Quando a maré baixa, a baía do Araçá se transforma. As águas se recolhem e a praia de areia e cascalho se abre em um lamaçal com centenas de metros de extensão. Adiante, podem-se ver os navios que chegam e saem do porto de São Sebastião, construído ao lado, e as canoas dos pescadores próximas à saída da baía, cercada por matas, casas e paredões de pedra. Essa enseada de cerca de 500 mil metros quadrados no município de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, tem revelado uma diversidade inesperada de formas de vida, algumas delas alimentadas pela poluição dos esgotos das casas e do porto.
Os detritos despejados na baía pelo córrego Mãe Isabel parecem beneficiar alguns grupos de animais, como os poliquetas Heteromastus filiformis e Laeonereis culveri e o microcrustáceo Monokalliapseudes schubarti. Mas podem prejudicar outros, de importância ecológica ou ameaçados de extinção, como as espécies de poliquetas Eunice sebastiani e Diopatra cuprea — semelhantes a minhocas espinhudas. Desde 2012, os 170 pesquisadores coordenados pela bióloga Cecília Amaral, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), investigam os fatores físicos, químicos, geológicos e socioeconômicos que influenciam a dinâmica do Araçá. O levantamento da diversidade biológica dessa baía levou à identificação de 1.368 espécies de organismos.
A maioria faz parte do bentos, grupo de organismos que vivem em costões rochosos, manguezais e entre grãos de areia. Do total, 56 espécies foram encontradas pela primeira vez, como a Jebramella angusta, um verme transparente com tentáculos esbranquiçados, que vive sobre rochas ou em fragmentos de conchas. Com base nos trabalhos iniciados nessa baía em 1950, Cecília considera o Araçá a região costeira com uma das mais altas biodiversidades do país. Muitos dados do projeto coordenado por ela estão apresentados no livro A vida na Baía do Araçá, lançado no dia 5 de agosto em São Paulo.
Em 2014, os dados sobre a diversidade biológica da baía foram usados pelo Ministério Público Estadual para contestar, do ponto de vista ambiental, o pedido de outra ampliação do porto, considerada essencial para receber navios maiores pela Companhia Docas de São Sebastião, estatal responsável por sua administração. A proposta de ampliação, apresentada em 2011 pelo governo do estado, prevê a duplicação do porto, hoje com 400 mil metros quadrados. Em dezembro de 2013, ao avaliar o relatório de impacto ambiental feito pela Companhia Docas, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu licença prévia para o início de duas das quatro fases da obra.
Em comunicado à Pesquisa FAPESP, a Companhia Docas informou que a obtenção da Licença Ambiental Prévia, concedida pelo Ibama em dezembro de 2013, foi embasada no Estudo e Relatório de Impacto Ambiental do projeto, elaborado por uma equipe técnica multidisciplinar de aproximadamente 80 profissionais altamente qualificados, composta por biólogos, geólogos, geógrafos, oceanógrafos, economistas, engenheiros de pesca, ambientais, civis, florestais e agrônomicos.
De acordo com o comunicado, a versão mais recente do projeto possibilitaria a preservação das áreas de rocha que cercam a baía, as duas pequenas ilhas e as quatro praias que a compõem. Ainda segundo a Docas, “ao longo do processo de licenciamento, iniciado em 2008, o projeto inicial foi aprimorado justamente para contemplar a alternativa ambientalmente mais viável, considerando os fatores técnicos, de avaliação de impactos, engenharia e econômicos. A evolução do projeto possibilitou enormes ganhos ambientais, dos quais pode-se citar a drástica redução da área de ocupação da baía do Araçá, que passou de 84% para 34%”.
Segundo Antonio Carlos Marques, diretor do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (USP), esse valor refere-se apenas às duas etapas iniciais de ampliação do porto, e não a todo o projeto.
Se aprovada integralmente, a ampliação do porto implicaria a construção de uma laje de concreto apoiada sobre 17 mil estacas fincadas no fundo do mar, como alternativa ao aterro da baía, proposta considerada inicialmente.
Marques considera que a fixação das estacas comprometeria a troca de água na baía, prejudicando as comunidades de organismos e o estoque de peixes da região. Poderia haver também outros efeitos. “A perfuração do leito da baía para a instalação das estacas implicaria mover cerca de 140 mil metros cúbicos de sedimento do fundo da baía”, diz ele. “Isso liberaria substâncias contaminantes para a superfície e alteraria a constituição física atual da área.” Já, segundo a Companhia Docas, o uso de estacas “permitirá a troca de água e de nutrientes com o mangue, contribuindo com a preservação da vida no local e a fixação de fauna aquática, fundamentais para a manutenção e fortalecimento da cadeia trófica”.
Cecília aponta outro possível efeito da ampliação do porto: a laje prevista sobre a baía causaria uma grande área de sombra sobre suas águas. “Sem a luz do sol, as algas não conseguiriam fazer fotossíntese e morreriam”, diz ela. “Como consequência, a região se tornaria uma zona morta”, conclui o biólogo Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico da USP e um dos membros da equipe de Cecília, que, como ele e Marques, questiona o processo de licenciamento ambiental aprovado pelo Ibama.
O debate continua. O Ministério Público Estadual usou os argumentos dos pesquisadores que estudam a região para constestar a licença prévia concedida pelo Ibama. Em julho de 2014, a licença foi suspensa, por meio de decisão judicial provisória (liminar), até que o processo seja julgado.
Manguezal menor
A redução da área de manguezal do Araçá vem ocorrendo há pelo menos cinco décadas. “Estima-se que os manguezais da baía do Araçá tenham diminuído 70% desde a década de 1960”, diz Caiuá Mani Peres, oceanógrafo da equipe de Turra, do IO-USP. Com base em fotos históricas e imagens de satélite, Peres concluiu que a redução da área de manguezal pode ter sido efeito de uma combinação de impactos ambientais, como o acúmulo de lixo e óleo trazidos pelas águas que banham a baía e alterações do sedimento do Araçá decorrentes da construção do emissário submarino e de outras obras de ampliação do porto, inaugurado em 1955.
“Muita coisa mudou nos últimos tempos”, testemunha Teotônio Nobre de Jesus, pescador nascido em São Sebastião. Aos 69 anos, a pele rachada pelo sol, seu Teotônio, como é chamado, passa o dia agachado na praia, remexendo a mistura de lama e areia com as mãos à procura de berbigões, um molusco com conchas cobertas de nervuras brancas, pequenas estrias pardas e negras, cientificamente chamado de Anomalocardia brasiliana. “Olha só o tanto que já peguei hoje”, ele diz, na tarde do dia 20 de julho, mostrando um balde com dezenas de berbigões apanhados desde a manhã. Em quatro horas, ele coleta cerca de 30 quilogramas. Uma parte vai para sua família e outra é vendida aos restaurantes locais que os preparam refogados. Em seguida ele se levanta, limpa o suor da testa com as costas da mão e aponta para uma das ilhas, a Ilha de Pernambuco, formada por duas das três espécies de mangue encontradas no Araçá. “Vê lá aquele monte de árvore? É o que sobrou do mangue. Antes tinha muito mais, tudo ligado um ao outro.”
Apesar das mudanças, o Araçá abriga um dos últimos remanescentes de manguezais do litoral norte de São Paulo, com um emaranhado de raízes expostas que mantêm as árvores altas em pé. Ao todo, a baía mantém três espécies de árvores típicas de manguezais: o mangue-preto, o mangue-branco e o mangue-vermelho.
Os pesquisadores têm procurado mostrar as conclusões de seus estudos ao moradores da região e conversar com eles — o livro lançado em agosto foi mais uma forma de disseminar informações e valorizar a riqueza biológica da baía. “Vamos às escolas, passamos nas casas e falamos com os pescadores na praia para que compareçam às reuniões”, comenta Turra. Seu Teotônio disse que conhece os pesquisadores e já ouviu falar das reuniões, mas ainda não se motivou a ir.
Projeto
Biodiversidade e funcionamento de um ecossistema costeiro subtropical: subsídios para gestão integrada (nº 2011/50317-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Temático; Pesquisadora responsável Antonia Cecília Zagagnini Amaral (IB-Unicamp); Investimento R$ 2.986.800,0 (FAPESP).
Artigos científicos
VIEIRA, L. M., MIGOTTO, A. E. & WINSTON, J. E. Ctenostomatous Bryozoa from São Paulo, Brazil, with descriptions of twelve new species. Zootaxa. v. 3889, n. 4, p. 485-524. dez. 2014.
AMARAL, A. C. Z. et al. Araçá: biodiversidade, impactos e ameaças. Biota Neotropica. v. 10, n. 1, p. 219-64. mar. 2010.
Livro
AMARAL, A. C. Z. et al. A vida na Baía do Araçá – Diversidade e importância. São Paulo: Lume, 2015.