campo na superfície do planeta seja cerca de mil vezes mais fraco que o de um ímã de geladeira, sua intensidade é suficiente para ser detectada pelas bússolas que ajudam navegantes e exploradores a se orientarem pelo globo. Mais acima, no topo da atmosfera, esse campo magnético, ainda mais fraco, age como um escudo antipartículas e desvia para os polos magnéticos da Terra grande parte das partículas eletricamente carregadas que atingiriam a superfície do planeta.

O campo magnético terrestre tem ainda outras peculiaridades além dos dois polos. Algumas regiões do globo possuem um campo magnético mais fraco – e outras, mais forte – do que seria de se esperar, caso o campo fosse um dipolo perfeito. A maior e mais intensa dessas imperfeições é justamente a Sama.

A intensidade média do campo terrestre é de 40 microteslas, enquanto seu valor médio é de apenas 28 microteslas na região coberta pela Sama, que ocupa boa parte da faixa austral do oceano Atlântico, além de uma vasta área no centro e no sul da América do Sul. No centro da anomalia, atualmente situado no Paraguai, o campo baixa para 22 microteslas. Essa intensidade menor afeta o funcionamento de satélites de comunicação e até as observações de telescópios espaciais. O telescópio Hubble, da agência espacial norte-americana, Nasa, não funciona quando passa sobre a Sama.

054-057_Missões_244Para os geofísicos, estudar em detalhe anomalias magnéticas como essa pode ajudar a entender melhor como variações no movimento do ferro líquido no interior do planeta alteram o campo terrestre ao longo do tempo. “A Sama é muito debatida porque pode ser a causa da redução geral na intensidade de todo o campo magnético da Terra que vem sendo observada nos últimos séculos”, explica Poletti. “O campo terrestre é hoje uns 10% menos intenso do que era quando começou a ser medido com precisão, em 1839, por Carl Friedrich Gauss.”

A Sama também já ocupou uma área menor e esteve em outro lugar. Em 2009, Hartmann e Igor Pacca, professor emérito da USP, pioneiro dos estudos em geomagnetismo no Brasil, usaram modelos baseados em registros magnéticos históricos do campo terrestre para reconstituir a evolução da Sama desde o ano 1590. De acordo com o resultado obtido por eles, no fim do século XVI a anomalia cobria apenas uma porção pequena do sul da África e do Atlântico. De lá para cá, ela expandiu e se deslocou para oeste. Ainda segundo essa reconstituição, a anomalia só teria começado a influenciar o campo brasileiro nas primeiras décadas do século XIX.

Em 2011, Hartmann e Trindade publicaram novos dados indicando que a Sama teria se deslocado e se expandido mais rapidamente do que o modelo anterior sugeria. Trabalhando com arqueólogos brasileiros e com pesquisadores do Instituto da Física do Globo de Paris (IPGP), na França, os geofísicos da USP reconstituíram a história do campo magnético sobre o Brasil desde o século XVI ao analisar fragmentos de tijolos de construções antigas da Bahia, de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Espírito Santo (ver Pesquisa Fapesp nº 185). Os dados do Rio Grande do Sul, obtidos agora por Poletti, Hartmann e Trindade, dão mais solidez às conclusões anteriores.

O grupo verificou que, antes de 1600, o campo terrestre tinha quase a mesma intensidade em todo o Brasil. Entre os séculos XVII e XVIII, porém, ele diminuiu ligeiramente nas regiões Sul e Sudeste, provavelmente porque a Sama já estaria cobrindo essas porções do país. O campo de todas as regiões brasileiras teria voltado a apresentar mais ou menos a mesma intensidade apenas a partir do século XIX, quando, supostamente, a maior parte do país já estaria sob a Sama.

Sete Povos das Missões
Foi Pacca que, após uma viagem a passeio pela região dos Sete Povos das Missões, sugeriu a Trindade, Hartmann e Poletti que contatassem no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) os responsáveis por essas construções históricas. Pacca percebeu que as ruínas das missões tinham a idade e a localização ideais para preencher uma lacuna importante nos dados sobre a Sama.

As missões foram grandes povoados construídos por índios guaranis catequizados por padres da Companhia de Jesus. O auge das missões ocorreu entre os séculos XVII e XVIII, quando os jesuítas, patrocinados pelas coroas portuguesa e espanhola, mantinham 30 missões na República Jesuítica Guarani, região que atualmente se encontra nas fronteiras entre Brasil, Argentina e Paraguai. Cada missão era governada por dois padres e reunia de 5 a 6 mil índios. “Os padres conduziam a população com disciplina religiosa e com auxílio dos caciques”, diz Raquel Rech, arqueóloga do Iphan que colaborou com a equipe de Trindade.

Ruínas da missão La Santísima Trinidad de Paraná, no Paraguai: pátio calçado com ladrillos

WILBOR POLETTI/IAG-USPRuínas da missão La Santísima Trinidad de Paraná, no Paraguai: pátio calçado com ladrillosWILBOR POLETTI/IAG-USP

A ordem religiosa já havia perdido sua influência junto às coroas ibéricas quando Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Madri, em 1750, redefinindo as fronteiras entre suas colônias sul-americanas. As sete missões no atual território brasileiro foram abandonadas e destruídas na Guerra Guaranítica, de 1754 a 1756. Em quatro delas algumas construções permanecem de pé: São Miguel, São Lourenço, São João Batista e São Nicolau. Das missões de Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga e São Borja, só restam ruínas no subsolo de cidades modernas – parte do material foi recuperado por meio de escavações arqueológicas.

Todas as missões tinham o mesmo plano arquitetônico, com uma grande praça central de terra batida onde aconteciam as atividades diárias da comunidade. Em uma das faces da praça, ficava o complexo principal de edifícios, com uma igreja no centro, o cemitério em um dos lados, e o pátio do colégio e o da oficina dos índios no outro. As paredes desses prédios eram feitas de blocos de rochas de cantaria, talhados e assentados pelos índios, um material inútil para o estudo do campo magnético da época de construção das missões. A casa dos padres, porém, tinha um pátio interno com piso coberto de ladrillos, placas feitas de argila queimada em fornos a temperaturas em torno de 1.000 graus Celsius. Poletti explica que, a temperaturas superiores a 580 graus, os momentos magnéticos do mineral magnetita, presente na argila, alinham-se com o do campo magnético terrestre. O grau de alinhamento depende da intensidade no campo magnético no local onde a argila foi queimada. Com o resfriamento, do material, os momentos magnéticos se estabilizam, preservando a intensidade do campo magnético terrestre daquele momento.

Raquel e a historiadora Nadir Damiani, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, auxiliaram os geofísicos da USP a coletar o material de que precisavam. A equipe selecionou fragmentos de ladrillos das missões de São Luiz Gonzaga, São João Batista e Santo Ângelo, construídas entre 1657 e 1706. Também conseguiu fragmentos de telhas de argila cozida da missão de Santo Ângelo.

Essas medições representam uma nova fase da pesquisa em arqueomagnetismo no Brasil. Em 2011, Hartmann obteve os primeiros registros arqueomagnéticos do país ao estudar o material de construções históricas de São Paulo, Rio, Espírito Santo e Bahia. Na época, só uma pequena parte do material foi analisada na USP. A maior parte dos dados foi obtida no IPGP de Paris. Mais recentemente Poletti usou um mesmo conjunto de amostras para comparar análises feitas no IPGP e na Universidade de Liverpool, na Inglaterra, e calibrar os instrumentos da USP para produzir medidas mais confiáveis. “Podemos agora fazer as análises integralmente em nosso laboratório”, diz Trindade.

Poletti também realizou uma revisão detalhada do banco de dados das medidas arqueomagnéticas já feitas na América do Sul e concluiu que muitos dos dados do continente foram obtidos sem levar em conta fenômenos físicos que, hoje se sabe, podem distorcer as medidas. Pelos critérios atuais, quase todas as medidas de intensidade do campo magnético terrestre obtidas a partir de cerâmicas pré-colombianas precisariam ser refeitas. “Começamos recentemente uma parceria com os arqueólogos Eduardo Góes Neves e Marisa Afonso, da USP, para obter amostras de cerâmicas indígenas da Amazônia”, conta Poletti. “Queremos aprofundar no tempo nossas medições e preencher as lacunas nos dados dos últimos 3 mil anos.”

Projetos
1. Análise do campo geomagnético histórico da América do Sul (nº 2013/16382-0); Modalidade Bolsa no País – Doutorado Direto; Beneficiário Wilbor Poletti Silva; Pesquisador responsável Ricardo Ivan Ferreira da Trindade (IAG-USP); Investimento R$ 102.005,40.
2. Evolução do campo magnético terrestre na América do Sul para os últimos 500 anos (nº 2010/10754-4); Modalidade Bolsa no País – Pós-doutorado; Beneficiário Gelvam André Hartmann; Investimento R$ 228.027,05.

Artigo científico
POLETTI, W. et al. Archeomagnetism of Jesuit Missions in South Brazil (1657-1706 AD) and assessment of the South American database. Earth and Planetary Science Letters. v. 445, p. 36-47. 2016.

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