Termina em agosto o prazo para que universidades, empresas e institutos públicos e privados de pesquisa substituam o uso de animais por métodos alternativos em testes de potencial de irritação e corrosão ocular, de toxicidade de substâncias no sistema reprodutivo humano e de controle de qualidade de produtos injetáveis – este último comumente usado na avaliação de segurança de vacinas e medicamentos injetáveis a cada lote produzido. A exigência consta de uma resolução publicada em 2016 pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), instituição colegiada do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) encarregada de criar normas para o uso ético de animais e zelar pelo seu cumprimento. O Concea já havia publicado resolução semelhante em 2014, a qual entrou em vigor em fins de 2019, determinando a substituição do uso de animais por 17 técnicas alternativas nos casos de testes de avaliação de mutações genéticas induzidas por substâncias químicas, toxicidade aguda, sensibilidade da pele, entre outras.
As resoluções têm força de lei e preveem punições que incluem advertências, multas e interdição da instituição, em caso de descumprimento. Estima-se que elas afetem igualmente empresas e instituições públicas e privadas de pesquisa, sendo as atividades que exigem registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) as mais impactadas, como o desenvolvimento de novos produtos cosméticos, agrotóxicos, fármacos, medicamentos e vacinas. “Ensaios de toxicidade reprodutiva são muito usados pela indústria farmoquímica para saber se uma nova molécula interfere na capacidade de reprodução humana, enquanto os testes de potencial de irritação ocular ainda são aplicados por fabricantes de agrotóxicos, entre outros”, explica a bioquímica Marize Valadares, da Universidade Federal de Goiás (UFG).
A veterinária Luciana Honorato, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acrescenta que cada método tem uma aplicação específica e determina em sua própria descrição se o seu uso visa a substituição total, parcial ou a redução do número de animais. “Alguns métodos aprovados pelo Concea não funcionam como substitutos independentes ao uso de animais, mas se inserem em uma estratégia inicial de testes em camadas”, explica. É o caso do teste de avaliação de opacidade e permeabilidade de córnea bovina, validado como alternativa ao uso de coelhos em análises de irritação ocular. O método consiste no uso de córneas de bovinos recém-abatidos, as quais seriam descartadas. “Aplica-se a substância de interesse na superfície da córnea para avaliar os danos. No caso de resultados inconclusivos, recorre-se ao uso de animais.”
É certo que o uso de cobaias segue indispensável em muitas pesquisas (ver Pesquisa FAPESP nº 144), como em estudos na área de farmacocinética, que avaliam o caminho que uma molécula percorre no organismo após sua administração. Esse tipo de análise é essencial na definição dos parâmetros de toxicidade relacionados à segurança e eficácia de candidatas a fármacos ou vacinas, como as desenvolvidas contra a Covid-19, por exemplo. “Avalia-se como e a que velocidade uma substância é absorvida e metabolizada pelo organismo, se se acumula em determinado órgão e os possíveis impactos desse processo“, esclarece Valadares. Por envolver interações complexas em sistemas igualmente complexos e interdependentes, é difícil criar um método robusto e internacionalmente padronizado capaz de substituir os modelos animais nessas pesquisas. Uma das técnicas com potencial para resolver esse problema é a de sistemas microfisiológicos, formados por organoides humanos em dispositivos microfluídicos: microchips revestidos com células humanas de diferentes órgãos interconectados em um sistema fechado. “Com ele, seria possível analisar os impactos sistêmicos de substâncias em órgãos distintos”, explica a pesquisadora da UFG.
As normativas do Concea são um desdobramento de um esforço iniciado no Brasil há mais de duas décadas pelo sanitarista e ex-deputado federal Sérgio Arouca (1941-2003). Em 1995 ele apresentou um projeto de lei propondo mecanismos para assegurar o uso ético e racional de animais em atividades de ensino e pesquisa no Brasil, a exemplo do que acontecia em outros países. O projeto tramitou por 13 anos no Congresso até ser aprovado em 2008. A Lei nº 11.794, conhecida como Lei Arouca, regulamentou o uso de animais no país e instituiu as bases para a formação de uma rede de laboratórios devotada à validação de métodos alternativos, como o Centro Brasileiro de Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM), no Rio de Janeiro. A lei também criou o Concea, cujas resoluções se deram todas por intermédio do BraCVAM. “O Brasil avançou muito na última década em termos de legislação sobre o uso de animais na ciência”, diz Valadares.
A Lei Arouca foi aprovada após grande mobilização da comunidade acadêmica, que contestava a existência de leis estaduais e municipais proibindo o uso de animais em empreendimentos científicos sem levar em conta os prejuízos que isso poderia ter na ciência brasileira. Uma das entidades à frente da articulação em favor da lei foi a Federação das Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), então presidida pelo neurocientista Luiz Eugênio Mello, atual diretor científico da FAPESP. “Reunia-me frequentemente com os parlamentares em Brasília para sensibilizá-los sobre a importância da pauta e costurar um consenso entre os líderes dos partidos em relação ao texto da lei”, lembra Mello. Ele avalia que o esforço da comunidade científica contribuiu para que a lei fosse aprovada da forma que os pesquisadores esperavam.
Pouco mais de 190 milhões de animais foram usados para fins científicos no mundo em 2015
Para o médico e biofísico Marcelo Morales, ex-coordenador do Concea, um aspecto importante da legislação foi a definição da classe de animais a que seus dispositivos se aplicavam: vertebrados em geral, como peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. “As legislações municipais que despontavam eram vagas e criavam uma situação de incerteza, pois tornava ilegal o uso de qualquer animal em atividades de pesquisa”, diz Morales, hoje secretário de Pesquisa e Formação Científica do MCTI. “Estudos com insetos e vermes, usados em pesquisas de genética, por exemplo, ficariam comprometidos. A Lei Arouca foi importante porque tirou o efeito das leis municipais, criando um cenário de segurança jurídica e normas éticas para o uso racional de animais.”
Passados 13 anos de sua aprovação, é consenso entre os especialistas que um dos principais avanços promovidos pela Lei Arouca foi a criação de Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas) em empresas e instituições públicas e privadas de ensino e pesquisa que trabalham com experimentação animal. Com isso, todo pesquisador que use modelos animais deve, antes de iniciar sua pesquisa, apresentar um projeto para avaliação dessas comissões em sua própria instituição. “Elas trabalham na avaliação dos métodos alternativos disponíveis mais adequados para o experimento proposto”, diz o biólogo Octavio Presgrave, coordenador do BraCVAM.
A biomédica Monica Andersen, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), informa que as Ceuas são formadas por biólogos, veterinários, professores e pesquisadores de áreas específicas, além de um representante das sociedades protetoras de animais estabelecidas no Brasil. “Elas analisam os projetos de modo a racionalizar o uso de animais de acordo com o princípio dos três erres”, explica a pesquisadora, referindo-se ao modelo proposto pelo zoologista William Russell e o microbiologista Rex Burch, ambos do Reino Unido, em 1959, segundo o qual o uso de animais em experimentos é permitido, mas deve ser reduzido (reduce) ao mínimo, refinado (refine) ou substituído (replace) sempre que possível por técnicas alternativas.
Para a biomédica Debora Fior Chadi, assessora da Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), as Ceuas ajudaram a aprimorar a ciência brasileira. “Passou-se a exigir que os pesquisadores descrevessem em detalhes o uso que fariam dos animais em seus trabalhos e também que justificassem a necessidade desse uso à luz de métodos alternativos disponíveis”, comenta. “Procura-se com isso verificar a real necessidade do uso de animais, as espécies mais adequadas para se alcançar os objetivos propostos e a quantidade necessária.” As comissões determinam ainda que os cientistas criem protocolos assegurando o bem-estar dos animais, de modo que eles sejam mantidos em condições adequadas e tenham seu sofrimento minimizado.
Graças às Ceuas, o impacto das resoluções do Concea nas universidades tende a ser pequeno, pois os pesquisadores já são obrigados a usar métodos alternativos quando eles existem e têm eficácia comparável aos tradicionais. “Não é possível avançar na pesquisa sem que as comissões aprovem os projetos. Todos os pesquisadores que trabalham com animais, mesmo os poucos familiarizados com as normativas, precisam atualizar suas metodologias para diminuir ou substituir seu uso nos experimentos e, com isso, adequar-se às exigências”, comenta Liliana Scorzoni, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São José dos Campos (SP).
Algumas instituições, como a UFSC, vão além e também avaliam os projetos à luz da relação dano-benefício. “Pedimos que os cientistas discorram sobre os retornos de sua pesquisa para a ciência e a sociedade em geral a fim de que possamos avaliar se os danos que serão causados nos animais se justificam”, explica Luciana Honorato, presidente da Ceua da universidade catarinense. “Nem sempre é fácil fazer essa avaliação porque muitos projetos são de pesquisa básica, que envolvem a busca da compreensão científica sem antecipar nenhum benefício particular.” O esforço da UFSC resultou em uma redução de 40% no número de ratos e camundongos criados pelo biotério central entre 2014 e 2018. “Curiosamente, atendemos ao mesmo número de projetos”, diz. O mesmo ocorreu no Instituto Butantan, onde a redução foi de 30%.
Estima-se que pouco mais de 190 milhões de animais foram usados para fins científicos no mundo em 2015 – no Brasil, segundo Presgrave, não há estimativas consolidadas. O número global representa um aumento em relação a 2005, quando cerca de 115 milhões de cobaias foram utilizadas em pesquisas. China, Japão e Estados Unidos são os que mais fazem uso de animais na ciência. Essa tendência é diferente na Europa, onde o número de animais usados para fins científicos foi de 9,39 milhões em 2017. Em 2015, esse contingente era de 9,59 milhões. Os dados constam de um relatório da Comissão Europeia, divulgado em 2020, sobre o estado da pesquisa animal nos países do bloco desde a introdução da Diretiva 2010/63/EU. Em vigor desde 2013, a legislação estabelece regras para o manejo de animais em biotérios e promove testes que causam o mínimo de dor e usam um número mínimo de animais. Nos Estados Unidos, o governo vem pressionando as agências federais de financiamento, como os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), para que explorem alternativas ao uso de animais em pesquisas. A exigência se estende à agência reguladora de alimentos e medicamentos do país (FDA), que nos próximos cinco anos deve apresentar um plano para a redução e aposentadoria de seus macacos.
No Brasil, as exigências vão além das práticas de pesquisa, abarcam também as atividades de ensino. “Praticamente todas as universidades e institutos de ensino aboliram o uso de animais em aulas práticas de graduação”, assegura a veterinária Ekaterina Botovchenco Rivera, coordenadora do Concea. “Eles só podem ser usados em caráter de exceção, em cursos de anestesiologia em medicina veterinária, por exemplo. Mesmo assim, o projeto de aula deve passar pela Ceua, que avaliará as estratégias para reduzir o número de animais.” Esse movimento, ela diz, é importante porque “tem ajudado a incutir uma mudança de cultura nos novos pesquisadores”.
A legislação brasileira de 2008 estimulou ainda a formação de grupos de pesquisa dedicados à criação de métodos alternativos ao uso de modelos animais. A indústria de cosméticos é talvez a que mais avançou nesse sentido, para se adequar às exigências da Anvisa – a agência se baseia nas normativas do Concea para avaliar os resultados dos testes submetidos pelas empresas para registro de seus produtos – e tentar melhorar a sua imagem ante a pressão de parte da sociedade pelo fim do uso de animais. “A grande maioria das empresas de cosméticos no Brasil já atende às resoluções do Concea e há muito tempo usa métodos alternativos na avaliação de seus produtos”, diz Valadares.
No Butantan, uma das instituições que mais realizam testes de controle de qualidade de produtos injetáveis no país, a equipe do químico Wagner Quintilio, ao lado da bioquímica Terezinha de Jesus Andreoli Pinto, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, trabalha em um ensaio para detecção de endotoxinas em testes de controle de qualidade de lotes de soro antiofídico que dispensa o uso de coelhos. Em 2020, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, campus de Araraquara (SP), lançou o Laboratório de Desenvolvimento e Validação de Métodos Alternativos para Avaliação de Segurança e Eficácia de Bioprodutos (LaMABio), que, sob coordenação das micologistas Ana Marisa Fusco Almeida e Maria José Giannini, atua na avaliação da toxicidade e eficácia de substâncias via métodos alternativos. “Desde 2004 investimos em metodologias para avaliação de produtos naturais”, informa Giannini. “A partir de 2010, passamos a trabalhar na padronização de novos métodos para avaliação de toxicidade de produtos farmacêuticos.”
A longo prazo, se novas técnicas e tecnologias forem desenvolvidas, o Concea publicará resoluções com mais métodos alternativos. “Vejo como um caminho sem volta”, diz Valadares.
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