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Entrevista

Michael Boris Green: O afinador das cordas

Físico britânico relata como ajudou a reformular nos anos 1980 teoria que pretende descrever tudo o que existe no Universo

Michael Green durante visita a São Paulo em fevereiro, quando assumiu a presidência do conselho científico do ICTP-Saifr

Léo Ramos Chaves

Em parceria com o norte-americano John Schwarz, o físico teórico britânico Michael Green, hoje professor emérito da Universidade de Cambridge e docente da Universidade Queen Mary de Londres, publicou dois trabalhos em 1984 que levaram à chamada primeira revolução das supercordas. Os estudos resolviam inconsistências matemáticas da teoria das cordas, um modelo segundo o qual o Universo seria constituído por filamentos microscópicos, as cordas, que vibrariam em até 26 dimensões do espaço-tempo. Os trabalhos simplificaram a introdução dos férmions – um dos dois grandes tipos de partículas elementares (o outro são os bósons) – na teoria das cordas e revigoraram o interesse por um campo de estudos que estava em baixa.

Formulada originalmente no fim dos anos 1960, a teoria das cordas, em suas versões iniciais, incluía apenas os bósons. Essa categoria reúne as partículas transmissoras das forças eletromagnéticas, nuclear forte e nuclear fraca, como o fóton, o glúon e os bósons Z e W. Essas forças são absorvidas ou emitidas pelos férmions, as partículas de matéria (elétron, múon, tau, três tipos de neutrino e seis de quark). “O que John e eu fizemos foi reformular a teoria das cordas de uma maneira que tivesse férmions e bósons e, assim, pudesse apresentar supersimetria”, explica Green, de 73 anos. “Férmions se comportam de maneira muito diferente dos bósons.” A supersimetria prevê que cada férmion conhecido teria um hipotético bóson como parceiro supersimétrico, com a mesma massa e demais características, e vice-versa.

Green visitou pela primeira vez o Brasil no início de fevereiro. Esteve na cidade de São Paulo para participar de eventos do Centro Internacional de Física Teórica do Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-Saifr), sediado no Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp), cuja presidência do conselho científico acaba de assumir. Nesta entrevista, o físico fala da importância de seus trabalhos e da teoria das cordas.

Quais são suas obrigações e planos como presidente do conselho científico do ICTP-Saifr?
Ainda estou aprendendo sobre o instituto, que é novo e muito ambicioso. Conheço o Nathan Berkovits [diretor do ICTP-Saifr] há muitos anos e é impressionante ver como ele conseguiu montar um centro com interesses amplos. O foco das ciências matemáticas está mudando. Há muito potencial para se trabalhar em temas ligados à biologia. Outras áreas da física teórica, que já eram interessantes, agora estão ainda mais interessantes. Ainda estou me colocando a par de quais são as limitações monetárias do instituto. Com mais dinheiro, é possível ampliar as áreas de pesquisa.

O senhor não tinha relação formal com o ICTP-Saifr antes de ser escolhido para esse posto?

Não. Estive em comitês similares de outros institutos. Há um instituto semelhante em Bangalore, na Índia, de cujo conselho ainda faço parte. Ele é estruturado de forma diferente do ICTP, é maior e seu escopo de atividades também. A questão central é como garantir um orçamento para o futuro. Se há incertezas sobre o financiamento futuro, é difícil atrair pessoas para o instituto.

O senhor poderia comentar por que seus trabalhos com John Schwarz em 1984 foram tão importantes para a área de teoria das cordas?
Esses artigos foram o apogeu de nossa colaboração. Naquele momento, John [do Instituto de Tecnologia da Califórnia, Caltech] e eu estávamos trabalhando conjuntamente havia cinco anos. Todo ano passávamos de três a quatro meses juntos, nos Estados Unidos ou no Reino Unido. A teoria das cordas existia desde o final dos anos 1960, mas a área tinha se enfraquecido no meio dos anos 1970. Isso ocorreu porque houve uma série de desenvolvimentos na área que chamamos de teoria quântica de campos, uma ferramenta básica para construir teorias com partículas elementares. No início dos anos 1970, surgiu, por exemplo, o Modelo Padrão, a explicação para a maioria das observações feitas nos experimentos de física de partículas. Logo depois houve desenvolvimentos teóricos na área que chamamos de supersimetria. Esses avanços atraíram para essas áreas as pessoas que tinham trabalhado nas primeiras versões da teoria das cordas. Mas John e eu continuamos interessados na teoria das cordas, ao lado de poucos colegas. Em paralelo, quem trabalhava com supersimetria enfrentava grandes dificuldades. Então, em 1984, descobrimos que a teoria das cordas evitava a ocorrência de problemas que também afetavam os estudos com supersimetria e outras áreas.

Quais eram exatamente os problemas?
Eram violações que chamamos de anomalias. Há certas propriedades da física clássica, formuladas antes do surgimento da teoria quântica, que são consideradas sagradas, que não podem ser destruídas. Esse é o caso, por exemplo, da lei da conservação de energia e das cargas elétricas. Em sistemas quânticos, essas leis podem ser violadas, mas não em sistemas clássicos. Algumas anomalias são aceitáveis. Outras, como a violação da conservação de energia, representam um desastre. São inconsistências graves em uma teoria. O Modelo Padrão é uma linda teoria, não tem anomalias. Mas, quando se tentava ir além dele e construir uma teoria que explicasse todas as forças da natureza, as tentativas apresentavam anomalias. Sempre nos disseram que iríamos encontrar também anomalias na teoria das cordas. Mas, em 1984, fizemos cálculos e vimos que a teoria das cordas evitava esse tipo de problema de uma forma muito inteligente.

Naquele momento, ainda havia dificuldade de se estruturar uma teoria das cordas que contivesse os férmions e os conectasse aos bósons por meio da supersimetria?
O que John e eu fizemos foi reformular a teoria das cordas de uma maneira que tivesse férmions e bósons e, assim, pudesse apresentar supersimetria. Férmions se comportam de maneira muito diferente de bósons. Dizer que há uma supersimetria que os relaciona não é óbvio e menos óbvio ainda do ponto de vista experimental. Até hoje, não há nenhuma evidência direta experimental de que a supersimetria existe na natureza. A razão do entusiasmo das pessoas pelos nossos trabalhos era bastante teórica. Uma teoria que tem supersimetria tem propriedades matemáticas que permitem entender as coisas de uma maneira mais profunda do que outra sem supersimetria. Por isso, a conexão da teoria das cordas com os matemáticos se tornou enorme. O problema é que nos experimentos de física ocorre sempre a quebra da supersimetria.

O senhor poderia explicar melhor essa questão?
Esse é um conceito difícil. Há simetrias conhecidas na física que não vemos. Vou dar um exemplo fácil. Imagine uma montanha simétrica, com uma bola colocada em seu topo. A bola pode cair para qualquer um dos lados. Enquanto a bola está no topo, há uma completa simetria entre as equações que descrevem essa situação. Mas sabemos que a bola vai cair para um dos dois lados, onde há vales. Quando cair, a simetria será quebrada. O que vemos na natureza com os experimentos é a bola no vale. No topo da montanha, a bola é muito instável. A ideia de quebra de simetria na natureza é muito comum. Se a supersimetria [de bósons e férmions] existir na natureza, também deve ser dessa forma. Para cada partícula do tipo bóson teria de haver, em tese, outra do tipo férmion com a mesma massa. Mas sabemos que isso não é verdade, não deve haver um duplo para cada partícula. Então, se a supersimetria de fato existir, ela deve se apresentar de maneira quebrada. A questão que se impõe é: podemos entendê-la?

Se conseguimos observar apenas uma supersimetria quebrada, como podemos saber que antes ela estava intacta?
Essa é justamente uma das críticas feitas à supersimetria. As pessoas defendem essa ideia por vários motivos emocionais, como acreditar que, de algum modo fundamental, todas as partículas estariam inter-relacionadas. Hoje a supersimetria é o único jeito de estabelecer essa relação entre bósons e férmions. Além disso, as propriedades matemáticas das teorias com supersimetria são tão bonitas. Os matemáticos as consideram belas, o que não quer dizer que haja necessariamente uma boa física por trás disso.

Os equipamentos de que os físicos dispõem hoje seriam poderosos o suficiente para encontrar evidências experimentais da validade da teoria das cordas?
O problema é que não sabemos quais realmente são as predições da teoria das cordas. Quando Einstein estava pensando a relatividade geral, havia uma série de suposições. Assim que formulou sua famosa equação, ele imediatamente reconheceu que ela explicaria a precessão anômala da órbita de Mercúrio e o desvio da luz no eclipse solar.

A teoria das cordas é a busca por uma teoria de tudo, que tenta ir além do Modelo Padrão e unificar a relatividade com a teoria quântica de campos, algo ainda não feito?
Acho que não. Ela não é uma teoria em si. De modo mais geral, é uma estrutura, um arcabouço matemático, para discutir muitas teorias diferentes. Deixe-me dar um exemplo. As pessoas falam de teoria quântica de campos. Ela se desenvolveu depois que a mecânica quântica foi proposta. Paul Dirac [físico teórico britânico que ganhou o Nobel de Física de 1933] foi um dos primeiros a falar de teoria quântica de campos. Ela não define uma teoria, mas a forma de abordar teorias. Penso que a teoria das cordas seja análoga. Ela contém em si uma teoria quântica de campos, como a gravidade de Einstein ou o eletromagnetismo. É uma forma interessante de falar de partes da física teórica. Além disso, eu me pergunto: o que é tudo? Tudo é o que acreditamos ser importante hoje, mas não inclui o que ainda podemos descobrir. Esse conceito não é muito útil.

A imagem que relaciona cordas vibrando em diferentes dimensões a distintas partículas é elegante. Mas essa ideia vai prevalecer?
Sinceramente espero que a teoria das cordas leve a algum lugar, mas suspeito que não se verá uma corda. Precisamos de uma nova linguagem. Para se pensar em uma corda vibrando no espaço, primeiro precisa existir o espaço. A ideia de que o espaço é um pano de fundo estático no qual as partículas vibram é uma boa aproximação. Sabemos por meio da gravitação quântica que o espaço é dinâmico, no sentido de que sua geometria vibra como as partículas que se movem nele. Vou fazer uma analogia grosseira. Imagine uma corda microscópica sobre uma folha de papel. Vista por meio de um poderoso microscópio, a folha apresenta uma estrutura fina que não é homogênea nem contínua. Há variações em sua trama. Então, se colocarmos uma corda minúscula no papel, ela também não será um objeto contínuo. Afinal, o próprio papel apresenta flutuações. A ideia de que é possível separar a corda do espaço em movimento é uma aproximação usada na teoria das cordas perturbativa. Nela, assume-se que o background é liso e não tem estrutura. Essa aproximação permite criar as vibrações quânticas das cordas, mas não as vibrações quânticas do espaço, seja lá o que isso signifique. Esse é o problema da gravidade quântica. Embora não se saiba o que significa, a mecânica quântica, em seu sentido mais geral, exige que a ideia de espaço contínuo seja desfeita a distâncias muito,
muito pequenas.

De 2009 a 2015, o senhor ocupou uma das posições acadêmicas mais reconhecidas internacionalmente: a cadeira de professor lucasiano de matemática na Universidade de Cambridge, ocupada antes por Stephen Hawking e por Isaac Newton entre o fim do século XVII e o início do XVIII. Quais eram suas obrigações na cadeira?
Se Hawking [1942-2018] não tivesse existido, ninguém teria ouvido falar da cadeira lucasiana, apesar de ela ter sido ocupada por expoentes como Isaac Newton [1642-1727] e Paul Dirac [1902-1984]. Hawking foi um grande físico que viveu com um problema de saúde grave, o que é inacreditável. Essa é uma das razões de sua fama. Muita gente não sabe nada sobre a física que ele criou. Não há obrigação alguma em particular. É apenas um título. E é preciso se aposentar aos 67 anos. Na Grã-Bretanha, todas as universidades, exceto as de Oxford e Cambridge, não determinam a idade de aposentadoria. Elas funcionam como nos Estados Unidos. Pode-se ficar quanto tempo quiser. Em situações excepcionais, as instituições podem impor a aposentadoria. Oxford e Cambridge argumentaram que são exceções e que a estrutura de seu corpo docente seria muito afetada caso não fosse imposta uma idade de aposentadoria. As pessoas tendem a ir para Cambridge ou Oxford e não sair mais. Penso que a aposentadoria dos professores é algo bom para as universidades porque há falta de postos de trabalho para os mais jovens.

Quando foi criada, a cadeira lucasiana funcionava como uma espécie de bolsa, não?
Como disse, hoje é apenas um título. A verba para a cadeira lucasiana foi doada por um homem chamado Henry Lucas [1610-1663], um parlamentar, no século XVII. Newton foi o segundo a ocupar a posição. O dinheiro era investido para pagar salários, mas a verba não existe mais há muito tempo. O dinheiro para pagar o professor lucasiano não vem mais desse fundo. Quando se olha para a história, algumas pessoas que ocuparam a cadeira lucasiana se aposentaram rapidamente a fim de assumir outras cadeiras que pagavam melhor. E as pessoas não ligam muito para títulos, ligam para o dinheiro. Embora seja uma cadeira em matemática, muitos dos ocupantes no último século eram da física teórica.

Vamos falar de um tema mais geral. Qual será o impacto do Brexit na ciência feita no Reino Unido?
Ninguém sabe ao certo o que vai acontecer. Para quem trabalha com física básica, como eu, a necessidade de financiamento é modesta. Precisamos de dinheiro para viajar, ter alunos de doutorado e estagiários de pós-doutorado. É pouca verba se compararmos com a demanda da física experimental. No momento, uma grande fração desse dinheiro vem da União Europeia, por meio do Conselho Europeu de Pesquisa (ERC) e do Fundo Marie Curie. A Grã-Bretanha parece que não vai fazer parte dessas entidades, embora haja rumores de que, como Israel e Suíça, poderíamos ser membros associados. O governo britânico prometeu aumentar enormemente o financiamento para a ciência. Há algumas semanas, Dominic Cummings, o principal conselheiro do primeiro-ministro Boris Johnson, disse que quer colocar mais dinheiro em matemática. Se isso vai de fato ocorrer… O momento é muito imprevisível. Para o financiamento de ciência, o Brexit pode até ser bom no fim das contas, mas será terrível do ponto de vista social. Vai nos apartar da Europa. Espero que não corte todos os laços. Colaborações acadêmicas são muito importantes.

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