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biofísica

Moléculas dobráveis

Simulações em computador permitem prever a estrutura de proteínas e explicar o mecanismo de ação dos anestésicos

Ao encostar a mão numa leiteira quente, células da pele transformam a sensação de calor em um tênue sinal elétrico, transmitido de uma célula nervosa a outra até atingir a medula espinhal, da qual parte um reflexo que faz a mão se afastar da leiteira. Também como impulsos elétricos, a mensagem segue rumo ao cérebro e ali é interpretada como uma sensação de dor, numa seqüência de sinalizações químicas que se passa em centésimos de segundo. Só então é que vem a consciência do que se passou.

Com base em simulações de computador, físicos e biólogos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ajudaram a explicar como se formam e se propagam esses sinais elétricos – ou impulsos nervosos, que, como se demonstrou, são extremamente dependentes de uma estrutura em forma de grampo de cabelo encontrada na base dos poros da membrana do neurônio. Os impulsos nervosos, além de acionarem o reflexo de afastar a mão da leiteira em resposta à dor, asseguram a própria sobrevivência por meio de atos involuntários, fazendo o coração bater, ou voluntários, permitindo a escolha consciente de um caminho em meio ao trânsito, por exemplo. A partir das conclusões a que chegou, a equipe carioca criou uma abordagem que auxilia no detalhamento de algo extremamente prático: a ação dos anestésicos, medicamentos que diminuem a sensibilidade à dor por bloquear a passagem dos sinais elétricos através dos neurônios, as células nervosas.

Em outra área, o grupo do físico Pedro Geraldo Pascutti, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ, mostrou como uma proteína consegue rapidamente, logo após ser produzida, dobrar-se sobre si mesma e, em poucos minutos, assumir a forma espacial que lhe permite atuar de modo mais eficiente no organismo. Os passos desse balé parecem simples – e de fato são -, mas ninguém até agora sabia como é que as proteínas seguem automaticamente esse roteiro. Por serem longas e flexíveis, podem sofrer torções e assumir milhões de formas diferentes. Se fosse testar cada possibilidade, uma proteína qualquer consumiria bilhões de anos antes de chegar à forma mais adequada – e provavelmente só se formariam os organismos mais simples.

Impulsos nervosos
Os milhares de poros da superfície dos neurônios regulam a entrada de átomos com carga elétrica positiva, os chamados cátions, e, desse modo, controlam a propagação do impulso nervoso. Conhecidos como canais de sódio, esses poros permanecem fechados por uma espécie de tampa enquanto a célula nervosa está inativa. Nessas condições, a concentração de sódio no exterior das células torna-se até dez vezes superior à do interior e o impulso nervoso não surge.Com um nível de detalhe jamais alcançado, a equipe da UFRJ deduziu a forma da tampa desse poro: é uma estrutura semelhante a um grampo de cabelo encurvado, como um gancho. O grupo carioca mostrou também como essa tampa se movimenta, sofre deformações e consegue fechar a passagem do canal situada no lado interno das células. A conseqüência natural desse movimento é o bloqueio do transporte do sinal elétrico pela superfície do neurônio e a interrupção da comunicação com a célula nervosa seguinte.

Toda vez que o neurônio recebe um estímulo, a tampa desses canais se abre e deixa o sódio atravessar a membrana, uma dupla camada de gordura que separa o interior do neurônio do meio externo. À medida que entram mais sódio, mais poros se abrem e o impulso nervoso se propaga num único sentido como uma onda até atingir, em milésimos de segundo, a extremidade do neurônio, liberando mensageiros químicos chamados de neurotransmissores, que passam a informação para a célula seguinte.

Agora se conhece melhor também o próprio canal de sódio, no qual a tampa se encaixa. Sabe-se já há alguns anos, graças ao trabalho de grupos internacionais de pesquisa, que a estrutura do canal consiste de uma única proteína de 1.820 aminoácidos (as unidades das proteínas). A maior parte dessa longa molécula enovela-se em quatro feixes, cada um com seis tubos semelhantes a bananas de dinamite: são as paredes do poro por onde o sódio apenas entra, sem poder sair.As moléculas que vão formar os poros nascem como fitas longas no interior das células e começam a se enrolar em espirais sucessivas ou como um novelo de lã. “Esse emaranhamento é uma conseqüência da atração ou da repulsão entre as cargas elétricas de trechos da proteína e da ação mútua dessas cargas e de segmentos não-carregados com as moléculas de água que se encontram tanto dentro quanto fora da célula”, explica Pascutti. Nos trechos no interior da célula, a proteína se apresenta menos enrolada. É um desses segmentos mais delgados da proteína que forma a tampa do canal.

Essa tampa é um filamento de apenas 53 aminoácidos com uma característica importante: em dois pontos de sua porção mais delgada, a proteína volta a se espiralar e forma dois blocos distintos e compactos, conforme verificou a equipe da UFRJ. O maior desses blocos chama a atenção por funcionar como uma espécie de trava da tampa do canal e por ser bastante resistente. Simulações feitas em um programa de computador desenvolvido por Pascutti e pelos físicos Kleber Mundim, da Universidade de Brasília (UnB), e Paulo Bisch, da UFRJ, indicaram que a região em forma de grampo se mantém bastante rígida mesmo ao ser aquecida a uma temperatura quase quatro vezes superior à do corpo humano.

Valendo-se desse mesmo programa que, por sua robustez, recebeu o nome de Thor, o deus germânico do trovão, Pascutti, sua ex-aluna de mestrado Fernanda Leite Sirota e a física argentina Celia Anteneodo, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), viram que esses dois trechos mais compactos da tampa se movimentam em conjunto e,desse modo, conferem a firmeza necessária à abertura e ao fechamento do canal. Conectada por hastes flexíveis à parte mais longa da proteína, essa trava está sujeita a mudanças na distribuição de cargas elétricas na região próxima à abertura interna do canal. “São essas alterações que fazem o poro se abrir ou permanecer fechado”, diz o físico.

É possível imaginar essa tampa como uma arapuca, armadilha em forma de pirâmide para pegar passarinho, feita com pedaços de madeira. A estrutura da arapuca corresponde à tampa, e a alavanca de madeira que a mantém armada, a uma espécie de barreira de energia criada pela diferença de cargas elétricas entre o canal e a tampa. Qualquer alteração provocada pela mudança de cargas diminui essa barreira de energia e, como a alavanca que se desarma, faz o poro se fechar.

A equipe do Rio constatou que a posição do bastão maior era fundamental para o funcionamento do canal. “Quando o cilindro se apresenta inclinado em relação à face interna da membrana, uma barreira de energia impede o fechamento do canal”, explica Pascutti. Alterações na distribuição das cargas elétricas na região, no entanto, levam à inclinação do bastão e ao fechamento do poro. “Acreditamos que os anestésicos provoquem a diminuição dessa barreira de energia, o fechamento do canal e, como resultado, impeça a passagem do impulso nervoso”, comenta o físico, que consolidou esses achados em março de 2002 no Biophysical Journal. Rachel Klevit, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, já havia detectado somente a forma do bastão maior por meio de ressonância magnética nuclear, uma técnica usada para produzir imagens do corpo humano. Coube à equipe carioca desvendar os detalhes em um estudo independente.

A originalidade desse trabalho foi tratar a membrana e o meio aquoso de dentro e de fora das células como duas regiões com capacidade diferente de conduzir corrente elétrica. Essa idéia nasceu em meados dos anos 90, quando Pascutti começava a trabalhar no CBPF com Paulo Bisch e Kleber Mundim. Adotando esse enfoque, descreviam a interação entre as proteínas e as membranas das células adaptando a Lei de Coulomb, uma expressão matemática formulada em 1785 pelo físico francês Charles-Augustin de Coulomb. A aplicação desse método permite simular, sem a necessidade de supercomputadores, a movimentação dessas e de outras moléculas em membranas por até 100 nanossegundos (um nanossegundo é a bilionésima fração do segundo), um tempo até cem vezes superior ao de outros métodos.

Em um estudo publicado em 1999 no European Biophysics Journal, usando o mesmo método, a equipe de Pascutti mostrou que a própria membrana celular auxilia as moléculas que não têm forma estável quando circulam no meio entre as células ao assumir rapidamente sua estrutura espacial mais eficiente. Os pesquisadores trabalharam com um peptídeo (pedaço de proteína) chamado hormônio estimulador de melanossomos, que induz à produção de melanina, a substância que dá cor à pele. Novamente por meio de simulações em computadores, descobriram que esse peptídeo, ao encontrar a membrana, assume sua forma mais estável e desliza sobre a membrana até se encaixar nos receptores e transmitir ao interior da célula a ordem para liberar mais melanina.

O balé das proteínas
Com pequenos ajustes, o mesmo modelo matemático ajuda a explicar os meios pelos quais moléculas longas como as proteínas conseguem se enovelar rapidamente e atingir sua forma funcional em poucos minutos. Se buscasse sua conformação funcional por tentativa e erro, uma proteína pequena formada por apenas 100 aminoácidos levaria 1019 (o número 1 seguido de 19 zeros) bilhões de anos, segundo Pascutti. “Caso seguisse essa lógica, essa pequena proteína jamais chegaria a sua forma biologicamente mais eficaz, pois gastaria um tempo muito superior à idade do universo”, comenta o pesquisador.

Num artigo publicado em 2001 na Physical Review E , Pascutti, Marcelo Moret, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e Edvaldo Nogueira Júnior, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), propuseram uma explicação para essa contradição, mostrando que a energia que mantém unidos os átomos de uma proteína segue um padrão que se repete em escalas diferentes, os chamados sistemas fractais. Um exemplo de sistema fractal é uma folha de samambaia, em que cada folícula é uma reprodução exata, mas em miniatura, da folha inteira.

Para tornar mais racional a busca pelas posições mais estáveis, em que a energia dos átomos é menor, os pesquisadores selecionaram as estruturas da polialanina, uma proteína formada pela repetição do aminoácido alanina, com maior probabilidade de existir – nem todas são viáveis por causa da repulsão provocada pela proximidade dos átomos – com um modelo matemático proposto pelo físico Constantino Tsallis, do CBPF, um grego que há 28 anos se mudou para o Brasil. Formulado em 1988, esse método, conhecido como estatística de Tsallis, já se mostrara útil em outras áreas do conhecimento, como na economia, indicando como obter a maior produtividade de um artigo qualquer com o menor custo.

Pascutti imaginou que poderia empregar essa abordagem para estudar o enovelamento de proteínas porque permitiria sortear, de maneira mais dirigida, as formas mais estáveis a serem testadas. O método de Tsallis foi muito mais rápido, ao indicar que uma polialanina de 16 aminoácidos pode chegar à forma mais estável em 15 mil movimentos, como mostraram no Biophysical Journal em 2002. De acordo com o método tradicional, chamado de equilíbrio de Boltzmann-Gibbs, uma polialanina com 16 aminoácidos não encerraria seu bailado antes de 150 milhões de passos.

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