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Divulgação científica

Museu Nacional com um toque português

Quatro anos após o incêndio, instituição planeja uma renovação do enfoque das exposições, inspirado por museu da Universidade do Porto

Nesta manhã a fachada foi reapresentada após recuperação, quatro anos depois do incêndio

Tânia Rêgo/Agência Brasil

Embora acostumado a visitar e preparar exposições, o paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), maravilhou-se com o que encontrou na Galeria da Biodiversidade, uma das unidades do Museu de História Natural e Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP), em Portugal, em setembro de 2021.

“A primeira coisa que vi na Galeria foi uma vitrine com dezenas de ovos de diferentes espécies de aves, pendurados por fios e organizados por cor, tamanho e esfericidade”, ele conta. O encanto estético contribui no entendimento de que o formato é importante para a resistência à quebra – sobretudo de ovos grandes – e para se manterem dentro de certos tipos de ninhos. “Não muito distante, havia outra instalação, composta por um pequeno boneco de um lobo negro, em torno do qual flutuavam 400 outras miniaturas de cães; não fosse o lobo selvagem, não teríamos nossos cachorrinhos, já que todas as raças têm o lobo como ancestral comum”, pondera Kellner. “Se o lobo tivesse sido extinto, não existiria o cachorro, demonstrando a importância da preservação da biodiversidade.”

A experiência na Galeria da Biodiversidade o fez repensar a forma de apresentar o acervo do Museu Nacional e suas próximas mostras assim que o edifício, destruído por um incêndio em 2 de setembro de 2018, puder novamente receber visitantes, previsto para dentro de cinco anos. “Nunca tinha visto em nenhum lugar do mundo essa maneira de contar uma história e de mexer com as pessoas. Foi algo intrigante e emocionante”, diz o paleontólogo. “Se eles fizeram uma cortina com dezenas de variedades de milho, das mais antigas às mais modernas, para mostrar a seleção natural e o melhoramento genético induzido pela ação humana, podemos fazer no Museu Nacional uma semelhante com abacaxi ou feijão.”

JFFInstalação no átrio da Galeria da Biodiversidade mostrando ovos de diferentes tamanhos, cores e esfericidadeJFF

Museologia total
A Galeria da Biodiversidade está instalada em um dos edifícios mais icônicos da cidade do Porto, no norte de Portugal: a Casa Andresen, localizada no Jardim Botânico do município. Construído na segunda metade do século XIX, o palacete em estilo romântico de três pisos abrigou por décadas a família da escritora e poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). Entre 1953 e 2006, foi a sede do Instituto de Botânica Gonçalo Sampaio, um dos primeiros centros de investigação da UP.

Inaugurada em 2017, a Galeria foi a primeira unidade aberta do MHNC-UP que, desde 2011, passa por um profundo processo de renovação. É composta por 49 módulos expositivos e instalações – e diversos recursos multimídia –, que se organizam em 15 temas principais por meio dos quais são abordados os mais variados aspectos da diversidade biológica e cultural.

“A Galeria da Biodiversidade é, em primeiro lugar, uma viagem pela vida. Mas é também um cruzamento entre arte e ciência”, afirma o biólogo português Nuno Ferrand de Almeida, diretor do MHNC-UP. “É uma forma de explicar às pessoas nosso entendimento da vida hoje, suas principais características e também os problemas associados à sua conservação e preservação em um mundo em mudança.”

O espaço foi concebido segundo os preceitos da museologia total, idealizada pelo físico espanhol Jorge Wagensberg (1948-2018), criador e ex-diretor do CosmoCaixa – anteriormente conhecido como Museu de Ciência de Barcelona. Em entrevista concedida a Pesquisa FAPESP em 2004, ano de abertura do CosmoCaixa, ele explicou em que se baseava sua concepção museológica. “Para despertar a curiosidade científica, um museu tem que emocionar”, afirmou. “Um museu da ciência não é feito para ensinar, informar ou formar pessoas – embora nada disso esteja proibido. É feito para apresentar a realidade e algumas fatias do conhecimento que o homem acumulou sobre ela, de forma tão bela e sugestiva que desperte a irresistível vontade de compreendê-la melhor.”

JFFVitrine de cachorros: objetivo é mostrar que todos tiveram um ancestral comum, o loboJFF

A ideia de fazer um cruzamento entre arte e ciência e, assim, intrigar e seduzir o público para os mistérios da natureza, foi o que levou Almeida a estabelecer uma parceria de trabalho com Wagensberg e adotar a filosofia da museologia total na Galeria da Biodiversidade. “As histórias que aqui contamos têm uma base científica muito sólida, mas todas as instalações são feitas por artistas. Têm um encanto e geram uma emoção que as pessoas não vão esquecer”, conta.

O ponto de partida foi um conto de Sophia Andresen, intitulado “Saga”, em que ela imagina o esqueleto de uma baleia, cujos ossos jaziam abandonados nos corredores do então edifício da Faculdade de Ciências da UP, suspenso no átrio de sua casa. “Esse é o mote que dá origem à narrativa da Galeria da Biodiversidade”, informa Almeida (ver entrevista).

“Tudo na casa era desmedidamente grande desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências por não haver lugar onde coubesse armado.”
“Saga”, Sophia de Mello Breyner Andresen

Cooperação científica
Em fevereiro deste ano, decidido a fazer uma parceria com o MHNC-UP, Kellner voltou ao Porto com sua equipe de curadores. “Pensar a ciência com o viés da arte foi muito inspirador”, comenta a museóloga Thaís Mayumi Pinheiro, chefe do Setor de Museologia do MN, que participou da visita. “Ainda que a Galeria não tenha exatamente nosso perfil, porque temos uma abrangência maior, vimos um grande poder de síntese e formas criativas de apresentar conceitos científicos.”

Diogo VasconcellosParte da coleção de pesquisa sobre vertebrados, abrigada em edifício anexo, não se perdeuDiogo Vasconcellos

A visita reforçou a cooperação científica com Almeida, que articulou um acordo entre as universidades do Porto, de Lisboa e do Minho com o Museu Nacional para financiar 10 bolsas de doutorado por ano, durante cinco anos, com foco na recuperação do MN. Os selecionados, que podem vir de qualquer instituição do mundo, devem passar uma parte do doutorado em Portugal e outra no Brasil, ganhando o título nos dois países. O acordo deve ser anunciado, e os primeiros bolsistas selecionados, até o final deste ano.

“Esse projeto é hoje uma de minhas maiores motivações”, ressalta Almeida. “É um programa de amplo espectro, com projetos de pesquisa em diversas áreas, como história da ciência, biodiversidade, antropologia, paisagismo e arquitetura. Trata-se de um dos maiores acordos de colaboração científica entre Brasil e Portugal, com o aporte de € 5 milhões pela Fundação de Ciência e Tecnologia [de Portugal].” A perspectiva é de que venha a ter enorme sucesso e possa estreitar as relações científicas e culturais entre os dois países.

Com o acordo luso-brasileiro e a circulação de pesquisadores, Kellner espera também continuar a recompor o acervo, já que mais da metade dos estimados 20 milhões de itens das coleções se perdeu no incêndio de 2018. Por meio de uma campanha lançada em setembro de 2021, o MN recebeu milhares de itens, incluindo livros, objetos da família imperial, animais taxidermizados e materiais arqueológicos, de instituições e colecionadores privados do Brasil e de outros países.

Diogo VasconcellosEm prédio próprio, herbário não foi afetado pelo fogoDiogo Vasconcellos

Em outubro de 2021, o Museu da Ciência da Universidade de Coimbra doou ao MN uma coleção de mil exemplares de moluscos, como detalhado em um artigo de Kellner e Mariah Martins, também do MN, na edição de julho do Boletim Icom Portugal (Icom é o Conselho Internacional de Museus).

“Em julho começamos a intensificar os pedidos de doações para colecionadores e instituições do Brasil, que antes não podíamos receber por falta de espaço adequado; agora estamos preparados”, diz Kellner. Com esse propósito, no início de agosto ele foi a Teófilo Ottoni, em Minas Gerais, buscar uma coleção de minerais. “Só poderemos maravilhar os visitantes se tivermos novamente um bom acervo.”

Em uma entrevista coletiva nesta manhã, ele recebe jornalistas dentro do edifício do museu e apresenta a fachada e o jardim reconstruídos e uma exposição de esculturas greco-romanas que antes ocupavam o telhado do prédio e poderão ser vistas de perto. Pinheiro conta que essa e as próximas exposições deverão evitar as divisões temáticas antes adotadas e seguir uma visão integrada das áreas do conhecimento dentro de quatro eixos: histórico, Universo e vida, diversidade cultural e diversidade ambiental do Brasil.

Diogo VasconcellosMeteorito de Bendegó, um sobrevivente das chamasDiogo Vasconcellos


Um meteorito e as impressões em 3D
Pesquisas exploram o acervo do Museu Nacional

Na noite de 2 de setembro de 2018, um domingo, a historiadora Letícia Squeff, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), recebeu no celular uma foto das chamas que naquele momento consumiam o Museu Nacional. No dia seguinte, viu outra foto, a do meteorito de Bendegó, uma das poucas peças que se salvaram da parte do acervo que estava dentro do palácio incendiado. Abalada e indignada com a tragédia, resolveu estudar melhor a história e os significados do bloco de ferro que resistira ao fogo. Encontrado em 1784 no riacho Bendegó, no atual município de Monte Santo, no sertão da Bahia, havia chegado ao museu em novembro de 1888, após uma viagem de 126 dias. É o maior meteorito já identificado no país, com 5,36 toneladas e 1,5 metro de largura.

Por meio de um projeto apoiado pela FAPESP, Squeff examinou fotografias, pinturas, mapas, relatórios de viagem e dezenas de notícias em jornais da época. Como detalhado em um artigo publicado em dezembro de 2021 na Revista de História da Arte e da Cultura e em outubro de 2020 no Anuario Tarea, ela percebeu como a expedição científica que trouxe o meteorito para o Rio se ligava a interesses políticos e econômicos.

“A iniciativa era parte do esforço de mapeamento do território, naquela região pouco conhecida do Império brasileiro”, diz a historiadora. “O relatório da expedição foi escrito em francês para ser depois enviado à Exposição Universal de Paris de 1889, com uma réplica do meteorito, de modo a reforçar uma imagem civilizada do país.” A réplica está até hoje no Palais de la Découverte.

Segundo Squeff, para transportar a grande rocha, os engenheiros responsáveis pela expedição tiveram de abrir estradas “e aproveitaram para listar as plantas de interesse econômico que encontravam”. O meteorito foi arrastado por cerca de 100 quilômetros, a uma média diária de 900 metros, até o município de Jacuricy, de onde foi de trem até Salvador. No Rio, aonde chegou de navio, foi exposto em praça pública e depois levado ao museu. O meteorito ficou famoso e deu origem a uma expressão comum entre os moradores da cidade: “É o Bendegó”, que se refere a algo exageradamente grande ou problemático.

Impressões 3D
As reproduções de peças do MN por meio de impressão em 3D, que já eram feitas antes do incêndio e tornaram-se indispensáveis para recompor o acervo perdido em setembro de 2018, trazem novos conceitos e preocupações, de acordo com o historiador Pedro Telles da Silva, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com base em um estudo apresentado em junho de 2021 em um congresso realizado em Hong Kong e publicado em agosto de 2022 na plataforma Tripleampersand.

“As peças em 3D representam a preservação do patrimônio artístico não mais por meio dos originais, mas da reprodução, por serem uma transposição da informação digital em um objeto físico”, diz ele. “Elas podem circular mais facilmente que os originais, mas de forma alguma os substituem. Mesmo palpáveis, elas se aproximam do patrimônio imaterial, porque podem ser feitas em qualquer lugar.”

Seu trabalho resulta de um estágio de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com apoio da FAPESP, concluído em junho de 2022, antes de ingressar como professor na UFRGS.

Projetos
1. No fim do Império tinha uma pedra: Ciência, política e território nas imagens do meteorito do Bendegó (1870-1889) (nº 19/24543-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Leticia Coelho Squeff (Unifesp); Investimento R$ 182,36.
2. Técnicas da evidência histórica: Disputas de memória, patrimônio e a construção tecnológica dos indícios históricos (nº 19/15223-1); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Thiago Lima Nicodemo (Unicamp); Bolsista Pedro Telles da Silveira; Investimento R$ 987,50.


Artigos científicos
KELLNER, A. et al. Entre o velho e o novo mundo: As relações Portugal -Brasil para a recuperação do Museu Nacional. Boletim ICOM Portugal. v. 3, n. 18, p. 41-50. jul. 2022.
SILVEIRA, P. T. da. Copy, object & matter in 3D printed historical monuments. Tripleampersand. 8 ago 2022.
SILVEIRA, P. T. da. Copies as transitional objects: Loss, grief and reckoning after the fire of Museu Nacional do Rio de Janeiro (Brazil, 2018). International Symposium on Machine Learning and Art 2021. Hong Kong, 10-14 jun. 2021.
SQUEFF, L. Ciência e violência nas imagens do transporte do meteorito do Bendegó para o Rio de Janeiro (1887-1888). Revista de História da Arte e da Cultura. v. 2, n. 2, p. 4-20. 22 dez. 2021.
SQUEFF, L. et al. Imágenes del traslado del meteorito do Bendegó de Bahía a Río de Janeiro fotografía, ciencia y exclusión (1887-1888). Anuario Tarea ‒ Anuario del Instituto de Investigaciones sobre el Patrimonio Cultural. n. 7, p. 106-24. 2 out. 2020.

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