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Pesquisa na quarentena

“Na arquitetura é importantíssimo viver o ambiente, o que não é possível na pandemia”

Solange Araujo de Carvalho terminou o doutorado sobre urbanismo de favelas e conciliou aulas on-line com o atendimento aos pais idosos

Conclusão da tese de doutorado, ensino e orientação de projetos precisaram ser feitas remotamente

Acervo pessoal

Quando começou o primeiro semestre de 2020 da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo [FAU] da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], onde dou aulas, eu ainda não tinha terminado de escrever minha tese de doutorado, na qual pesquisei projetos de urbanização em favelas. Era início de março. Eu havia passado o verão todo trabalhando nela e gostaria de ter terminado a escrita antes do início das aulas, mas não foi possível. Após uma semana de atividades presenciais, as aulas foram suspensas pela chegada da Covid-19. A UFRJ tentava entender como agiria, porque muitos alunos não tinham acesso a internet de qualidade ou mesmo a computadores. Mesmo abalada com a chegada da pandemia no país, consegui me concentrar e voltar à escrita da tese.

Desde 1994 trabalho com projetos de urbanização de favelas. É um campo ainda pouco tratado nas faculdades de arquitetura e urbanismo. É preciso perceber as favelas como algo vivo e isso deve ser levado em conta pelo arquiteto. Esse foi o objetivo da minha tese: mostrar que o projeto não é apenas o que é construído. Há um processo envolvido, que continua após a urbanização.

Estudei programas públicos de urbanização de favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo nas últimas três décadas. O processo de urbanização de uma favela envolve um conjunto de atores: setor público, moradores, tráfico de drogas, milícias, lideranças locais, vereadores, prefeitos que querem inaugurar obras e apressam o andamento do projeto. É importante envolver os moradores e agentes locais no projeto desde o princípio, caso contrário o risco é grande de que o projeto não seja adequado e não gere os impactos desejados.

Minha pesquisa de campo começou em 2017. Entre abril de 2018 e julho de 2019 estive no Laboratório Arquitetura Antropologia da Escola Nacional Superior de Arquitetura Paris-La Villete, na França, como parte do doutorado, entre idas e vindas ao Brasil para complementar o trabalho de campo.

Enquanto eu terminava de escrever a tese e a pandemia se instalava no país, meus irmãos e eu precisamos repensar como cuidaríamos de nossos pais – minha mãe tem 92 anos e meu pai 96. Combinamos de nos revezar de 15 em 15 dias morando na casa deles para fazer compras, cozinhar e outras funções de apoio. Terminei a tese no final de março e no dia seguinte fui para a casa dos meus pais. Justo nesse dia, meu pai quase teve um infarto e precisou ser internado. Fiquei com ele no hospital por alguns dias. O que nos chamou a atenção é que ninguém usava máscara: nem médicos nem enfermeiros. Era início de abril e já sabíamos que a Covid-19 tinha chegado ao Brasil. Meu pai e eu colocávamos as nossas máscaras quando chegava algum enfermeiro e eles estranhavam.

Com todo esse estresse, tive um mal-estar e fiquei febril. Precisei ficar em isolamento em casa às vésperas da minha defesa, porque não sabia se estava infectada. Os testes específicos eram raros, mas colhi amostras e nada foi detectado. Pensei em cancelar a defesa do doutorado, porque estava emocionalmente exausta e abalada. Minha namorada foi importantíssima nesse momento: ela me deu força, me chamou para ficar na casa dela. Meus pais também me incentivaram a ir adiante com a defesa.

No fim, mantive a data marcada e fiz a defesa na primeira leva de experiências acadêmicas on-line da FAU-UFRJ. A certa altura, enquanto apresentava olhando para meus slides sem ver a banca, pensei: estou falando sozinha! Eu estava no quarto, com aquele silêncio ao redor. É uma sensação muito estranha. Embora não houvesse estrutura para acesso público, meus pais conseguiram assistir. Mas defendi um trabalho de quatro anos sem o ritual de passagem: não tive possibilidade de fazer uma comemoração para marcar o momento.

Depois disso, não comecei nenhuma nova pesquisa. Como precisava cuidar dos meus pais, eu não poderia me expor, fiquei em isolamento. Tenho acompanhado de longe alguns aspectos da pandemia nas favelas, poder frequentá-las está fazendo muita, muita falta.

É impressionante o trabalho que a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] tem feito no Complexo da Maré, em parceria com as organizações locais, para promover testagem em massa, vacinação e medidas de proteção contra a Covid-19. Esse trabalho conjunto é algo que abordo na minha tese: não se pode ignorar o conhecimento local. Os moradores, que conhecem a dinâmica das ruas e dos becos, fazem uma divulgação boca a boca, complementando o trabalho dos agentes de saúde e muito mais. A organização Redes da Maré faz boletins sobre a doença e sua relação com a Maré, para minimizar os riscos. Como fazer isolamento em um lugar onde, em muitas casas, não é possível se isolar? O jeito é recorrer a redes de solidariedade: quem precisa se isolar fica em casa e os outros vão para a casa de um vizinho ou familiar. É também um desafio urbanístico fazer com que os serviços cheguem até lá.

As aulas na UFRJ só voltaram em agosto de 2020, de forma remota. Seria um semestre experimental, por isso não era obrigatório que os alunos se inscrevessem nas disciplinas. Desde então, estamos com semestres regulares. Por um lado, dar aulas on-line tem a comodidade de eliminar a questão do deslocamento. O campus da Ilha do Fundão, onde dou aula, tem acesso difícil tanto para professores quanto para alunos. Mas esse tempo em frente à tela traz muito cansaço. Também sinto uma falta enorme dos encontros de corredor, das conversas espontâneas que geram novas ideias para pesquisa, da troca com os alunos.

Muita coisa precisou ser adaptada. Como dou aula de desenho de concepção de projeto, precisei ficar craque em desenhar com o mouse, porque não tenho mesa digitalizadora. Em várias atividades é importante ir ao local de estudo, como na disciplina na qual desenvolvemos um projeto urbano em uma área da cidade. As visitas e a conversa com os moradores da região são essenciais. Temos tentado fazer isso de forma remota e agora alguns alunos começaram a se aventurar em visitas presenciais. Mas nem todo mundo consegue, e não podemos exigir isso.

Entre 2020 e o semestre passado, trabalhamos com um projeto urbano em uma área de fronteira entre o Complexo das favelas da Maré e a avenida Brasil. É uma antiga área industrial bem degradada e esvaziada, que está sendo ocupada. Na falta de visitas de campo, usamos aplicativos de mapeamento por satélite como o Google Street View. Só que ele não entra nas favelas. Com as restrições da pandemia, ficou difícil para os alunos trabalharem sem conhecer a área. Eles dependem muito de fotografias que nós, professores, temos. Precisamos ajudar o aluno a compreender aquele espaço com nosso conhecimento. Isso muda completamente a visão dos alunos: em arquitetura e urbanismo, é importantíssimo viver o ambiente.

Com a correria das aulas e a defesa on-line, minha sensação era de que a tese tinha caído em um buraco negro, ficado esquecida. Mas em setembro foi anunciado o Prêmio Capes de Tese 2021 e fui uma das ganhadoras. Isso deu um novo fôlego para esse trabalho. É muito bom voltar a pensar na pesquisa. Como prêmio, tenho direito a uma bolsa de pós-doutorado e estou planejando que caminho seguir.

No meio da pandemia, me casei. Viemos morar perto dos meus pais, que precisam de acompanhamento. Meus irmãos também ajudam. Meus pais ficaram muito tempo em casa e percebemos uma grande perda cognitiva e motora. Antes eles tinham independência, faziam compras no mercado, caminhavam na rua, iam ao cinema. Agora estão retomando as caminhadas na rua, com o acompanhamento de um fisioterapeuta.

No começo deste ano, minha cunhada pegou Covid-19 e ficou muito mal, internada. Embora esteja se recuperando, tem sequelas até hoje. Aos poucos estamos tentando retomar algumas atividades. Depois que tomei a segunda dose da vacina, voltei a nadar em uma piscina ao ar livre, no clube. Foi a primeira vez sem máscara ao lado de outras pessoas. Deu uma angústia, mas estou confiante de que vai dar tudo certo. Com o avanço da vacina acho importante retomar o que for possível, com os cuidados necessários. Até conseguimos promover um encontro da minha mãe, de máscara e em local aberto, com a irmã dela, de 91 anos, que não se viam desde o início da pandemia. Foi emocionante. Precisamos estar atentos e aproveitar as oportunidades desses encontros, porque uma das coisas que a pandemia escancarou é que podemos ir embora daqui a qualquer momento.

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