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Paleontologia

Mergulho no Permiano

Fósseis mostram como era o mar que cobria o Sudeste brasileiro muito antes do tempo dos dinossauros

Não se impressione com as miniaturas de plástico e balões com imagens de dinossauros que enchem os laboratórios ocupados pela equipe de Paleontologia do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu. Eles têm efeito puramente decorativo. Na verdade, o principal interesse da equipe coordenada pelo professor Marcello Guimarães Simões está nos restos de animais bem mais modestos, conchas com entre 5 e 10 centímetros de comprimento máximo, que viveram num período anterior ao dos dinossauros, o Permiano, 250 milhões de anos atrás (os dinossauros desapareceram cerca de 60 milhões de anos atrás).

Essas conchas, restos principalmente de moluscos bivalves – o grupo de animais de duas valvas, ou conchas, que inclui os mariscos e as ostras -, podem ser mais importantes do que indica seu tamanho. Elas estão dando valiosas indicações sobre o passado do Sudeste brasileiro, inclusive sobre um mar interior ou mar epicontinental, como é conhecido do ponto de vista geológico, com salinidade variável, que cobria partes de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. E prometem dar ainda mais. A valiosa coleção reunida em Botucatu, com 5 mil exemplares cuidadosamente conservados e classificados, pode ser o ponto de partida para novos e importantes estudos.

“Só é possível encontrar material com idade semelhante, tão bem preservado, em áreas do Permiano do Texas, nos Estados Unidos”, diz o professor Simões, sobre os exemplares coletados em São Paulo. Estudando esses moluscos, a equipe da Unesp pretende determinar como evoluíram, em que condições ambientais viveram e como se formaram os depósitos fossilíferos nos quais foram encontrados. A FAPESP colabora com o grupo de Botucatu desde 1993. Na pesquisa atual, o projeto Estudo Paleoecológico dos Pelecípodes do Grupo Passa Dois (Assembléias de Leinzia froesi, Pinzonella illusa e Pinzonella neotropica, Permiano Superior, no Estado de São Paulo), fez um investimento de R$ 36,6 mil. O projeto, iniciado em 1997, deve ficar pronto este ano.

Passa Dois
As conchas reunidas em Botucatu passaram 250 milhões de anos nas rochas conhecidas pelos geólogos como Grupo Passa Dois, que incluem, em São Paulo, as formações Serra Alta, Terezina e Corumbataí. Elas são encontradas principalmente nas regiões de Tambaú-Leme, Rio Claro-Piracicaba e Porangaba-Bofete. Tais rochas sedimentares contêm moluscos fósseis que viveram num mar epicontinental, ou seja, fechado, como um grande lago, ou apenas com uma pequena saída para o exterior, e águas relativamente rasas.

São exemplos modernos de mares desse tipo o mar Cáspio, entre a Rússia e o Irã, e o mar Negro, que banha Ucrânia, Turquia, Romênia e Bulgária. Mares desse tipo são formados com o levantamento de cadeias de montanhas ou quando há um rebaixamento no nível dos oceanos. Surgem, então, barreiras que fecham as comunicações com o oceano, deixando isolado um grande lago de água salgada. A descoberta dos moluscos, em si, não é novidade. Já em 1918, o cientista austríaco Karl Holdhaus recebeu para estudos vários exemplares coletados em São Paulo e no Paraná. Nas décadas de 1950 e 1960, o professor Josué Camargo Mendes, da Universidade de São Paulo (USP), coordenou pesquisas mais amplas sobre esses fósseis. Paleontólogos do Instituto Geológico da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e da Unesp de Rio Claro também fizeram estudos sobre o assunto. “Os animais foram classificados, mas nunca houve a preocupação de conhecer sua origem, em termos evolutivos”, diz o professor Simões.

Tafonomia moderna
Simões acrescenta que desde o início da década de 1970, quando dois cientistas estrangeiros, o australiano Bruce Runnegar e o americano Norman Newell, apresentaram algumas hipóteses com base nas descobertas do professor Mendes, os estudos sobre esses fósseis permianos estavam praticamente negligenciados. A equipe de Botucatu passou, então, a aplicar conceitos e métodos tafonômicos modernos para o estudo da gênese das concentrações fossilíferas. A tafonomia estuda a origem dos depósitos fossilíferos, compreendendo o ramo da paleontologia que mais se desenvolveu nas duas últimas décadas. “A chamada tafonomia de invertebrados foi iniciada de maneira inédita no Brasil, no âmbito desse projeto”, informa Simões.

Além disso, com a finalidade de investigar as relações de parentesco dos moluscos fósseis e sua autoecologia, o estudo envolveu a a análise cladística e a anatomia funcional. Os resultados desses trabalhos levaram o professor Simões, inclusive, a contradizer o pioneiro Mendes. O professor da USP acreditava que as conchas eram de moluscos de água doce. Simões acha, “com boas possibilidades de acerto”, segundo afirma, que elas não são de animais dulcícolas. “Creio que a hipótese anterior pode ser agora totalmente descartada”, declara. Essa conclusão foi confirmada por vários estudos, alguns dos quais feitos por equipes multidisciplinares.

As pesquisas mostraram que muitos moluscos encontrados nos depósitos do Permiano viviam em condições de alto estresse ambiental, causadas por variações sazonais no índice de salinidade da água, como acontece, hoje, no mar Cáspio. Por ser uma bacia marinha fechada, esse índice variava bastante no lago-mar que cobria o Sudeste. Nos prolongados períodos de chuva, haveria maior aporte de água doce, com subida do nível d’água e diminuição do teor de sal. Nas épocas de seca, as águas baixavam e a quantidade relativa de sal aumentava.

Doce e salgado
Simões acha que descobertas recentes de outros pesquisadores, que encontraram fósseis típicos de água doce (como ostrácodes), ao lado de outras estruturas biossedimentares, tais como os estromatólitos e microbialitos, que são caracteristicamente formadas em ambientes altamente salinos, confirmam essa teoria. “Numa época determinada, pode ter havido uma influência maior da água doce ou o contrário, pois o ambiente variava muito”, afirma. “Outros estudos paralelos, aliás, provam que isso realmente ocorreu.”

Outro aspecto importante é a constatação de que uma alta proporção dos animais cujos restos fósseis foram encontrados em São Paulo era de escavadores da areia. Isso mostra que o mar interno, como o Cáspio de hoje, era relativamente raso, com entre 50 e 70 metros de profundidade. “As feições tafonômicas das concentrações fossilíferas também são evidências de águas rasas”, acrescenta.

União com a África
Fósseis semelhantes aos colhidos em São Paulo foram encontrados na Namíbia e na bacia do Karoo, na África do Sul. Isso reforça a teoria de que América do Sul e África já estiveram unidas, como parte do supercontinente de Gondwana. A área da união teria sido coberta pelo oceano. A separação ocorreu há cerca de 65 milhões de anos e os dois continentes continuam a afastar-se, à razão de entre 2 e 6 centímetros por ano. Antes disso, porém, o mar teria secado e seu leito substituído por uma área desértica, coberta de rochas.

Simões acha que o estudo dos fósseis de conchas marinhas encontrados em São Paulo e no sudoeste da África podem levar a informações interessantes sobre quanto tempo as duas áreas ficaram unidas e quando se deu a separação, mas destaca que esse não é um aspecto primordial do trabalho do grupo de Botucatu.”O mais importante”, diz, “é a reconstituição do ecossistema da época, com a obtenção de informações como a profundidade do mar, a cadeia alimentar, o índice de salinidade, as relações entre as espécies e o processo evolutivo e a extinção dos animais.” Ele não é modesto quanto aos resultados da pesquisa. “Graças ao emprego de conceitos avançados no estudo dos fósseis de invertebrados marinhos, o projeto ajudou a escrever um novo capítulo na paleontologia brasileira”, afirma.

Para isso, os pesquisadores partiram de algumas questões básicas, como a determinação de se os fósseis eram de animais descendentes de antepassados marinhos, de onde vieram, como viviam, do que se alimentavam e como eram sua fisiologia e seu metabolismo. “Queríamos entender os processos envolvidos nas origens das concentrações desses fósseis”, lembra Simões.

Três áreas de estudo foram acionadas simultaneamente, para permitir um estudo mais abrangente do material coletado: a sistemática e a evolução dos animais; a paleoecologia dos animais; e a tafonomia. O estudo da sistemática foi feito com uma abordagem cladística, método de reconstrução das relações de parentesco. Foi a primeira vez que se fez isso com fósseis de moluscos bivalves tão antigos e, nesse setor, o grupo contou com a ajuda de biólogos da USP de Ribeirão Preto. “Isso permitiu eliminar o caráter puramente intuitivo das classificações”, diz Simões.

Quanto à paleoecologia, Simões acredita que foi possível “reconstituir, na medida do possível, como esses animais viviam e sob quais condições”. Para isso, afirma o professor, foram usados “conceitos de morfologia funcional que não haviam sido largamente explorados na paleontologia brasileira.” Ele também garante a adoção de conceitos pioneiros na tafonomia, o estudo da origem das concentrações de fósseis.

Apoio externo
Um dos aspectos mais importantes da pesquisa foi a integração entre paleontólogos, biólogos e tafônomos, algo que, segundo afirma, não é comum em trabalhos desse tipo no Brasil. Dentre os biólogos, o grupo teve o apoio do Departamento de Biologia do campus de Ribeirão Preto da USP, com a coordenação do pesquisador Antônio Carlos Marques. No da tafonomia, do professor Michael Kowalewski, do Departamento de Geologia da Universidade Estadual e Politécnica da Virgínia, dos Estados Unidos.

Simões afirma que com apenas dois anos de estudos os resultados foram tão bons que trabalhos sobre o assunto já estão sendo apresentados em periódicos de circulação internacional, como a revista alemã Facies e o Journal of Paleontology. Também foram apresentados em congressos como a reunião anual da Sociedade Americana de Geologia, realizada em outubro do ano passado em Toronto, no Canadá.

No Brasil, já valeu pelo menos uma distinção: o prêmio professor Josué Carvalho Mendes, outorgado pela Sociedade Brasileira de Paleontologia para a melhor dissertação sobre paleontologia do ano, ganho em agosto pelo trabalho de mestrado Análise cladística dos bivalves do Grupo Passa Dois (Neopermiano), Bacia do Paraná: implicações evolutivas e paleontológicas, de Luiz Henrique Cruz de Mello, da USP e da Unesp. Outras duas dissertações resultantes do projeto, as dos alunos Fernanda de Freitas Torello e Renato Pirani Ghilardi, estavam entre os outros concorrentes ao prêmio.

Na beira da estrada
Os pesquisadores passaram várias semanas no campo, em 1996 e 1997, em busca de material. Isso levou à descoberta de fósseis em novos pontos, como Santa Rita do Passa Quatro, Leme e Tambaú. Uma ocorrência chegou a ser descoberta ao lado da rodovia Castello Branco, entre os quilômetros 160 e 165, no sentido Capital-Interior. Os registros anteriores indicavam a presença de fósseis do período estudado apenas em Piracicaba, Rio Claro e Angatuba.

“O projeto ampliou muito as áreas de distribuição dos organismos”, afirma Simões. Os cientistas já tinham registrado a ocorrência de rochas indicativas da presença dos animais, mas não os fósseis em si. Outra novidade é a descoberta de espécies de moluscos que nunca tinham sido descritas, como Tambaquyra camargoi. “Isso mostra que a fauna era mais diversificada do que supúnhamos”, acrescenta o professor.

Os resultados foram obtidos em condições técnicas muitas vezes adversas, diz Simões. Além das dificuldades apresentadas, muitas vezes, pelos proprietários das áreas, os pesquisadores tiveram que enfrentar os problemas característicos das rochas nas quais os fósseis estão preservados, muito silificadas e extremamente duras. Os blocos, que podem pesar mais de 70 quilos, são levados para os laboratórios, onde começa um paciente trabalho de preparação.

Em cada viagem, os pesquisadores recolhem entre 300 e 500 quilos de material. “Isso demanda longos períodos no campo, em condições nem sempre confortáveis”, diz o professor. Mesmo assim, o grupo de Botucatu se prepara para um novo e ambicioso projeto. Quer estudar rochas do período Devoniano, encontradas em Goiás, Mato Grosso e nordeste do Paraná. Elas são ainda mais antigas que as de São Paulo. Têm cerca de 320 milhões de anos, muito, muito mais antigas que as do período dos dinossauros.

Perfil
O paleontólogo Marcello Guimarães Simões, 35 anos, é graduado em geografia na USP, onde fez o doutorado no Instituto de Geociências. É professor de Geologia e Paleontologia do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu desde 1990. Também é professor do Programa de Pós-Graduação em Geologia Sedimentar do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) e professor visitante do Departamento de Geociências da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Obteve a livre-docência pela Unesp em 1998.
Projeto
Estudo Paleoecológico dos Pelecípodes do Grupo Passa Dois (Assembléias de Leinzia froesi, Pinzonella illusa e Pinzonella neotropica, Permiano Superior, no Estado de São Paulo).
Investimento
R$ 36,6 mil.

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