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Etnoecologia

Mundos não tão distantes

Cientistas e pescadores do litoral norte da Bahia se aproximam em ações educacionais e de conservação ambiental

Pescador sai do píer de Siribinha

Charbel Niño El-Hani / UFBA

É do conhecimento dos pescadores de Siribinha e de Poças, pequenas vilas situadas no estuário do rio Itapicuru, no município de Conde, litoral norte da Bahia, que é hora de puxar a rede quando se ouve o canto do caranguejeiro, gavião da espécie Buteogallus aequinoctialis, típico de áreas de manguezal. Ele se alimenta de animais comuns nesse ambiente, como os caranguejos. O som emitido pela ave, chamada localmente de gacici, é um sinal de que a maré está começando a baixar e é preciso tirar os peixes das redes para que não comecem a se deteriorar, expostos pela vazante. O universo dos pescadores, que inclui esse costume, foi retratado no documentário Pescando artes: A cultura viva em Siribinha, lançado em abril deste ano (veja trailer abaixo).

Produzido por pesquisadores do Laboratório de Ensino, Filosofia e História da Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o filme mostra o cotidiano da comunidade litorânea de Siribinha e seus conhecimentos tradicionais. É uma parte da cultura dos jangadeiros, uma das culturas pesqueiras do litoral brasileiro, que tem origem em uma síntese de conhecimentos de povos indígenas que habitavam o litoral e aqueles dos colonizadores portugueses.

A obra é fruto de um estudo envolvendo 28 pesquisadores da UFBA e de instituições da Colômbia, Holanda, Itália e Estados Unidos, conduzido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (INCT IN-TREE). Há dois anos eles investigam o conhecimento incorporado em técnicas de pesca, como o uso de redes em Siribinha e na comunidade de Poças, assim como os saberes de pescadores e marisqueiras sobre animais (peixes, crustáceos, moluscos e aves), plantas (usadas como alimento e medicação, além de artesanato) e ambientes locais.

O projeto inclui estudos de etnobiologia, campo que investiga os conhecimentos e as percepções das pessoas sobre a fauna e a flora, e etnoecologia, que se concentra em sistemas e processos ecológicos. Os resultados são utilizados em pesquisa e inovação educacional em colaboração com professoras das escolas locais, assim como em projetos de conservação e museologia. Os fundamentos filosóficos do projeto foram abordados em artigo em processo de publicação na revista Journal of Ethnobiology, assinado pelo biólogo brasileiro Charbel Niño El-Hani, da UFBA e coordenador do estudo e do INCT IN-TREE, e pelo filósofo alemão David Ludwig, da Universidade de Wageningen, na Holanda.

Os autores defendem a ideia de que os saberes tradicionais e científicos podem e devem ser integrados por meio do diálogo e da colaboração entre pesquisadores e residentes de comunidades locais. Porém, reconhecem a existência tanto de pontos de convergência quanto de diferenças entre as duas formas de conhecimento. “É possível detectar sobreposições parciais entre os sistemas de conhecimento acadêmico e de populações tradicionais, como indígenas e quilombolas”, explica El-Hani, tomando como exemplo o esforço de pesquisa para entender as propriedades de plantas medicinais usadas em várias culturas.

Charbel Niño El-Hani / UFBA Gacici jovem: ave é fonte de informações sobre as marésCharbel Niño El-Hani / UFBA

Em paralelo ao trabalho de pesquisa, a equipe coordenada pelo INCT IN-TREE promove atividades educacionais, envolvendo alunos e professoras de escolas da região, como forma de colocar em prática e investigar a proposta de interação. “As comunidades de Siribinha e Poças detêm um vasto conhecimento sobre os recursos naturais do mangue, incluindo peixes, crustáceos e moluscos”, diz a bióloga e educadora Rosiléia Oliveira de Almeida, pesquisadora da UFBA e uma das responsáveis pela parte educacional do projeto. “Esse conjunto de saberes locais precisa ser valorizado e preservado, e uma forma de fazer isso é abordá-lo no ensino de ciências”, diz.

O gavião-caranguejeiro ou gacici será um dos temas trabalhados em salas de aula de escolas de ensino fundamental nas comunidades de Siribinha e Poças. Os alunos, a maioria filhos de pescadores e marisqueiras, serão instigados a dizer o que sabem sobre a ave, com base principalmente naquilo que ouviram dos pais. Depois, o conhecimento científico sobre o animal e seu hábitat natural, ainda relativamente limitado, será abordado, com uma discussão das possibilidades de integração entre esses conhecimentos, conforme a metodologia de sobreposições parciais elaborada por Ludwig e El-Hani. “A ideia é mostrar aos estudantes que diferentes olhares sobre o mesmo ser vivo podem gerar uma gama mais variada de conhecimento”, explica Rosiléia Almeida. “O conhecimento acumulado pelos pescadores tem fornecido pistas valiosas para entendermos algumas das características dessa ave”, diz El-Hani.

Charbel Niño El-Hani / UFBA Na escola Brazilina Eugênia de Oliveira, em Poças, crianças fazem atividade de cartografia social como parte da aproximação entre conhecimento local e currículo oficialCharbel Niño El-Hani / UFBA

Tradição na escola
Entre 2017 e 2018 foram conduzidas 16 atividades com a participação de nove professoras e 150 alunos das Escolas Municipais Sagrada Família, em Siribinha, e Brazilina Eugênia de Oliveira, em Poças. A ideia é que o conhecimento tradicional, em diálogo com o currículo escolar, favoreça o aprendizado e contribua para que os jovens reconheçam o valor do que se sabe em suas comunidades. Em uma ocasião, por exemplo, tratou-se da tradição das pescadoras ou marisqueiras de cantarem e fazerem barulho batendo com galhos nos troncos das árvores do manguezal para atrair o aratu, da espécie Goniopsis cruentata, uma iguaria da culinária local. A atração se dá tanto pelo barulho quanto pelos odores exalados pelos galhos e folhas nessa situação. Em parceria com pesquisadores da UFBA, as professoras planejaram aulas para explicar aos estudantes a importância desse conhecimento para a captura do aratu e a economia local, e ao mesmo tempo discutir possíveis explicações científicas para o fenômeno.

“Sabe-se que o atrito entre as patas é usado em várias circunstâncias da comunicação de indivíduos dessa espécie, especialmente para o acasalamento. Ao cantar e fazer ruídos, as pescadoras emitem ondas sonoras que chamam a atenção dos caranguejos”, explica Rosiléia. “Essa explicação científica não tem muita importância para as mulheres, que utilizam a técnica há muito tempo e sabem que funciona para atrair os bichos. Mas é relevante mostrar aos estudantes que a ciência pode ajudar a compreender uma prática tradicional”, observa a bióloga. “Ao transformar a sala de aula em um espaço de experimentação de novos procedimentos didáticos, temos a chance de valorizar o conhecimento tradicional sem, para isso, distanciá-lo da perspectiva científica”, avalia Rosiléia, enfatizando que deve haver cuidado para não cristalizar, na sociedade, uma imagem da ciência como “dona da verdade”.

Charbel Niño El-Hani / UFBA Crianças do Cajueirinho chegam para a escola em SiribinhaCharbel Niño El-Hani / UFBA

“Não cabe aos cientistas validar outras formas de conhecimento”, ressalta Charbel El-Hani, afirmando que a intenção dos pesquisadores não é legitimar cientificamente os hábitos pesqueiros. “Nem sequer consideramos essa questão”, diz ele. “O objetivo é criar uma base de conhecimento integrando saberes tradicionais e científicos para abastecer iniciativas educacionais e de capacitação em gestão ambiental. Essa abordagem pode até contribuir na elaboração de estratégias para preservar o ecossistema local.”

Da universidade ao município
Uma iniciativa das lideranças da comunidade, em processo de concretização, é a implantação de um ecomuseu no estuário do Itapicuru, um projeto que partiu da preocupação em preservar o acervo natural e histórico do local. “A região recebe visitantes do mundo todo, atraídos pelas praias paradisíacas e pelo ecoturismo”, diz a museóloga Sidélia Santos Teixeira, do Departamento de Museologia da UFBA. Segundo ela, espera-se que um primeiro núcleo do ecomuseu seja construído até dezembro e mais três centros em 2020. O projeto é uma parceria da UFBA com a prefeitura de Conde (BA) e as comunidades do estuário e está orçado em R$ 1,5 milhão. A expectativa é de que parte do valor possa ser financiado via editais públicos e parte via recursos de compensação ambiental. A ideia é que a gestão seja compartilhada entre a prefeitura, museólogos da UFBA e representantes da comunidade.

Charbel Niño El-Hani / UFBA Praia de Siribinha: pescadores têm técnica especial para por as canoas na água mesmo quando as ondas estão fortesCharbel Niño El-Hani / UFBA

“O museu abrigará exposições temporárias e de longa duração sobre tradições locais, utilizando recursos de informática e audiovisuais”, conta Sidélia. Uma parte importante do ecomuseu – que justifica o projeto estar na categoria de museu – será seu acervo natural, ou seja, a musealização de partes do território do estuário do rio Itapicuru. Serão estabelecidas trilhas interpretativas com placas informativas sobre plantas, animais, ambientes, conhecimentos, costumes e histórias locais, sempre que possível integrando ideias científicas e tradicionais. “É uma forma de valorizar o patrimônio imaterial da comunidade e, ao mesmo tempo, apresentar o olhar da ciência sobre aquela realidade”, afirma Sidélia. Integrantes das comunidades estão sendo treinados como guias para os turistas, atividade que pode vir a ser uma fonte alternativa de renda.

Às vezes, surgem ruídos no diálogo entre conhecimentos tradicionais e científicos. Uma pergunta frequente feita aos pesquisadores que participam do projeto é: o que fazer quando a ciência tem uma explicação que contradiz um saber tradicional? “Em primeiro lugar, deve-se pesar os custos e benefícios de abordar esse conflito com a comunidade”, sugere El-Hani. Por exemplo, se uma prática tradicional vem comprometendo a produtividade da pesca ou representa ameaças ao ecossistema local, pode ser válido apresentar à comunidade uma alternativa científica – sempre de maneira respeitosa, sublinha o biólogo. “Em outros casos, não faz sentido o cientista se opor a uma tradição com o intuito apenas de demonstrar superioridade em relação ao povo local.”

Um caso ilustrativo é a lenda do Caipora, personagem da mitologia tupi-guarani associada à vida animal. Em várias aldeias, incluindo Siribinha e Poças, existe a crença de que, quando um pescador não adota práticas ambientalmente saudáveis, o Caipora pode pregar uma peça, fazendo a pessoa se desorientar e perder o caminho de volta para casa. Conta-se, em muitas comunidades baianas, que o Caipora aplica um castigo a um pescador que extrai uma quantidade muito grande de casca do mangue-vermelho (Rhizophora mangle), uma árvore rica em tanino, utilizada para tingir tecidos e velas dos barcos. “Trata-se de um mito extremamente relevante em termos de educação ambiental e de conservação. Ao corporificar um modelo de uso sustentável dos recursos naturais, a lenda do Caipora consegue regular a ação das comunidades tradicionais no meio ambiente”, diz El-Hani. “A pergunta menos interessante que se pode fazer sobre o Caipora é se ele existe ou não”, conclui, evitando contrapor mito e ciência.

Artigos científicos
LUDWIG, D. e EL-HANI, C. N. Philosophy of ethnobiology: Understanding knowledge integration and its limitations. Journal of Ethnobiology, no prelo.
EL-HANI, C. N. e ALMEIDA, R. O. “Spaces of encounter and misencounter between researchers and local people in interdisciplinary and transdisciplinary studies in fishing villages”. In: GUILHERME, M. (Ed.). Glocademics: A plurilingual, intercultural and interdisciplinary perspective on transnational research. Bristol: Multilingual Matters, 2019.

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