Com muito cuidado, levemente curvado sobre uma mesa em uma sala silenciosa e bem iluminada do Museu Imperial, em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, o restaurador Edmar Gonçalves atravessa com uma espátula um grampo metálico que prendia um conjunto de páginas amareladas. Em seguida, prende a ponta do instrumento sobre a mesa, levanta-o, como uma alavanca, remove o grampo e deixa as folhas respirarem. À frente de um grupo de restauradores de uma empresa especializada e sob a supervisão da equipe técnica do museu, Gonçalves começou a trabalhar em abril de 2025 na recuperação de 38 diários de viagem do imperador dom Pedro II (1825-1891).
Escritos ao longo de 51 anos, entre 1840 e 1891, os 43 diários (cinco não serão restaurados por não estarem encadernados) documentam as viagens do imperador pelo Brasil e por outros 20 países que visitou, com descrições, ilustrações, desenhos e até poemas. A letra precisa e arredondada do monarca está gravada em papéis típicos do século XIX, produzidos a partir de pasta de madeira. Com 10 centímetros (cm) a 25 cm de altura, as cadernetas estão em diferentes estados de conservação. A maioria tem capa de couro, mas algumas são revestidas com tela de algodão e papel marmorizado e há também as sem capa e outras com capas feitas com a parte interna da pele de animais.
Inscritos em 2010 no Programa Memória do Mundo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), os diários já haviam sido transcritos e publicados on-line. Em dezembro, marcando o bicentenário de nascimento do último imperador do Brasil, começaram a ser expostas pela primeira vez, de forma alternada, no museu de Petropólis.
Os diários foram restaurados com o mínimo possível de modificações. “O que foi perdido foi reconstruído com material de qualidade, similar ao original”, informa a bacharel em pintura Beatriz Penna, responsável pelo laboratório de conservação e restauração do Museu Imperial. Em uma das cadernetas, o chamado cabeceado – tecido fixado no alto ou no pé da lombada de uma encadernação – não tinha acabamento. Gonçalves aproveitou o material extra do interior do cabeceado original para fazer um novo.
Os restauradores sabiam que talvez precisassem fazer enxertos. “Independentemente do material de revestimento ou tipo de papel, o enxerto é sempre um tom mais baixo para que possamos perceber que houve a intervenção”, destaca Gonçalves. Os especialistas, com olhar mais apurado, conseguem detectar as emendas, dificilmente perceptíveis para quem não é da área.

Museu Imperial/IBRAM/MINCSuas viagens foram registradas em 43 cadernetas como estasMuseu Imperial/IBRAM/MINC
Em maio de 1871, dom Pedro embarcou pela primeira vez para a Europa. Em Lisboa, visitou Amélia de Leuchtenberg (1812–1873), viúva de seu pai, dom Pedro I (1798–1834), e conheceu intelectuais portugueses, como o escritor Alexandre Herculano (1810–1877). Na Alemanha, foi apresentado ao compositor Richard Wagner (1813–1883).
Quatro anos depois, esteve nos Estados Unidos. Inaugurou a Exposição da Filadélfia, ao lado do presidente Ulysses Grant (1822–1885), acionou um motor a vapor e se encontrou com os inventores Thomas Edison (1847–1931) e Alexander Graham Bell (1847–1922), que lhe apresentou seu invento mais recente, o telefone. Em 25 de junho de 1876, registrou sua opinião sobre o aparelho: “O telefone de (…) não deu perfeito resultado, mas assim mesmo duas pessoas leram – uma quase nada – dois telegramas que mandei ao mesmo tempo”.
Em julho, dom Pedro novamente atravessou o Atlântico. Em Bruxelas, encontrou o médico francês Jean-Marie Charcot (1825–1893) e em Paris conheceu o químico Louis Pasteur (1822–1895) e o escritor Victor Hugo (1802–1885). Suas chegadas e partidas eram noticiadas pelos jornais do Rio, como a Gazeta de Notícias e Jornal do Commercio.
Os diários revelam um governante curioso e atento. “Identifiquei nas cadernetas a busca incessante do imperador pela imagem e memória do pai, dom Pedro I, tanto no Brasil, quanto na Europa”, comenta o arquiteto Paulo Rezzutti, autor de D. Pedro II: O último imperador do novo mundo revelado por cartas e documentos inéditos (Leya, 2019). “No Egito, para minha surpresa, ele gravava seu nome nos antigos monumentos.”
De fato, em sua viagem ao Egito em 1871, o imperador conheceu as pirâmides de Gizé e relatou: “As americanas pediram-me que escrevesse meu nome em bilhetes de visita e eu fi-lo também numa das pedras do cimo do monumento, depois de havê-la escrito, com um grosso lápis dado por um árabe. Já havia feito o mesmo num recanto onde descansei mais tempo na subida”.
Deposto em 1889, com a implantação da República, dom Pedro II exilou-se na França. Com um endereço fixo em um hotel de Paris, mantinha uma intensa atividade cultural: leu bastante, traduziu obras de escritores e poetas europeus, visitou academias científicas e encontrou-se com médicos e intelectuais.
Em 17 de julho de 1890, por exemplo, ele escreveu: “Estudei grego traduzindo a Odisseia com a comparação [de versões] do costume e o mesmo fiz relativamente aos Lusíadas e o alemão”. Ainda que não fosse mais imperador, ele zelava pela própria imagem: gostava de ser fotografado em situações da vida privada, mas cercado de livros, instrumentos musicais e outros objetos ligados à erudição.
“Dom Pedro II foi educado desde pequeno para ser uma pessoa pública, voltada para a condução do Estado, e sabia que o governante deve abrir um pouco da sua intimidade para conquistar o afeto dos governados”, comenta a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, autora de As barbas do Imperador – D. Pedro II, um monarca nos trópicos (Cia. das Letras, 1998). Por essa razão, ela considera os diários como “uma peça de bem governar”.
O imperador passava temporadas de inverno em Cannes, na Riviera Francesa, em Pau, nos Pirineus, e em Biarritz. Seu propósito era recuperar a saúde fragilizada. Com mais tempo, pôs-se a fazer poemas, reunidos pelo escritor José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) no livro Poesias completas de D. Pedro II (Guanabara, 1932) e contextualizados pelo historiador Hélio Vianna (1908-1972) em D. Pedro I e d. Pedro II: acréscimos às suas biografias (Companhia Editora Nacional, 1966). Vários poemas são para a filha mais velha, Isabel (1846-1921), e para os netos.
Outros, mais formais, adotam o formato clássico de sonetos, como este, intitulado Ingratos, com sua visão sobre o golpe republicano, que começa assim: “Não maldigo o rigor da iníqua sorte,/ Por mais atroz que fosse e sem piedade,/ Arrancando-me o trono e a majestade,/ Quando a dous passos só estou da morte”.
Um dos monarcas mais prolíficos, ainda que não o único a registrar suas impressões sobre lugares que visitou, o último imperador do Brasil morreu em 5 de dezembro de 1891, com pneumonia, aos 66 anos, em seu quarto, o 391, do Hôtel Bedford, em Paris. Após o funeral, foi levado em um cortejo até uma estação de trem e sepultado no Panteão da Dinastia de Bragança, em Lisboa, Portugal. Em 1921, seus restos mortais foram trazidos para o Brasil e depositados no Mausoléu Imperial da Catedral de São Pedro de Alcântara, em Petrópolis.
No Reino Unido, ao menos três monarcas escreveram cadernetas de viagem. A rainha Vitória (1819–1901) detalhou suas visitas à Escócia, Alemanha, França e Itália. Parte dos relatos foi publicada em livros como Leaves from the journal of our life in the highlands (1868). O príncipe de Gales, futuro Eduardo VII (1841-1910), também fez anotações de sua viagem de 1860 aos Estados Unidos e ao Canadá. O rei George V (1865-1936) registrou seus deslocamentos pelo Império Britânico, Índia e Egito. Seus diários foram publicados parcialmente.
Luís XVI (1754–1793), da França, manteve um diário pessoal que incluía registros de deslocamentos e viagens de caça e inspeções. Já Napoleão Bonaparte (1769-1821) fez anotações de viagem durante campanhas militares, como as na Itália e no Egito, e ditou memórias no exílio em Santa Helena (Le mémorial de Sainte-Hélène), obra impressa e reeditada muitas vezes.
Na Espanha, o rei Afonso XIII (1886–1941) também mantinha diários e cadernos de viagem de visitas pelo território espanhol e ao exterior. Sua obra foi editada e publicada. Em Portugal, embora dom João VI (1767-1826) não tenha deixado diário pessoal conhecido, membros de sua comitiva anotaram detalhes de sua viagem forçada ao Brasil (1807–1808). Já dom Carlos I (1863–1908) registrou de próprio punho suas expedições oceanográficas e viagens pelo império português.
O Leste Europeu também guarda registros importantes. Pedro, o Grande (1672–1725), da Rússia, fez relatos e notas durante sua Grande Embaixada (1697–1698), quando viajou incógnito pela Europa. Já Nicolau II (1868–1918), também russo, manteve diários pessoais e de viagens, abordando visitas a diferentes locais do mundo, entre eles o Extremo Oriente (Japão, China, Sudeste Asiático). Há inclusive edições e traduções parciais publicadas.
Ainda na Europa, as reflexões e notas de Frederico, o Grande (1712–1786), da Alemanha/Prússia, foram publicadas algumas vezes, enquanto na Suécia e Noruega, o rei Oscar II (1829–1907), que governou ambos os países, escreveu relatos de viagem e ensaios, publicados em sueco.
Na Ásia, também há exemplos de diários de monarcas. O imperador Meiji (1852–1912), do Japão, registrou e mandou registrar suas viagens pelo próprio país. Os relatos foram feitos durantes períodos de modernização e centralização do império. As informações foram organizadas e publicadas em crônicas e coleções oficiais. O imperador Hirohito (1901–1989) também fazia diários, com observações de viagens oficiais e científicas – ele se interessava por biologia marinha.
Ingratos
Não maldigo o rigor da iníqua sorte,
Por mais atroz que fosse e sem piedade,
Arrancando-me o trono e a majestade,
Quando a dous passos só estou da morte.
Do jogo das paixões minha alma forte
Conhece bem a estulta variedade,
Que hoje nos dá contínua f’licidade
E amanhã nem um bem que nos conforte.
Mas a dor que excrucia e que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata,
É ver na mão cuspir a extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata,
Que tantos beijos nela pôs outrora.
Livros
ALCÂNTARA, Pedro de. Poesias completas de D. Pedro II (Originais e traduções. Sonetos do exílio. Autênticas e apócrifas). Coleção e organização de Medeiros e Albuquerque. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1932.
DELIE, M.; BECHARD, E. De volta à luz: Fotografias nunca vistas do Imperador. São Paulo: Banco Santos; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2003.
VIANA, Hélio. D. Pedro I e d. Pedro II: acréscimos às suas biografias. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.
