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virologia

Mudança sutil

Lentamente, um subtipo do vírus da Aids pouco comum no país se espalha e altera o perfil da epidemia

MIGUEL BOYAYANNão há mais dúvida. A epidemia provocada pelo vírus da Aids se encontra mesmo em transformação no Brasil, onde 140 mil pessoas são portadoras do HIV. Seu antigo perfil – chamado de ocidental por causa da predominância de uma variedade do vírus comum nas Américas e na Europa Ocidental, o HIV-1 do subtipo B – vem assumindo nos últimos anos características cada vez mais semelhantes às observadas na China, na Índia e nas nações africanas situadas ao sul do deserto do Saara. Nesses países, 83% dos 30 milhões de portadores do vírus carregam no sangue o subtipo C, uma das nove variedades já identificadas.

Por alguma razão desconhecida, o subtipo C passou a dominar a epidemia também em regiões nas quais, antes, outras variações do HIV respondiam pela maioria dos casos da infecção. A diferença entre uma variedade e outra pode estar na habilidade do vírus de sobreviver aos medicamentos usados contra a infecção. Quase tudo o que se conhece sobre a resistência do HIV resulta de pesquisas feitas com a variedade B e ainda não está comprovada a eficácia dos medicamentos contra as outras cepas do vírus. Por essa razão, a mudança do perfil da epidemia brasileira pode exigir ajustes no tratamento e na composição de vacinas anti-HIV em desenvolvimento.

As primeiras evidências dessa mudança despontaram na Região Sul, onde se registrou em 1990 o primeiro caso provocado pelo subtipo C. Estudos isolados apontavam uma presença crescente dessa variante do HIV na região, nos últimos cinco anos. Mas os dados mais contundentes surgiram no ano passado, com a conclusão do primeiro levantamento nacional de resistência do vírus aos medicamentos, elaborado pelos sete laboratórios da Rede de Vigilância da Resistência do HIV (Revire), do Ministério da Saúde.

De acordo com os resultados – divulgados na Pesquisa FAPESP em agosto de 2002 e publicados em junho de 2003 na revistaAids -, o subtipo C ultrapassou a presença do B no Rio Grande do Sul e aparece em 45% das infecções. No restante do país, o subtipo B ainda é a cepa predominante, mas vem se colocando numa posição mais discreta. Um terço dos paranaenses portadores do HIV carrega no sangue o vírus da variedade C. Também há indícios de que a presença dessa cepa esteja aumentando no Sudeste. Hoje 6% dos portadores do vírus têm o HIV do subtipo C no Rio de Janeiro, enquanto essa cepa contamina 3% das pessoas com o vírus em São Paulo.

Essas conclusões resultam de pesquisas coordenadas por Marcelo Soares e Amilcar Tanuri, ambos do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos centros integrantes da Revire. Em parceria com outras equipes do Rio, de São Paulo e do Ministério da Saúde, os pesquisadores da UFRJ avaliaram o material genético do HIV que contaminava 112 pessoas de cinco estados – Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio e Mato Grosso do Sul.

O resultado, divulgado em janeiro de 2003 na revista Aids, mostrou que, em média, um em cada três portadores do vírus nas regiões Sul e Sudeste já apresentava no sangue o subtipo C. Soares e Tanuri viram ainda que, embora o perfil da epidemia nacional se aproxime daquele observado na África e na Índia, o HIV do subtipo C encontrado no Brasil apresenta características distintas do subtipo C africano e indiano.

Mais recentemente os pesquisadores da UFRJ voltaram a atenção para a capital gaúcha para ver como a infecção pelo HIV evoluiu ao longo de 18 anos, na busca de uma provável indicação do que pode ocorrer no restante do país. Soares e Tanuri coletaram amostras de sangue de 77 portadores do HIV atendidos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o maior centro de tratamento de Aids no estado. A partir da análise do material genético do vírus, constataram: a proporção de casos provocados pelo subtipo C passou de 20%, entre 1986 e 1990, para 43%, entre 2001 e 2002, conforme relataram os pesquisadores noJournal of Acquired Immune Deficiency Syndromes de dezembro passado.

Segundo Soares, essa é uma tendência que pode ser extrapolada para todo o estado. Em um outro estudo, feito com 72 mulheres grávidas portadoras do HIV da cidade gaúcha de Rio Grande, o virologista do Rio verificou que a variedade C era responsável por 70% das infecções. “Ainda não há evidências formais de que o subtipo C se dissemine mais rápido que os outros”, afirma Soares, “mas, sempre que essa variedade aparece em uma região, ela acaba predominando sobre as demais.”

As conseqüências mais imediatas dessa alteração devem aparecer no tratamento dos portadores do vírus. Em outro estudo, publicado em setembro do ano passado naAntimicrobial Agents Chemotherapy , a equipe de Soares analisou o material genético das variedades B e C em busca de alterações que indicassem resistência às três classes de medicamentos usados na terapia anti-retroviral altamente ativa (Haart, na sigla em inglês), mais conhecida como coquetel anti-HIV.

Os pesquisadores observaram que a variedade C é mais sensível que a B ao lopinavir – um tipo específico de inibidor de protease, medicamento que impede as novas cópias do vírus de amadurecerem e infectarem outras células de defesa.Com esses dados, torna-se possível traçar novas estratégias de combate ao HIV.

“Talvez seja mais eficaz incluir o lopinavir no tratamento dos portadores do subtipo C”, cogita Soares. É uma alternativa a ser considerada, uma vez que os estudos sobre a capacidade de contaminação, agressividade ou resistência do HIV aos remédios, em geral, são realizados em países desenvolvidos e levam em conta apenas o subtipo B.

Como a distribuição de medicamentos contra o vírus é gratuita – o que torna os remédios disponíveis para todos os portadores do HIV -, o Rio Grande do Sul torna-se o estado mais indicado para se avaliar as modificações observadas no subtipo C durante o tratamento e também para o teste de vacinas de interesse dos países pobres ou em desenvolvimento. Na próxima etapa do trabalho, Soares pretende verificar a eficácia do lopinavir em pessoas com o vírus. Em um estudo planejado em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre, Soares busca avaliar como portadores do subtipo B e do C reagem ao tratamento com o lopinavir associado a dois inibidores de transcriptase reversa. O estudo deve começar neste semestre e durar dois anos.

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