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Física

Mundo 2D favorece fusão nuclear

Em sistemas bidimensionais, a chance de átomos de hidrogênio se fundirem e gerar energia é 1 bilhão de vezes maior

A reação que alimenta o Sol e as estrelas ocorreria com mais facilidade em um ambiente similar a uma folha de grafeno

SDO / NASA via Getty Images

Em um cenário em que existem apenas duas dimensões em vez de três e, no lugar de elétrons, o núcleo de átomos de hidrogênio é orbitado por múons – partículas elementares com carga elétrica negativa semelhante à dos elétrons, mas 207 vezes mais pesadas –, a chance de ocorrer reações de fusão nuclear aumenta em cerca de 1 bilhão de vezes. Os cálculos constam de um estudo teórico publicado em dezembro de 2020 por pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) na revista científica The European Physical Journal D. “No mundo bidimensional, a taxa de fusão nuclear se eleva de maneira fantástica”, comenta o físico de partículas Francisco Caruso, do CBPF, principal autor do trabalho. Mais do que usar múons no lugar de elétrons, seria essa alteração espacial a responsável por tornar o processo, ao menos nas contas dos cientistas, aparentemente mais viável, talvez até a temperatura ambiente.

Processo usado por estrelas como o Sol para gerar sua energia, a fusão é estudada há mais de 80 anos como uma possível forma alternativa de criar eletricidade de maneira segura e sustentável, com pequena produção de rejeitos e baixa radioatividade, diferentemente da fissão (quebra) nuclear empregada nas atuais usinas atômicas. No centro das estrelas, submetidos a temperaturas de 15 mil graus Celsius e a gigantescas pressões, os núcleos de dois ou mais átomos de hidrogênio, o elemento químico mais leve da tabela periódica, fundem-se e geram um átomo ligeiramente mais pesado, de hélio. No final do processo, há liberação de energia. Isso ocorre porque o peso do átomo de hélio é ligeiramente menor do que a soma da massa dos dois átomos de hidrogênio. Essa diferença faz com que uma pequena quantidade de massa escape da estrela a altas velocidades e produza energia – tal como mostra a famosa equação de Einstein E = mc2 (energia é igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz).

Até agora, no entanto, não se encontrou uma forma economicamente viável de reproduzir essa reação na Terra. Em todos os reatores experimentais construídos, no interior dos quais circula um plasma (estado da matéria similar a um gás dotado de partículas com carga elétrica) superaquecido submetido a um intenso campo magnético, a energia necessária para promover a fusão é sempre maior do que a liberada no fim do processo. As condições especiais simuladas no novo trabalho podem apontar um caminho alternativo, ainda que a construção de um aparelho ou dispositivo de fusão nuclear capaz de explorar as peculiaridades físicas de um ambiente bidimensional seja um desafio para a engenharia. “Apesar de ainda não existir um equipamento dedicado a observar essa reação em sistemas de duas dimensões, o acelerador de partículas do Canadá, o Triumf, já utiliza alvos muito finos que são empregados para estudar a fusão catalisada por múons”, comenta o físico Felipe Carvalho, um dos autores do estudo, que faz doutorado sob orientação de Caruso e Vitor Oguri, da Uerj.

Desde o final dos anos 1940, físicos sabem que a fusão entre as chamadas moléculas ou átomos muônicos, em que essa partícula mais pesada toma o lugar do elétron, é mais frequente do que em sua versão convencional. Quando o múon assume o papel do elétron, o átomo formado é muito mais denso. A distância entre seu núcleo, onde ficam os prótons e os nêutrons, e seu entorno habitado pelos múons é cerca de 200 vezes menor do que no átomo constituído com elétrons. Essa peculiaridade permite que os átomos muônicos fiquem bem mais perto uns dos outros e apresentem naturalmente um potencial mais elevado de fusão. No entanto, sozinha, essa maior predisposição a promover esse tipo de reação não é suficiente para vencer o empecilho clássico da fusão com átomos tradicionais, dotados de elétrons: a viabilidade econômica. Também no caso da fusão catalisada por múons, o gasto de energia para estimular o processo é maior do que a geração. Os múons são extremamente instáveis (duram cerca de 2 milissegundos) e sua produção e injeção em um sistema são dispendiosas.

De acordo com o estudo dos físicos do CBPF e da Uerj, essa limitação dos átomos muônicos de hidrogênio pode ser contornada se a fusão for estimulada em um sistema bidimensional em vez de no tradicional mundo tridimensional. No mundo em 2D, a predisposição à ocorrência dessa reação seria uma particularidade decorrente dessa arquitetura espacial mais restrita em que os átomos de hidrogênio muônico seriam mantidos. Nesse caso, as propriedades físico-químicas da matéria sofreriam um efeito semelhante ao apresentado pelos chamados materiais bidimensionais, como as folhas de grafeno e de seus derivados.

A exemplo do grafite e do diamante, o grafeno é composto apenas de átomos de carbono. O que lhe confere propriedades muito distintas das exibidas por esses dois materiais tridimensionais é sua estrutura hexagonal, formada por colmeias de carbono interligadas com a espessura de um átomo desse elemento químico. “Nosso estudo sugere que, do ponto de vista teórico, um sistema bidimensional, similar a uma folha de grafeno, poderia produzir fusão de átomos muônicos de hidrogênio de uma forma muito eficiente”, diz Caruso.

Para Ricardo Galvão, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), o artigo de seus colegas do Rio de Janeiro apresenta um resultado básico muito importante e, em princípio, abre a possibilidade de se utilizarem sistemas bidimensionais em experimentos de fusão catalisada por múons. “Mas a aplicação prática desse resultado não é trivial e envolverá estudos e desenvolvimentos muito mais aprofundados”, comenta Galvão, especialista em física de plasmas. “Em particular, não se sabe como montar um reator com essas ‘folhas’ muônicas.” O físico da USP também explica que, logo após a ocorrência das primeiras fusões, é possível que um hipotético sistema em 2D se “desmonte” em decorrência das reações e passe a ser tridimensional, uma mudança na arquitetura espacial que anularia os eventuais ganhos da estratégia. “Esse é um problema a ser resolvido pelos engenheiros que se interessarem pela questão”, diz Caruso.

Artigo científico
CARUSO, F. et al. A bidimensional quasi-adiabatic model for muon-catalyzed fusion in muonic hydrogen molecules. The European Physical Journal D. v. 74. 8 dez. 2020.

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