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Resenha

Memórias médicas de surtos e epidemias

Investigação de surtos e epidemias no Brasil | Guido Carlos Levi e Vicente Amato Neto (organizadores) | Segmento Farma Editores | 56 páginas | Informações: 3093-3300

Resenhas_Surtos e epidemiasEDUARDO CESARDe tempos em tempos o mundo entra em alerta por risco de pandemias de patógenos emergentes (novos) ou reemergentes (conhecidos). Assim foi com a pandemia da peste negra que varreu metade da população da Europa no século XIV, a gripe espanhola que em 1918 matou mais gente do que a Primeira Guerra Mundial, e mais recentemente o HIV e a dengue. Algumas ameaças frustraram-se por razões não completamente compreendidas ou por ação dos governos locais, tais como a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave, na sigla em inglês), o vírus H5N1 e a Mers-Cov (Síndrome Respiratória por Coronavírus do Oriente Médio). Outras estão chegando e já causam enorme preocupação, como a febre Chikungunya e o Zikavirus.

A história dos surtos e epidemias no Brasil é rica e fascinante. Muito bem documentada é a história de nosso médico maior, Carlos Ribeiro, Justiniano das Chagas (1979-1934), que em 1909 foi enviado para investigar um suposto surto de malária no interior de Minas Gerais e acabou por descobrir uma doença nova que hoje leva seu nome. Ou a surpreendente descoberta do norte-americano Raymond Shannon, que identificou larvas do Anopheles gambiae, o mais competente vetor da malária na África, em uma poça d’água em Natal, em 1930. Histórias interessantíssimas, mas que sempre foram contadas muitos anos depois da morte de seus protagonistas.

Foi portanto com duplo prazer que li o livro de meus mestres Guido Carlos Levi e Vicente Amato Neto Investigação de surtos e epidemias no Brasil. Primeiro por se tratar de dois ex-professores meus de quatro décadas atrás; e, segundo, porque se trata de histórias verídicas narradas por seus protagonistas.

O livro não é uniforme, nem no estilo, nem nos temas, nem na profundidade em que os assuntos são tratados. São memórias por vezes muito remotas, com mais de 50 anos de história, por vezes muito recentes; alguns temas são duplicados, outros quase vinhetas, mas todas elas muito interessantes. Percebe-se que são experiências pessoais que tiveram impacto significativo na vida profissional de seus autores. Longe de ser um defeito, essa aparente heterogeneidade é reflexo da maior qualidade do livro; trata-se de uma obra despretensiosa, cujo objetivo explícito no prefácio é a narrativa que não deveria se ater exclusivamente aos aspectos médicos, mas que levasse em conta o pano de fundo social e humano. Os textos, dessa forma, são depoimentos pessoais dos autores, que escolheram situações inusitadas, são muito instrutivos e, às vezes, até mesmo engraçados. A leitura é leve, fácil e demonstra a grande experiência dos autores em suas diversas subespecialidades da infectologia.

A única coisa da qual senti falta foi uma página final com a inserção institucional dos oito  autores dos textos.

Em 1967 o então cirurgião-geral do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, William Stewart, teria pronunciado: “É chegada a hora de fecharmos o livro das doenças infecciosas”. Mesmo que não haja evidências de que ele teria de fato dito tal frase, ela reflete o espírito da época. A realidade é que ainda hoje uma em cada quatro pessoas que morrem no mundo por ano tem como causa a Aids e/ou malária e/ou tuberculose. A dengue põe em risco metade da população mundial e a malária ainda mata uma criança por minuto, quase todas na África. Estamos longe de poder cantar vitória sobre as doenças transmissíveis e o Brasil tem papel primordial no treinamento de especialistas nessa área. Assim, peço licença a meu velho mestre Amato para aproveitar o “resmungo” de uma de suas historinhas neste livro. Nossas universidades têm hoje uma certa obsessão em mandar alunos para estágio no exterior. No caso da medicina, são os alunos estrangeiros que querem vir para o Brasil!

Espero que esse agradável livrinho faça sucesso e, principalmente, que possa inspirar nossos alunos a reconhecer que eles têm muito a ganhar com a experiência local em moléstias infectocontagiosas.

Que ninguém se iluda; a próxima pandemia (provavelmente de gripe) é apenas uma questão de tempo. É essencial que o mundo tenha um número suficiente de especialistas experientes e preparados. O Brasil terá muito com que contribuir.

Eduardo Massad é professor do Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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