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CULTURA

Mostrando a nova cara do cinema

Lúcia Nagib está traçando o panorama do cinema nacional dos anos 90

Longa é a tradição do cinema no Brasil, que descobriu o filme sete meses depois da primeira exibição pública em Paris, realizada pelos irmãos Lumière, em 1895. Não por outro motivo, a história cinematográfica nacional não pode ser contada apenas por periódicos de vida efêmera, como vem ocorrendo.Há três anos, a professora Lúcia Nagib, presidente do Centro de Estudos de Cinema (CEC) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, tem coordenado uma equipe de 13 pessoas, para a realização do projeto Cinema nos Anos 90.

Trata-se de um mapeamento da produção cinematográfica brasileira dos últimos quatro anos, tendo como marco a entrada em vigor da Lei 8.685, de 20 de julho de 1993, conhecida por Lei do Audiovisual. Para construir um panorama da produção cinematográfica brasileira recente, Lúcia teve de recorrer a movimentos anteriores, uma vez que os filmes dessa década estão estritamente vinculados à tradição do cinema novo e do cinema marginal e, de forma mais sutil, às chanchadas cariocas da Atlântida, à concorrente paulista, Companhia Cinematográfica Vera Cruz, ao cinema da Boca e à belle époque da Embrafilme.

Como se vê, nada impede que, de um período curto, extraia-se a historiografia do cinema nacional. É só dar uma passada de olhos em alguns nomes da lista de entrevistados: Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Walter Hugo Khouri, Paulo César Saraceni ao lado de Walter Salles Jr., Tata Amaral, Guilherme de Almeida Prado. Anos 90 ou 60? A equipe coordenada por Lúcia Nagib já entrevistou 80 do total de 99 cineastas que produziram nesse tempo, segundo dados da pesquisa realizada pelo CEC. Todos cara a cara. As viagens, assim como o material permanente e de consumo e a reserva técnica, foram financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que calculou em R$ 12,6 mil o investimento para um ano de apuração e pesquisa.

A princípio, o projeto vai constituir um livro, dividido em dois volumes, com fôlego enciclopédico. A edição está a cargo da Paz e Terra, tendo lançamento previsto para o segundo semestre deste ano. Além de textos dos pesquisadores, organizados a partir de uma síntese dos depoimentos, a obra trará uma seleção de artigos sobre o(s) filme(s) lançado(s) de cada cineasta no período, uma filmografia, uma bibliografia e a biografia de cada um deles. Ambiciosa, Lúcia adianta que a intenção é transformar a pesquisa num projeto temático, a ser atualizado ano após ano.

Estagnação
Com a extinção da Embrafilme pelo governo de Fernando Collor de Mello, o cinema nacional ficou praticamente estagnado. Nada foi colocado no lugar da estatal e, assim, nos três anos que se seguiram, foram rodados apenas 14 filmes. Foi em 1994 que a Lei do Audiovisual entrou em vigor na prática. E, a partir daí, assistiu-se à ascensão da produção de longas-metragens e documentários no País. Naquele ano, foram rodados 11 filmes; em 1995, 19; em 1996, 15; em 1997, 21; e, no ano passado, 35. Essa é uma média que, muitas vezes, supera a de países europeus.

O ritmo acelerado de produção, aliado à alta qualidade, tem apagado o estigma de outrora, em que o cinema nacional era visto como cinema de alegorias, como cinema de Terceiro Mundo. Nada além disso. O reconhecimento pode ser sentido nas constantes indicações e prêmios de filmes brasileiros nos Festivais Internacionais.Central do Brasil , de Walter Salles, levou o Urso de Ouro de melhor filme e o Urso de Prata de melhor atriz para Fernanda Montenegro no Festival de Berlim; além de ter sido indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e Fernanda ao de melhor atriz.

Além disso,O Quatrilho , de Fábio Barreto, e O que é isso Companheiro?, de Bruno Barreto, também já haviam concorrido ao prêmio.Um Céu de Estrelas , de Tata Amaral, ganhou o troféu de melhor filme e interpretação (atribuídos aos protagonistas Alleyona Cavalli e Paulo Vespúcio Garcia), do 12º Festival de Trieste, na Itália. E não se pode esquecer de que Orfeu, de Cacá Diegues, ainda pode surpreender na votação do Oscar.Muito mais do que trabalhar sobre cifras e números,Cinema nos Anos 90 enfoca a ação pública em relação à cultura.

Lúcia comenta que há um consenso entre cineastas sobre alguns pontos da Lei do Audiovisual. “A produção está sendo relativamente fácil, mas a distribuição e a exibição ainda são mal-organizadas”, dizem. “Discutem-se mudanças na lei, com duração até 2003, como a cota de tela, que não é cumprida, e o aumento na taxação dos filmes estrangeiros, a fim de ser superior ao de brasileiros.” Uma prática protecionista e vital.

O secretário de Audiovisual do Ministério da Cultura, José Álvaro Moyses, concorda com as críticas dos cineastas e com eles tem discutido as deficiências da lei de incentivo. Hoje, um filme brasileiro estréia com número de cópias que varia de 5 a 60, enquanto as grandes produções norte-americanas chegam com cerca de 150.

Longe do prejuízo
Se não fossem esses entraves, principalmente no que diz respeito à distribuição, o cinema nacional não estaria relegado a segundo plano. Pelo menos, é o que diz a bilheteria. Nas ultramodernas salas multiplex, que têm se espalhado pela cidade, Central do Brasil e O Noviço Rebelde, com Renato Aragão, de Tizuka Yamazaki, nem de longe deram prejuízo. Enquanto cineastas debatem problemas “técnicos”, Lúcia aponta para uma propensão temática. Ela observa que, a partir da Lei do Audiovisual, os cineastas retomaram os temas genuinamente brasileiros, revertendo a tendência da era Collor de se fazer produções e co-produções internacionais.

Hector Babenco, que havia filmado Brincando nos Campos do Senhor , agora não apenas volta as câmeras para o país, como para a sua origem argentina em Coração Iluminado. Walter Lima Jr. trocou a paisagem de O Monge e a Filha do Carrasco pelo Ceará e o Paraná, em A Ostra e o Vento. E quem nega que o terceiro longa-metragem de Walter Salles,Central do Brasil , seja uma reviravolta na estética de A Grande Arte.

A dualidade entre o novo e o velho tem regrado os anos 90. Na abertura do livro, Lúcia assina uma longa introdução – única parte opinativa – para construir um painel das novas tendências e reafirmar os elos históricos. “Não houve um choque de gerações: o cinema dos anos 90 não nega o que veio antes para se impor como melhor, revolucionário. Ao contrário, existe uma reverência, um desejo de homenagear, freqüentemente, os cineastas do cinema novo e do cinema marginal e de todos os outros movimentos que existiram no Brasil”, analisa.

Dependência
Apesar de terem estilos bem diferentes, Nelson Pereira dos Santos, Gláuber Rocha, Cacá Diegues, Saraceni, David Neves, entre outros, estavam unidos pela sagacidade de refletir e propor saídas às condições de dependência do país. Saídas essas que, por sinal, eram sempre de inclinação esquerdista.Hoje, porém, os novos produtores e cineastas não têm essa diretriz. “Não há mais revoluções, o socialismo é uma bandeira derrotada”, acredita Lúcia. Assim, o que se vê nas telas é a discussão de décadas passadas sob nova modelagem.

Exemplos não faltam. “Central do Brasil é típico desse quadro, ao pegar contribuições de Nelson Pereira, Gláuber e Ruy Guerra e, inclusive, filmar nos mesmos lugares; com o único diferencial de incorporar os fatos históricos desses 40 anos de diferença”, analisa Lúcia. Há também Orfeu, de Cacá Diegues. Primeiro, foi a peça Orfeu da Conceição, de Vinícius de Morais, em 1956. Três anos mais tarde, o filme Orfeu Negro, do francês Marcel Camus – um cineasta com uma visão totalmente idílica do morro. O diretor Cacá Diegues reinterpretou essa imagem: agora, a favela é de traficantes, da guerra do tráfico.

E, ainda, há Baile Perfumado, dos estreantes Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que nada mais é do que uma homenagem àquele primeiro mascate libanês, Benjamin Abrahão, que filmou os cangaceiros e fez as primeiras e únicas imagens de Lampião e de seu grupo. A frase final do filme, atribuída a Abrahão – “Os inquietos mudarão o mundo” – deveria ser encarada, pelos novos cineastas, como uma intimação. Não sem tempo.

Identidade
O cinema nacional dos anos 90 aparenta estar criando uma identidade, com ou sem o apelo de público, mas, na verdade, poucos filmes são realmente inovadores. Mais raros ainda são os que transgridem a estética ficcional ou documental. A maioria deles conformou-se em reutilizar a linguagem do cinema novo e do cinema marginal. Ou, ainda, submeter-se aos interesses de mercado. O que se percebe, indo além da análise superficial, é um pseudo-ecletismo de assuntos, a repetição de temáticas e de recursos estéticos. É o cangaço, o Nordeste pobre. Sempre.Enfim, qual a identidade do cinema dos anos 90, pergunta-se.

Com o referencial no cinema das décadas de 1950 e 1960, Lúcia esclarece: “Os novos cineastas são meros observadores de comportamentos cotidianos. Nada propõem, nada criticam. Essa postura difere radicalmente da adotada por Gláuber Rocha, entre outros, que sempre interpretava a realidade, a cultura popular brasileira.” Os filmes da nova geração são, em sua maioria, acríticos e ingênuos. O Cinema Novo desvendava o Brasil. O novo cinema ainda busca a definição de uma identidade nacional, mas falta a ele o espírito de brasilidade.

Coletividade
Além disso, o foco da maioria dos novos filmes recai sobre a individualidade e não mais, como na década de 60, sobre a coletividade. É um típico sintoma dos tempos modernos. Um Céu de Estrelas, filme de estréia de Tata Amaral, é rodado na Mooca, em São Paulo, bairro que atraiu os primeiros imigrantes italianos. Pouco importa. Não há cenas externas. A história transita no espaço claustrofóbico de uma casa. Resume-se ao drama de um casal, Dalva (Alleyona) e Vitor (Vespúcio Garcia). Abriu-se mão do contexto social e privilegiou-se o plano individual.

Padre Cícero
Noutro, Baile Perfumado, dos também estreantes Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Lampião não é aquele temido cangaceiro, mas um burguês acomodado, que vende proteção a fazendeiros, ostenta luxo e riqueza, usa perfume francês e prefere uísque à cachaça. Tudo registrado pela lente do mascate libanês Benjamin Abrahão, que, munido de uma carta de apresentação do padre Cícero Romão em Juazeiro, pôde seguir e filmar Lampião, Maria Bonita e seu bando. Predomina a figura do homem e não seu significado, seus feitos, sua lenda.No plano político, a professora afirma que, do embrião revolucionário, passou-se ao discurso politicamente correto. Os jovens cineastas optaram por uma abordagem neutra, pela impessoalidade. A ideologia nacionalista virou elemento puramente estético.

Tenta-se construir uma utopia, ligada à profecia de Gláuber Rocha, em Deus e o Diabo na Terra do Sol . Disse ele: o sertão vai virar mar. A frase ecoa numa imagem, a de grandes superfícies d’água, que são um nota constante nos filmes dessa nova geração. Lúcia sustenta a argumentação acima: “No fim de Baile Perfumado, Lampião está sobre um rochedo, com aquele gigantesco Rio São Francisco passando embaixo; em Bocage (Djalma Limongi Batista), o minúsculo poeta olha aquele mar imenso; em Primeiro Dia (Daniela Thomas e Walter Salles), o cangaceiro chega à praia, mas é assassinado antes de chegar ao mar”, repara.

“A utopia está reverberando e, por enquanto, os personagens, e o Brasil, estão morrendo na praia, em virtude da submissão aos interesses da classe dominante, à corrupção, à guerra do tráfico.” Talvez falte a reverência ao impulso nacionalista dos anos 60.

Perfil :
Lúcia Nagib é graduada em Direito pela Universidade de São Paulo, onde fez seu mestrado, com a dissertação Werner Herzog: O Cinema como Realidade, e seu doutorado, com a tese Nascido das Cinzas – Autor e Sujeito nos filmes de Oshima. Articulista do jornal Folha de São Paulo, editora executiva da revista Imagens (editora da Unicamp) e editora executiva da revista Estudo de Cinemas. É professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

ProjetoCinema nos Anos 90
Investimento : R$ 12.625,00

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