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memória

Museu Imperial expõe diários de viagem de dom Pedro II

Cadernetas registram impressões sobre o Brasil e os países que visitou antes de se exilar na França

Em 1871, o imperador visitou as pirâmides de Gizé, no Egito;

DELIE, M.; BECHARD, E. / De volta à luz: Fotografias nunca vistas do Imperador. 2003 / Fundação Biblioteca Nacional / Wikimedia Commons

Com muito cuidado, levemente curvado sobre uma mesa em uma sala silenciosa e bem iluminada do Museu Imperial, em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, o restaurador Edmar Gonçalves atravessa com uma espátula um grampo metálico que prendia um conjunto de páginas amareladas. Em seguida, prende a ponta do instrumento sobre a mesa, levanta-o, como uma alavanca, remove o grampo e deixa as folhas respirarem. À frente de um grupo de restauradores de uma empresa especializada e sob a supervisão da equipe técnica do museu, Gonçalves começou a trabalhar em abril de 2025 na recuperação de 38 diários de viagem do imperador dom Pedro II (1825-1891).

Escritos ao longo de 51 anos, entre 1840 e 1891, os 43 diários (cinco não serão restaurados por não estarem encadernados) documentam as viagens do imperador pelo Brasil e por outros 20 países que visitou, com descrições, ilustrações, desenhos e até poemas. A letra precisa e arredondada do monarca está gravada em papéis típicos do século XIX, produzidos a partir de pasta de madeira. Com 10 centímetros (cm) a 25 cm de altura, as cadernetas estão em diferentes estados de conservação. A maioria tem capa de couro, mas algumas são revestidas com tela de algodão e papel marmorizado e há também as sem capa e outras com capas feitas com a parte interna da pele de animais.

Inscritos em 2010 no Programa Memória do Mundo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), os diários já haviam sido transcritos e publicados on-line. Em dezembro, marcando o bicentenário de nascimento do último imperador do Brasil, começaram a ser expostas pela primeira vez, de forma alternada, no museu de Petropólis.

Os diários foram restaurados com o mínimo possível de modificações. “O que foi perdido foi reconstruído com material de qualidade, similar ao original”, informa a bacharel em pintura Beatriz Penna, responsável pelo laboratório de conservação e restauração do Museu Imperial. Em uma das cadernetas, o chamado cabeceado – tecido fixado no alto ou no pé da lombada de uma encadernação – não tinha acabamento. Gonçalves aproveitou o material extra do interior do cabeceado original para fazer um novo.

Os restauradores sabiam que talvez precisassem fazer enxertos. “Independentemente do material de revestimento ou tipo de papel, o enxerto é sempre um tom mais baixo para que possamos perceber que houve a intervenção”, destaca Gonçalves. Os especialistas, com olhar mais apurado, conseguem detectar as emendas, dificilmente perceptíveis para quem não é da área.

Museu Imperial/IBRAM/MINCSuas viagens foram registradas em 43 cadernetas como estasMuseu Imperial/IBRAM/MINC

Em maio de 1871, dom Pedro embarcou pela primeira vez para a Europa. Em Lisboa, visitou Amélia de Leuchtenberg (1812–1873), viúva de seu pai, dom Pedro I (1798–1834), e conheceu intelectuais portugueses, como o escritor Alexandre Herculano (1810–1877). Na Alemanha, foi apresentado ao compositor Richard Wagner (1813–1883).

Quatro anos depois, esteve nos Estados Unidos. Inaugurou a Exposição da Filadélfia, ao lado do presidente Ulysses Grant (1822–1885), acionou um motor a vapor e se encontrou com os inventores Thomas Edison (1847–1931) e Alexander Graham Bell (1847–1922), que lhe apresentou seu invento mais recente, o telefone. Em 25 de junho de 1876, registrou sua opinião sobre o aparelho: “O telefone de (…) não deu perfeito resultado, mas assim mesmo duas pessoas leram – uma quase nada – dois telegramas que mandei ao mesmo tempo”.

Em julho, dom Pedro novamente atravessou o Atlântico. Em Bruxelas, encontrou o médico francês Jean-Marie Charcot (1825–1893) e em Paris conheceu o químico Louis Pasteur (1822–1895) e o escritor Victor Hugo (1802–1885). Suas chegadas e partidas eram noticiadas pelos jornais do Rio, como a Gazeta de Notícias e Jornal do Commercio.

Os diários revelam um governante curioso e atento. “Identifiquei nas cadernetas a busca incessante do imperador pela imagem e memória do pai, dom Pedro I, tanto no Brasil, quanto na Europa”, comenta o arquiteto Paulo Rezzutti, autor de D. Pedro II: O último imperador do novo mundo revelado por cartas e documentos inéditos (Leya, 2019). “No Egito, para minha surpresa, ele gravava seu nome nos antigos monumentos.”

De fato, em sua viagem ao Egito em 1871, o imperador conheceu as pirâmides de Gizé e relatou: “As americanas pediram-me que escrevesse meu nome em bilhetes de visita e eu fi-lo também numa das pedras do cimo do monumento, depois de havê-la escrito, com um grosso lápis dado por um árabe. Já havia feito o mesmo num recanto onde descansei mais tempo na subida”.

Deposto em 1889, com a implantação da República, dom Pedro II exilou-se na França. Com um endereço fixo em um hotel de Paris, mantinha uma intensa atividade cultural: leu bastante, traduziu obras de escritores e poetas europeus, visitou academias científicas e encontrou-se com médicos e intelectuais.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Em 17 de julho de 1890, por exemplo, ele escreveu: “Estudei grego traduzindo a Odisseia com a comparação [de versões] do costume e o mesmo fiz relativamente aos Lusíadas e o alemão”. Ainda que não fosse mais imperador, ele zelava pela própria imagem: gostava de ser fotografado em situações da vida privada, mas cercado de livros, instrumentos musicais e outros objetos ligados à erudição.

“Dom Pedro II foi educado desde pequeno para ser uma pessoa pública, voltada para a condução do Estado, e sabia que o governante deve abrir um pouco da sua intimidade para conquistar o afeto dos governados”, comenta a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, autora de As barbas do Imperador D. Pedro II, um monarca nos trópicos (Cia. das Letras, 1998). Por essa razão, ela considera os diários como “uma peça de bem governar”.

O imperador passava temporadas de inverno em Cannes, na Riviera Francesa, em Pau, nos Pirineus, e em Biarritz. Seu propósito era recuperar a saúde fragilizada. Com mais tempo, pôs-se a fazer poemas, reunidos pelo escritor José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) no livro Poesias completas de D. Pedro II (Guanabara, 1932) e contextualizados pelo historiador Hélio Vianna (1908-1972) em D. Pedro I e d. Pedro II: acréscimos às suas biografias (Companhia Editora Nacional, 1966). Vários poemas são para a filha mais velha, Isabel (1846-1921), e para os netos.

Outros, mais formais, adotam o formato clássico de sonetos, como este, intitulado Ingratos, com sua visão sobre o golpe republicano, que começa assim: “Não maldigo o rigor da iníqua sorte,/ Por mais atroz que fosse e sem piedade,/ Arrancando-me o trono e a majestade,/ Quando a dous passos só estou da morte”.

Um dos monarcas mais prolíficos, ainda que não o único a registrar suas impressões sobre lugares que visitou, o último imperador do Brasil morreu em 5 de dezembro de 1891, com pneumonia, aos 66 anos, em seu quarto, o 391, do Hôtel Bedford, em Paris. Após o funeral, foi levado em um cortejo até uma estação de trem e sepultado no Panteão da Dinastia de Bragança, em Lisboa, Portugal. Em 1921, seus restos mortais foram trazidos para o Brasil e depositados no Mausoléu Imperial da Catedral de São Pedro de Alcântara, em Petrópolis.

Outros monarcas que fizeram diários

No Reino Unido, ao menos três monarcas escreveram cadernetas de viagem. A rainha Vitória (1819–1901) detalhou suas visitas à Escócia, Alemanha, França e Itália. Parte dos relatos foi publicada em livros como Leaves from the journal of our life in the highlands (1868). O príncipe de Gales, futuro Eduardo VII (1841-1910), também fez anotações de sua viagem de 1860 aos Estados Unidos e ao Canadá. O rei George V (1865-1936) registrou seus deslocamentos pelo Império Britânico, Índia e Egito. Seus diários foram publicados parcialmente.

Luís XVI (1754–1793), da França, manteve um diário pessoal que incluía registros de deslocamentos e viagens de caça e inspeções. Já Napoleão Bonaparte (1769-1821) fez anotações de viagem durante campanhas militares, como as na Itália e no Egito, e ditou memórias no exílio em Santa Helena (Le mémorial de Sainte-Hélène), obra impressa e reeditada muitas vezes.

Na Espanha, o rei Afonso XIII (1886–1941) também mantinha diários e cadernos de viagem de visitas pelo território espanhol e ao exterior. Sua obra foi editada e publicada. Em Portugal, embora dom João VI (1767-1826) não tenha deixado diário pessoal conhecido, membros de sua comitiva anotaram detalhes de sua viagem forçada ao Brasil (1807–1808). Já dom Carlos I (1863–1908) registrou de próprio punho suas expedições oceanográficas e viagens pelo império português.

O Leste Europeu também guarda registros importantes. Pedro, o Grande (1672–1725), da Rússia, fez relatos e notas durante sua Grande Embaixada (1697–1698), quando viajou incógnito pela Europa. Já Nicolau II (1868–1918), também russo, manteve diários pessoais e de viagens, abordando visitas a diferentes locais do mundo, entre eles o Extremo Oriente (Japão, China, Sudeste Asiático). Há inclusive edições e traduções parciais publicadas.

Ainda na Europa, as reflexões e notas de Frederico, o Grande (1712–1786), da Alemanha/Prússia, foram publicadas algumas vezes, enquanto na Suécia e Noruega, o rei Oscar II (1829–1907), que governou ambos os países, escreveu relatos de viagem e ensaios, publicados em sueco.

Na Ásia, também há exemplos de diários de monarcas. O imperador Meiji (1852–1912), do Japão, registrou e mandou registrar suas viagens pelo próprio país. Os relatos foram feitos durantes períodos de modernização e centralização do império. As informações foram organizadas e publicadas em crônicas e coleções oficiais. O imperador Hirohito (1901–1989) também fazia diários, com observações de viagens oficiais e científicas – ele se interessava por biologia marinha.

(poema de dom Pedro II sobre o golpe republicano)
Ingratos
Não maldigo o rigor da iníqua sorte,
Por mais atroz que fosse e sem piedade,
Arrancando-me o trono e a majestade,
Quando a dous passos só estou da morte.

Do jogo das paixões minha alma forte
Conhece bem a estulta variedade,
Que hoje nos dá contínua f’licidade
E amanhã nem um bem que nos conforte.

Mas a dor que excrucia e que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata,

É ver na mão cuspir a extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata,
Que tantos beijos nela pôs outrora.

Livros
ALCÂNTARA, Pedro de. Poesias completas de D. Pedro II (Originais e traduções. Sonetos do exílio. Autênticas e apócrifas). Coleção e organização de Medeiros e Albuquerque. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1932.
DELIE, M.; BECHARD, E. De volta à luz: Fotografias nunca vistas do Imperador. São Paulo: Banco Santos; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2003.
VIANA, Hélio. D. Pedro I e d. Pedro II: acréscimos às suas biografias. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.

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