Imprimir Republicar

Entrevista

Michel Nussenzweig: Caçador de anticorpos

Imunologista nascido no Brasil busca no organismo de quem já teve Covid-19 compostos capazes de combater o novo coronavírus

Michel Nussenzweig, em seu laboratório: equipe parou pesquisas com outros vírus para tentar identificar anticorpos que neutralizem o Sars-Cov-2

Universidade Rockefeller

Em janeiro, a escalada de infecções pelo novo coronavírus ainda começava na China, quando o imunologista Michel Nussenzweig reconheceu que o mundo estava diante de uma situação inusitada e era hora de ele também agir. “Ficou claro que esse seria um grande problema por causa da transmissão de pessoa para pessoa e da rapidez com que estava se espalhando”, conta o pesquisador, que coordena o Laboratório de Imunologia Molecular da Universidade Rockefeller, em Nova York.

Nas semanas seguintes, Nussenzweig e sua equipe, formada por 50 pessoas, deixaram temporariamente de lado as pesquisas que faziam e passaram a buscar no organismo de quem sobreviveu à Covid-19 anticorpos capazes de neutralizar o novo coronavírus. Para isso, os pesquisadores esperam contar com a doação de um pequeno volume de sangue de 100 pessoas que tiveram a doença causada pelo vírus Sars-CoV-2 e se curaram – até o final de março, cerca de 30 voluntários já haviam doado.

Michel é filho de um casal de pesquisadores brasileiros, os também imunologistas Victor e Ruth Nussenzweig (1928-2018), estudiosos da malária. Nascido em São Paulo em 1955, ele passou a maior parte da vida nos Estados Unidos, para onde se mudou nos anos 1960 com os pais, perseguidos pela ditadura militar brasileira. Formou-se em medicina pela Universidade de Nova York e doutorou-se em imunologia pela Universidade Rockefeller, onde é professor desde 1990.

No doutorado, feito sob a supervisão do imunologista canadense Ralph Steinman (1943-2011), ganhador do Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2011, Michel verificou que um tipo de célula de defesa – as células dendríticas – é responsável por ativar os linfócitos T, que atacam as células infectadas por vírus e bactérias. Mais recentemente, Michel e sua equipe identificaram anticorpos com alto poder de neutralizar o HIV em pessoas infectadas pelo vírus, mas que não desenvolvem Aids. Produzidos em laboratório, esses anticorpos mostraram-se capazes de reduzir a quantidade de HIV no sangue em testes com seres humanos. Essa mesma estratégia será usada agora para criar um plano B contra o novo coronavírus.

Na entrevista a seguir, concedida via Zoom em 9 de abril, o pesquisador fala da tentativa de encontrar anticorpos eficazes contra o Sars-CoV-2, dos riscos e vantagens da transfusão de plasma, que começa a ser testada no Brasil e em outros países, e de como a pandemia mudou o cotidiano de seu laboratório e tornou a pesquisa mais colaborativa.

***

Quando decidiu que era hora de estudar o novo coronavírus?
Comecei a pensar que deveríamos fazer algo contra o vírus em janeiro, quando ficou claro que esse seria um grande problema por causa da transmissão de pessoa para pessoa e da rapidez com que estava se espalhando na China. Era muito óbvio que se tratava de um vírus diferente dos outros coronavírus, como os que causam a Sars [Síndrome Respiratória Aguda Grave, em 2002] e a Mers [Síndrome Respiratória do Oriente Médio, em 2012].

Naquele momento, em quais projetos trabalhava?
Estávamos estudando a resposta imunológica, em especial a de anticorpos, contra o HIV, o vírus da hepatite e o vírus da encefalite transmitida por carrapatos, comum na Europa. Tivemos de parar tudo porque a universidade fechou. Há três ou quatro semanas, toda a equipe, que tem 50 pessoas, passou a se dedicar ao novo coronavírus.

Como isso afetou a rotina no laboratório?
Mudou a forma de fazer ciência, que está mais interativa. Nem todos da equipe vêm ao laboratório, porque não o queremos cheio. Os que vêm usam máscaras, luvas, jaleco. Além disso, estamos colaborando com vários grupos. São dois laboratórios de virologia na Rockefeller; um de cristalografia e um de química de proteínas no Caltech [Instituto de Tecnologia da Califórnia]; um de química de proteínas na Chan Zuckerberg Initiative; e outro na Universidade da Califórnia em São Francisco. Também estamos conversando o tempo todo com pessoas ao redor do mundo. A ciência está respondendo a essa situação de maneira surpreendente. Todos estão trabalhando de um modo colaborativo que jamais havia visto para tentar entender o que está acontecendo e encontrar formas de prevenção e tratamento.

Sua equipe planeja coletar sangue de pessoas que se recuperaram de Covid-19 e sintetizar em laboratório alguns anticorpos produzidos por elas. Como saber qual tipo de anticorpo usar?
Pedimos para as pessoas voluntariamente doarem sangue, entre 100 e 200 mililitros. Separamos o plasma, a fração em que se encontram os anticorpos, das células sanguíneas. Temos interesse especial nos linfócitos B, as células produtoras de anticorpos. Usamos o plasma para testar a capacidade dos anticorpos de neutralizar o vírus. A partir das outras doenças virais que estudamos, descobrimos que as pessoas têm capacidades diferentes de produzir anticorpos contra os vírus. Assim como há um vasto espectro de diferenças físicas e intelectuais nos seres humanos, também há um amplo espectro de resposta imunológica. A partir da testagem do potencial neutralizador do plasma, tentamos encontrar as pessoas que combatem melhor o vírus. O passo seguinte é usar uma proteína da superfície do vírus para identificar os anticorpos com maior poder neutralizador. As células que os produzem são isoladas, o trecho do material genético que codifica apenas o anticorpo é copiado e usado para sintetizar em laboratório os chamados anticorpos monoclonais, que têm origem em um único linfócito B. Depois, testamos se são capazes de neutralizar o vírus.

O que mais é feito com os anticorpos?
Também usamos os anticorpos para mapear os pontos do vírus sensíveis à ação do sistema de defesa. Desse modo, conseguimos pistas de quais regiões do vírus poderiam ser usadas para produzir vacinas, por despertar a resposta do sistema imunológico. Os diferentes anticorpos aderem a partes distintas do vírus e, portanto, podemos usá-los em conjunto. Tendo essas informações, poderemos fazer escolhas, como escrever um artigo científico e publicá-lo. Ou, se os anticorpos tiverem uma atividade neutralizante relativamente alta, podemos tentar produzi-los. Isso significa procurar uma companhia para sintetizá-los e serem usados na clínica. Também podemos licenciar a produção para uma empresa. Nossa preferência é pagar para uma empresa fazer os anticorpos, ao menos em uma primeira fase. Assim, podemos estudar o que de fato acontece e como eles agem no organismo das pessoas, sem a exigência a priori de que seja algo lucrativo.

Por que acredita que essa estratégia possa funcionar contra o coronavírus?
Ela funciona muito bem contra o HIV. Fomos capazes de encontrar anticorpos de ação muito ampla, produzi-los para serem usados na clínica, testá-los em pacientes até a fase 2 de ensaios clínicos [medicamentos e vacinas têm de passar por três fases de testes em seres humanos antes de serem aprovados para a comercialização e o uso em larga escala] e mostrar que são eficazes para combater o vírus. Já os testamos em 300 pessoas. Agora, estamos na etapa final de planejamento de um grande teste clínico de fase 3, com milhares de indivíduos, que será realizado com apoio da Fundação Bill e Melinda Gates. O objetivo é verificar se esses anticorpos podem prevenir a infecção por HIV. A Universidade Rockefeller os licenciou para uma grande empresa farmacêutica, a Gilead. Se a mesma estratégia será efetiva ou não contra o coronavírus é outra história. Não há como saber se funcionará até que seja testada. Se não tivermos uma vacina ou alguma forma de tratamento efetivos nos próximos seis meses, acho que vale tentar. Os anticorpos quase certamente funcionarão, mas servirão como um plano B, para o caso de outras coisas falharem.

Então, não será a primeira escolha de tratamento. Além disso, deve demorar para encontrar anticorpos efetivos contra o coronavírus, não?
Certamente levará tempo para conseguir e não será a primeira opção de tratamento. As vacinas, por sua vez, nem sempre funcionam. Sabemos disso por causa de algumas vacinas que foram produzidas contra dengue e HIV. Não está claro como uma vacina contra o coronavírus funcionará. Poderá proteger algumas pessoas e ser nociva para outras. Por isso, não é má ideia ter um plano B.

No Brasil e em outros países, alguns grupos estão tentando usar plasma de pessoas que tiveram Covid-19 e se recuperaram para infundi-lo em doentes graves. Quais são os riscos e os benefícios dessa estratégia?
A terapia de plasma tem uma história longa. Foi criada no final do século XIX. Um dos primeiros prêmio Nobel foi dado para essas formas de tratamento, ditas passivas [o fisiologista alemão Emil von Behring recebeu o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1901 por desenvolver uma terapia com soro sanguíneo contra difteria]. Essas terapias passivas foram criadas para neutralizar toxinas [compostos tóxicos] produzidas pela bactéria da difteria. Salvou muita gente e foi bastante usada para combater pneumonia e outras doenças infecciosas na Primeira Guerra Mundial. Assim que os antibióticos surgiram, parou-se de utilizar essa terapia contra doenças infecciosas. No Brasil e em outros países, ela ainda é adotada para tratar picada de serpentes e é bastante eficiente contra as toxinas do veneno. No caso da Covid-19, seria usar uma solução do século XIX para um problema do século XXI. Em uma comparação bélica, a terapia de plasma seria uma arma da Primeira Guerra Mundial enquanto a terapia de anticorpos monoclonais seria um míssil balístico nuclear teleguiado.

Por que a terapia de plasma e a de anticorpos monoclonais são diferentes se ambas se baseiam na ação de anticorpos?
Pegue, por exemplo, o plasma de 100 pessoas. Algumas não produzem anticorpos, outras produzem poucos, um terceiro grupo pode sintetizar ainda anticorpos potentes, capazes de neutralizar o vírus, enquanto os anticorpos fabricados por parte dessas pessoas podem ser pouco efetivos e capazes até de agravar a infecção, como ocorre em alguns casos de dengue. Misture esses anticorpos e coloque um pouco deles no corpo de outra pessoa. Isso será eficiente para neutralizar o vírus? Não sei. Podem ser bons, podem ser ruins e podem não fazer nada. É provável que não façam nada, mesmo que alguns de seus componentes sejam bons e tenham poder neutralizante em certas pessoas. Ainda não está claro se esse tipo de tratamento pode funcionar em pessoas muito doentes. Talvez possa ser útil antes de elas adoecerem gravemente. Não estou dizendo que não se deva tentar. Mas, se os médicos e pesquisadores forem testá-la, em primeiro lugar devem ser muito cuidadosos. Em segundo, devem tentar fazer de modo controlado, para permitir saber se produz algum benefício ou se é prejudicial.

A propósito, em geral se pensa em anticorpos como algo bom. Eles podem ser tóxicos e causar danos ao organismo?
Acredita-se que os casos mais graves de dengue sejam provocados pela ação de anticorpos, e não do vírus. Algumas pessoas produzem anticorpos que não são neutralizantes. Ou são neutralizantes contra algumas das variedades do vírus, mas não contra outras. Em vez de deter o vírus, esses anticorpos podem piorar a doença, facilitando a entrada do vírus em células que eles normalmente não infectariam.

Isso poderia ocorrer também na terapia de plasma?
Em teoria, sim. Esperamos que não ocorra, porque seria um pesadelo.

Por que é tão difícil combater vírus?
Combatemos muito bem muitos vírus. Mas os vírus são bastante diferentes entre si. Além disso, a capacidade de combatê-los depende de qual órgão o vírus invade, de como ele interage com o sistema de defesa e de como o sistema de defesa o detecta. É uma tragédia quando um número suficientemente grande de pessoas é infectado e o organismo de uma pequena parte delas não combate bem o vírus.

Já se conhece bem como o organismo humano enfrenta o novo coronavírus?
Não temos uma boa compreensão de como esse combate ocorre nem de por que algumas pessoas não se saem bem. Há algo incomum e interessante na infecção pelo novo coronavírus. Quando as pessoas são infectadas, em geral elas apresentam febre e desenvolvem alguns problemas, mas não adoecem gravemente por um período que varia de 7 a 10 dias. Em seguida, no entanto, pioram muito rapidamente: desenvolvem pneumonia, dificuldade respiratória e têm de ser intubadas. Essa piora é associada à tempestade de citocinas, um fenômeno imunológico que ocorre quando o sistema de defesa reage de forma exacerbada. Pode ser que esses agravamentos ocorram por causa da forma como o vírus age ou em consequência da forma como o sistema de defesa lida com o vírus. A maioria das pessoas fica mal por 7 a 10 dias e depois melhora. Umas poucas, porém, pioram muito após esse período. Esse agravamento está associado a essa reação imunológica exagerada, que leva à liberação de citocinas como a interleucina 1, a interleucina 6, o fator de necrose tumoral alfa e o fator estimulador de colônias de granulócitos e macrófagos. Há algo importante acontecendo com o sistema imunológico dessas pessoas que não compreendemos nem sabemos por que ocorre. Identificar a origem desse fenômeno será importante para aprender a evitá-lo.

Quais outras estratégias poderiam funcionar contra o coronavírus?
Estou esperançoso de que se encontre alguma molécula pequena com ação sobre o vírus para funcionar como medicamento. Há muitos alvos farmacológicos no novo coronavírus, entre eles, proteases e polimerases [enzimas que, respectivamente, digerem proteínas e sintetizam cópias do material genético viral]. Uma polimerase chamada RNA replicase, aliás, é muito específica dele. Deve haver compostos que consigam inibi-la. Espero que se identifique essa molécula rápido e que esse composto se torne logo disponível para as pessoas, minimizando sofrimento humano. Há ainda o desenvolvimento de vacinas e, uma estratégia mais imediata, o uso da terapia de plasma, que deveríamos tentar de modo controlado, além de, claro, os anticorpos monoclonais. Há diferentes níveis de sofisticação e de exigências para torná-los disponíveis para os médicos.

O estado de Nova York foi o mais afetado nos Estados Unidos. Havia registrado cerca de 80 mil casos e 10 mil mortes até 7 de abril. Imaginou alguma vez que isso pudesse ocorrer? O que é mais assustador nessa pandemia?
Nunca imaginei. É assustador, mas as pessoas não devem ficar tão temerosas. Elas devem ser cuidadosas e seguir conselhos simples, como lavar as mãos, usar máscara, manter distanciamento social e evitar grupos de pessoas. Se seguirem essas recomendações, vão minimizar o risco de contrair a infecção.

Tem acompanhado notícias do Brasil?
Não muito. Soube que houve alguma relutância inicial em impor e aconselhar o distanciamento social, o que considero um erro terrível. Espero que os políticos reconheçam que esse é um problema grave.

Republicar