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IMIGRANTES

Mexendo no caldeirão das raças

Estudo revela que imigrante deu caráter empreendedor a São Paulo

Absorvida pela investigação do escravismo, a historiografia brasileira deixou de lado o estudo das imigrações e seu impacto na vida nacional. A perspectiva, agora, é que esse conhecimento seja ampliado com um trabalho que aborda o tema: Imigrantes, Elites e Sociedade em São Paulo. A pesquisa está sendo desenvolvida no Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp), coordenada por Oswaldo Mário Serra Truzzi e Maria do Rosário Rolfsen Salles. Truzzi é da Universidade Federal de São Carlos e Maria do Rosário do próprio Idesp. O estudo, um projeto temático, tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no valor de R$ 92,3 mil.

O historiador Boris Fausto, em Historiografia da Imigração para São Paulo, assegura que os estudos sobre os imigrantes começaram a ganhar destaque com os “brazilianistas”. O norte-americano Michael Hall, segundo Fausto, abriu esse veio em 1969, quando publicou sua tese de doutorado sobre as origens da imigração em massa para o Brasil, com um capítulo dedicado aos italianos em São Paulo. Para Fausto, “isso se relaciona com o desenvolvimento de estudos sobre etnias nos Estados Unidos e, mais prosaicamente, com um processo generalizado de ocupação de fronteiras”.

Mas o próprio Fausto considera José de Souza Martins, discípulo de Florestan Fernandes, “um dos autores que tomaram a questão imigratória como tema central de suas investigações, buscando integrar a problemática da natureza das relações de produção pós-escravistas com as amplas questões abertas pela imigração”. Já a idéia básica do trabalho de Truzzi é fazer interagir pontos específicos, a serem levantados, com o conhecimento amplo do processo de imigração. Foi a imigração que permitiu ao Estado de São Paulo assumir a feição de uma sociedade diferenciada, “comparativamente mais complexa e mais rica em empreendedores”, avalia.

Desde o final da década passada o Idesp vem envolvendo-se mais estreitamente com o estudo social de São Paulo no contexto nacional, interpretam Truzzi e Maria do Rosário. Para direcionar o trabalho que agora coordenam, eles decidiram-se por uma análise comparativa com a imigração argentina e norte-americana. A metodologia se justifica pelo fato de que, entre 1850 e 1950, quando o Brasil recebeu 5 milhões de imigrantes, os Estados Unidos registraram 25 milhões e a Argentina 6 milhões. Além disso, enquanto 75% dos imigrantes brasileiros eram formados por portugueses, espanhóis e italianos, nos Estados Unidos esse contingente foi muito mais diversificado. Na Argentina, com reduzida população negra e onde o escravismo terminou cedo, a imigração européia teve forte impacto na formação da nacionalidade. No Brasil, último país do Ocidente a abolir a escravidão, a influência européia ficou mais restrita aos Estados do Sul e Sudeste e acabou condicionando a historiografia.

Curiosamente, mesmo as investigações sobre a chegada de africanos ao Brasil acabou prejudicada por uma atitude contemporizadora de Rui Barbosa. Abolicionista, ministro da Fazenda com a proclamação da República, senador e exilado político, Rui Barbosa queimou os dados disponíveis sobre comércio escravo sob o argumento de que representavam uma “página negra da história nacional”.

O trabalho coordenado por Truzzi e Maria do Rosário está dividido em oito blocos distintos mas interativos: 1) Etnias em convívio; 2) Deslocados de guerra e a política imigratória brasileira no pós Segunda Guerra Mundial; 3) Assimilação e seus agentes; 4) Imigração e política no interior paulista; 5) Imigração e criminalidade; 6) Buenos Aires e São Paulo como cidades receptoras de imigrantes; 7) Comparação entre política imigratória do Brasil e Argentina nos anos 30 e; 8) Comparação entre imigração no Brasil e Estados Unidos.

Diversidade cultural
Etnias em convívio envolve basicamente a história do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, inicialmente uma área de ocupação de italianos. Carlos Lemos, pesquisador da Universidade de São Paulo, mostra em O Morar em São Paulo no Tempo dos Italianos que as moradias nessa região receberam o nome de cortiço, com “duas fileiras de cômodos separadas por uma estreita passagem central e apresentando no fundo duas ou três privadas, ao lado a mesma quantidade de tanques de lavar roupas para uso comunitário”. Habitações insalubres e promíscuas, os cortiços alinharam-se ao longo da estrada de ferro com o Rio de Janeiro, a partir de 1875, quando foi feita essa ligação interurbana.

Aprofundando as investigações sobre essa matriz original, as pesquisas do Idesp vão mostrar a chegada dos judeus ao bairro, especialmente entre os anos 20 e 30 deste século. Esses recém-chegados ocupam terras mais elevadas, livres das inundações que ameaçavam a saúde e vida dos italianos com as cheias do rio Tietê, um rio ainda sinuoso, antes de ser retificado. A chegada dos judeus deslocou os italianos, mas os próprios judeus, a partir dos anos 60, foram substituídos por uma população majoritariamente coreana, interpreta Truzzi. Os coreanos ainda dividem espaço com gregos no Bom Retiro e estabeleceram uma relação de patronato com bolivianos.

O bairro do Bom Retiro, na avaliação de Truzzi, é um laboratório privilegiado para a investigação de relações de convívio e conflitos étnicos. Neste caso, a participação dos gregos traz uma contribuição particular. A vinda desses imigrantes foi mais intensa no pós-guerra e desde o início eles eram vistos com certas reservas, suspeitos de abrigarem muitos anarquistas. Como essas etnias se relacionaram ou como se relacionam ainda hoje são fatos muito pouco conhecidos. Quanto aos deslocados de guerra, a intenção é investigar as conseqüências da política imigratória brasileira no pós-guerra, particularmente os fluxosrelacionados ao acordo internacional assinado pelo Brasil para absorver parte de um contingente estimado em 1,7 milhão de pessoas.

Os dados disponíveis, segundo Maria do Rosário, distribuem essa população entre 30% de poloneses, 20% de judeus, 17% de baltas e o restante ucranianos, russos e apátridas, entre outros. Os deslocados de guerra formam uma população que não tem como retornar às suas origens devido a rupturas político-culturais profundas. É o caso dos poloneses, profundamente católicos, que viram a Polônia submeter-se ao comunismo. Neste caso também incluem-se os russos.

Uma particularidade estratégica em relação aos deslocados de guerra é que entre eles havia pessoas altamente qualificadas do ponto de vista intelectual, daí o interesse que despertaram nos países que se dispuseram a recebê-los, cada um com exigências específicas. Os países interessados em alojar os deslocados organizaram missões de reconhecimento. A primeira equipe a chegar aos campos europeus onde eles se encontravam foi a do Brasil, seguida pela canadense, britânica, belga e francesa, além da venezuelana, chilena e holandesa, entre outras.

A Holanda, segundo o historiador Hélio Lobo, citado por Maria do Rosário, preferia operários solteiros de ambos os sexos, enquanto a Inglaterra recebeu famílias. A Austrália buscava operários para a construção civil e agricultores que deveriam viajar sozinhos e só depois se fazerem acompanhar de familiares. O Brasil aceitava famílias inteiras e por isso “foi logo visto com bons olhos”. Mas havia restrições e elas estavam ligadas à idade: cônjuges não podiam ter mais que 50 anos. Também havia limitações quanto a doenças consideradas graves, como a tuberculose, ou antecedentes criminais, além de se recusar a viagem de mulheres desacompanhadas.

As relações e as histórias dessas imigrações são pouco conhecidas, avalia Maria do Rosário. Ela acrescenta que esses contingentes ocuparam áreas da cidade como a Zona Leste e o ABC, além da Lapa, Vila Anastácio e Ipojuca, em São Paulo. Muitos dos representantes dessas etnias, particularmente húngaros, eram intelectuais ou portadores de habilidades variadas, que influenciaram a vida da cidade de forma, hoje, quase anônima.

Por tudo isso os pesquisadores vêem a necessidade de se abordar também o tema da imigração e seus agentes. Os japoneses, por exemplo, que tiveram restrições anteriores, como os chineses, começaram a chegar em 1908. Mas essa imigração era tutelada pelo Estado japonês, que acompanhava o processo de adaptação e fornecia recursos para financiar a compra de pequenas porções de terra, entre outras iniciativas.

Os italianos, ao contrário dos japoneses, sem o acompanhamento do Estado, desenvolveram, como outras etnias, entidades de socorro mútuo para amenizar a sorte dura de grande parte dos que chegavam. Entre os italianos, os intelectuais e os homens enriquecidos transformaram-se em porta-vozes legitimados de aspirações. Já os judeus, com preocupação bem localizada na educação, também se valeram de intelectuais e membros com posses financeiras na interlocução entre a comunidade e as autoridades nacionais. Os judeus, considera Truzzi, “fizeram os saltos mais rápidos entre profissões como comerciantes, numa primeira geração, e ocupações mais nobres, caso de médicos ou advogados, na geração seguinte”. Mas toda essa história ainda é insatisfatoriamente conhecida, alertam.

Interior do Estado
Até o final dos anos 20, a oligarquia cafeeira é a principal responsável pelo fluxo deimigração, especialmente de italianos, para o interior de São Paulo. A crise econômica do final dessa década e início da seguinte e a instalação do Estado Novo, no entanto, modificam inteiramente a política de imigração. Com o Estado Novo, diz Truzzi, “é a União, e não mais os Estados, que assume o controle da imigração”.

O interessante a se observar, neste caso, é que, com a primeira eleição do pós-guerra, em 1947, o perfil dos novos representantes é inteiramente diverso do anterior, com grande participação de descendentes, especialmente de italianos. Esse reordenamento representativo está na base do populismo que vai expandir-se com Getúlio Vargas, mas mesmo esse processo ainda é, em grande parte, muito pouco conhecido, adverte Truzzi.

Para investigar esses acontecimentos foram escolhidas cinco cidades do interior de São Paulo: São Carlos, Araraquara, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Bauru. Bauru, ainda que não tenha tido uma influência como Ribeirão Preto e as outras cidades escolhidas, deve fornecer uma visão contrastante para facilitar a detecção de processos típicos das demais cidades, justificam os pesquisadores.

Criminalidade
Uma das investigações capazes de oferecer dados sobre o processo de integração está nos registros policiais. As investigações nesta área ainda estão começando. Em São Carlos, os estudos partem do ano de 1882, propositadamente de antes da abolição da escravatura. As investigações, neste caso, vão considerar o imigrante tanto na condição de réu quanto vítima. Localizar essas investigações em apenas uma cidade, justifica o pesquisador, “vai permitir que ganhemos em profundidade, ainda que percamos em generalidade”.

O que se pode dizer já nesta fase do trabalho, previsto para estar concluído no próximo ano, é que os choques maiores aconteceram entre italianos e negros e a razão disso, entende Truzzi, “estará ligada à disputa por postos de trabalho, após a abolição”. Levando-se em conta o tipo de relacionamento que os proprietários rurais tinham com os escravos negros, sabe-se, por levantamentos ainda rarefeitos, dos atritos que envolveram esses fazendeiros com a mão-de-obra livre européia. A dificuldade, advertem os pesquisadores, “é que boa parte desses desentendimentos não chegavam à Justiça”.

A historiadora Maria Thereza Schorer Petrone, da Universidade de São Paulo, mostra em Abolição e Imigração Italiana em São Paulo exemplos de ocorrências desse tipo, onde o proprietário rural, confinado a um universo restrito, não tem espaço mental para compreender as necessidades dos novos trabalhadores. Originários de uma sociedade mais sofisticada, eles não podem conformar-se com os padrões atribuídos aos trabalhadores escravos, como partilha da família e recusa na oferta de educação. O trabalho de Maria Thereza, como o de Lemos, envolvendo a ocupação do Bom Retiro, integra o segundo volume do livro A Presença Italiana no Brasil, obra subvencionada pela Fundação Giovani Agnelli.

Buenos Aires
Outro segmento que deve trazer interessantes dados comparativos está relacionado às análises entre imigração em Buenos Aires e São Paulo, a partir de 1880. Essas foram as duas cidades que mais receberam imigrantes na América Latina, segundo os pesquisadores. Em 1890, Buenos Aires era quase incomparável a São Paulo, com uma população dez vezes maior, contabiliza Truzzi. Em 1930, quando o Brasil centraliza sua política de imigração e estabelece restrições, Buenos Aires ainda é quatro vezes maior que São Paulo.

Mas, além da população, há um outro dado significativo que já diferencia essas duas metrópoles latinoamericanas. A Argentina, diz Truzzi, “nunca financiou a passagem dos imigrantes, ao contrário do que fez o Brasil”. Uma das conseqüências dessa política brasileira foi atrair populações mais pobres e, certamente, com menor escolaridade, ainda que tudo isso também deva ser melhor investigado para a obtenção de dados mais consistentes. Para fazer esse trabalho comparativo, os pesquisadores brasileiros terão a contribuição da pesquisadora argentina Alícia Bernasconi, do Centro de Estudios Imigratorios Latinoamericanos (Cemla), em Buenos Aires.

Em 1934, no Estado Novo, o Brasil adota o sistema de cotas para a aceitação de novos imigrantes. Os pesquisadores avaliam que essa decisão pode ter sido influenciada por uma medida semelhante adotada pelos Estados Unidos nos anos 1920. O percentual aceito vai até 2% do contingente étnico registrado no país até 1934. Com o Estado Novo, a legislação prevê ainda uma relação de dois terços de nacionais para um terço de imigrantes entre os empregados de uma empresa.Então, a imigração liberal já é uma cena do passado, especialmente para os chineses. As autoridades brasileiras de imigração, relata Truzzi, “enxergavam os chineses como gente perigosa, viciada em ópio, entre outros problemas”. Para os negros também não havia nenhuma chance, até porque, nesse momento, já estava estabelecida a decisão de se adotar um “branqueamento da população”.

Truzzi se prepara agora para uma pesquisa na Universidade de Chicago, que deverá fornecer os dados capazes de sustentar ao menos uma primeira abordagem na comparação entre as políticas imigratórias desses dois países. A conclusão do trabalho, avaliam os pesquisadores, irá desenhar um cenário novo não só das imigrações, mas também das migrações. A partir dos anos 1930, com as restrições à chegada de estrangeiros, é que se inicia o movimento interno, especialmente as migrações de populações do Nordeste para o Sudeste. Esses movimentos mais uma vez vão reformular o estilo de vida das grandes cidades, especialmente de São Paulo, onde, hoje, o acento italiano divide espaço com o sotaque nordestino.

Oswaldo Mário Serra Truzzi, 42 anos, graduou-se em engenharia de produção pela Escola de Engenharia de São Carlos, da USP. Fez mestrado em administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas e doutorado em Ciências Sociais na Unicamp. É pesquisador no Centro de Ciências Exatas e Tecnologia da Universidade Federal de São Carlos

Projeto
Imigrantes, Elites e Sociedade em São Paulo
Investimento
R$ 92,3 mil

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