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PESQUISA NA QUARENTENA

“Na pandemia foi possível manter a produção porque demos continuidade a um repertório grande de pesquisa”

O médico Armenio Aguiar dos Santos buscou maneiras remotas de suprir a falta de aulas presenciais, mantém o andamento de projetos e participa de iniciativas de combate à Covid-19

Luiz Mendes Nem o coronavírus manteve o pesquisador por muito tempo longe do laboratórioLuiz Mendes

Sou professor no Departamento de Fisiologia e Farmacologia na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará [UFC], onde temos um Núcleo de Biomedicina. Quando começaram as restrições causadas pela pandemia, em março de 2020, tudo parou. Fiquei em casa. Mas, por volta de julho, eu e minha esposa estávamos ficando loucos e surgiu a possibilidade de ela voltar a trabalhar presencialmente. Então, decidi também retornar à universidade.

Comecei a refletir sobre como seria quando do retorno das atividades, a assistir a lives e participar de encontros virtuais sobre treinamento de professores com relação ao ensino a distância, uma experiência que até então eu não tinha. O cenário da pandemia prometia se prolongar e era incerto o desenvolvimento de uma vacina. Logo entendi necessitar de uma maneira de atuar naquela realidade nova. Com os colegas da biomedicina que já estavam frequentando o departamento, comecei a conversar sobre como fazer essas atividades, afinal retomadas em setembro, de forma virtual.

Logo surgiu a ideia das aulas ditas assíncronas, em que o professor faz uma gravação e depois se encontra com os alunos, via vídeo, para eventualmente discutir. Entendi que isso era inadequado e desde cedo fiz a opção pela aula síncrona, para poder ter interação.

Mas e a aula prática? É um dos enormes desafios e, no meu ponto de vista, nada substitui a experimentação. Juntamente com um colega, Pedro Magalhães, que atua comigo na Seara da Ciência, o museu de divulgação científica da UFC, decidimos fazer dois filmes. Meu filho trabalha com produção de vídeos e armamos uma situação no laboratório onde filmamos uma aula prática de contratilidade intestinal e outra de esvaziamento gástrico. Mas combinamos um artifício para tais encontros: começamos nós mesmos explicando os testes de função motora do trato gastrointestinal. Em seguida, ligamos o vídeo e os alunos assistem à parte sobre metodologia e resultado. Após os resultados, paramos o filme. Isso dá margem a discutirmos os mecanismos, ou por que houve um retardo ou uma aceleração do esvaziamento. Dá margem a interações. Já foram dois semestres utilizando esse recurso, inclusive na pós-graduação, e os estudantes têm achado útil. Foi uma inovação que fizemos.

Outra novidade foi usarmos plataformas digitais para as avaliações. No módulo que coordeno, temos professores de anatomia e histologia que, pela primeira vez, puderam incluir lâminas de microscópio ou pranchas de anatomia nas questões, solicitando que os alunos identificassem as estruturas. Passada a pandemia, será muito difícil voltarmos à fórmula de fotocópia e prova presencial.

A unidade da biomedicina surgiu em 2003 com os fundos setoriais, que permitiram conseguir recursos para a criação de um espaço de pesquisa multidisciplinar abrigando pesquisadores dos quatro departamentos que à época tinham programas de pós-graduação: Fisiologia e Farmacologia, Patologia e Medicina Legal, Medicina Clínica e Cirurgia. Passamos a habitar o mesmo espaço, o que tem sido uma força motriz muito grande. No laboratório vizinho ao meu, Pedro Magalhães trabalha com motilidade gastrointestinal in vitro. Miguel Ângelo Souza, no laboratório da frente, e Marcellus de Souza, no de cima, ambos estudam motilidade gastrointestinal em seres humanos. Eu trabalho com modelos animais vivos. Essa proximidade nos permite discutir e trabalhar em pontos de convergência, ampliando bastante o leque das nossas pesquisas.

Graças ao programa Ciência sem Fronteiras, instituído em 2011, estabelecemos por meio de meu ex-orientador, o gastroenterologista Ricardo Brandt de Oliveira, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, um contato mais formal com o colega argentino Daniel Sifrim, docente do Queen Mary University of London. É um dos maiores esofagólogos do mundo e se preocupa com uma condição extremamente frequente na população, a doença do refluxo gastroesofágico. Cerca de 60% das pessoas com essa doença têm todas as queixas de azia, mas os exames não mostram erosão no esôfago. Por isso, o medicamento que bloqueia a secreção de ácido é ineficaz nesses pacientes. Na Inglaterra se usa um produto à base de algas marinhas, e o Sifrim nos propôs testar algo da flora brasileira. No Ceará, a aroeira-do-sertão é muito usada na medicina popular contra úlcera gástrica. Enviamos um aluno para Londres, para aprender a trabalhar com uma técnica de avaliação da permeabilidade do esôfago, levando amostras dessa planta. Fez todos os experimentos e, infelizmente, não funcionou para esse modelo experimental.

Um ex-aluno do Marcellus, Jand Venes Medeiros, havia se estabelecido no campus de Parnaíba da Universidade Federal do Piauí, e propôs testarmos uma goma do látex do cajueiro produzida por colegas químicos. Com financiamento da Funcap [Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico], adquirimos a mesma câmara de Üssing que nosso aluno usou na Europa e passamos a estudar pela primeira vez, no Brasil, a permeabilidade esofagiana. Ficou evidente a goma do cajueiro reforçar a mucosa do esôfago humano contra a agressão ácida.

A partir desses achados, meu vizinho de laboratório Pedro Magalhães, que estuda a contratilidade in vitro, desenvolveu um modelo de perfusão do esôfago e replicou a lesão não erosiva no esôfago. Está obtendo evidências experimentais de que não é somente o ácido que altera a contratilidade do esôfago, mas também sais biliares. Com um aparelho cedido pelo Sifrim e com meu colega Miguel Sousa, pensamos em monitorar o nível de sais biliares no esôfago de pacientes ao longo de 24 horas, mas a pesquisa foi interrompida pela pandemia.

Esses projetos são possíveis porque temos uma situação que propicia os encontros. Na pandemia foi possível manter a produção porque demos continuidade a um repertório grande de pesquisa, que vínhamos desenvolvendo. A maior dificuldade tem sido a crise no financiamento da pesquisa no Brasil, que torna difícil abrir novas frentes. Não tenho tido coragem de assumir a orientação de novos alunos da pós-graduação. Que meios terei para prover? É uma perspectiva muito ruim, que compartilho com alguns dos meus colegas.

A Covid-19 trouxe outros impactos na minha atividade. Aldo Ângelo Moreira Lima, do nosso grupo, foi convidado a participar de uma rede de pesquisadores do MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações], chamada Rede Vírus. Começamos a fazer algumas lives com o grupo da biomedicina sobre o que fazer diante da pandemia. Nesse contexto, o virologista Eurico de Arruda Neto, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, lembrou de um grupo de pesquisadores da Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] Pernambuco que desenvolvera, durante a epidemia de zika, uma forma rápida de detecção da infecção pelo vírus, chamada Lamp. Por espectrofotometria – apenas pela mudança de cor de um líquido – era possível fazer um diagnóstico rápido da infecção. Ele sugeriu pensarmos algo assim para o Sars-CoV-2. Um biólogo molecular do nosso núcleo, Alexandre Havt Bindá, começou a trabalhar nisso e agora estamos fazendo testes com espécimes obtidos de pacientes. A técnica dispensa o RT-PCR, que requer equipamento mais sofisticado e é demorado. Para isso, contamos com o suporte da Funcap.

Em 2017, a Funcap criou os cientistas-chefe – ter pesquisadores atuantes nas secretarias de Saúde, de Educação, de Segurança e de Planejamento. Na Secretaria de Saúde (Sesa) temos um professor vinculado à biomedicina, José Xavier Neto, responsável por lá estabelecer a inovação pública. Quando chegou a epidemia, foi criada uma linha de financiamento para pesquisas na área de saúde com recursos da Secretaria de Saúde transferidos para a Funcap e coube a mim compor a assessoria desse comitê que julga propostas de inovação pública. Um dos projetos mais interessantes apoiado pela Sesa-Funcap foi desenvolvido por outro colega da biomedicina, o pneumologista Marcelo Alcântara. Ele percebeu que haveria dificuldade no acesso a respiradores e teve a ideia de um elmo de ventilação não invasiva, que joga o ar sob pressão positiva para dentro do pulmão. Foi totalmente desenvolvido aqui, patenteado e já está em utilização. Casualmente, um ex-aluno de iniciação científica do meu laboratório, hoje médico e recrutado às pressas para trabalhar em Manaus, levou um elmo para lá. As notícias dessa alternativa para evitar a utilização do respirador são muito boas.

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