reprodução do quadro Tudo te é falso e inútil iv, de iberê camargo. 1992Descobrir precocemente alterações no cérebro que podem indicar o início do mal de Alzheimer, a principal causa de demência entre idosos, é um dos desafios da neurologia do envelhecimento. Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) acreditam ter identificado a primeira região cere-bral a apresentar uma das lesões mais características da doença, os chamados emaranhados neurofibrilares. O Alzheimer começa no tronco cerebral, mais especificamente numa área denominada núcleo dorsal da rafe, e não no córtex, que é o centro do processamento de informações e armazenamento da memória, como tradicionalmente a medicina postula. Essa idéia é defendida pelos cientistas brasileiros, em parceria com colegas de três universidades alemãs, num artigo a ser publicado nos próximos dias na revista científica Neuropathology and Applied Neurobiology.
A conclusão do trabalho se baseia na autópsia do cérebro de 118 pessoas, que tinham idade média de 75 anos no momento de sua morte. Os pesquisadores constataram a existência de lesões no núcleo dorsal da rafe em oito idosos que não apresentavam emaranhados em nenhuma outra parte do cérebro e em todos os 80 indivíduos que já tinham ao menos um emaranhado no córtex transentorrinal, a região classicamente apontada como a primeira a ser afetada pelo Alzheimer. Os 88 indivíduos que tinham marcas anatômicas no cérebro associadas a esse tipo de demência apresentavam graus variados de manifestação clínica da doença e alguns podiam ser até assintomáticos. O trabalho dos brasileiros e europeus contou com múltiplas fontes de financiamento: dinheiro de instituições alemãs, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, de São Paulo, e da FAPESP, que financia uma linha de estudos do neurologista Ricardo Nitrini, da FMUSP, sobre a incidência de demências na população brasileira.
Responsável por conectar o córtex à medula espinhal, o tronco, a rigor, não faz parte do cérebro, mas sim do encéfalo, que abrange o cérebro, o cerebelo e o tronco. De forma simplista, recorrendo à metonímia, figura de linguagem em que se pode usar a parte para designar o todo, os leigos utilizam a palavra cérebro quase como sinônimo de encéfalo, embora tecnicamente ela não o seja. Definições técnicas à parte, o tronco cerebral é uma importante estrutura do sistema nervoso: controla funções involuntárias cruciais para a sobrevivência, como a respiração, os movimentos cardíacos, a pressão sangüínea, o sono e até os sonhos.
Se confirmado por novos estudos, o achado de que a doença de Alzheimer se inicia no tronco cerebral, a menor das três grandes partes do encéfalo, e daí se espalha para áreas interconectadas do córtex, é uma informação importante na busca de terapias para frear o desenvolvimento da doença em seu estágio inicial. O dado pode levar essa região do sistema nervoso à condição de alvo preferencial da ação de novas drogas e terapias contra a doença. “Precisamos saber onde as lesões iniciais aparecem para tentarmos descobrir formas eficientes de retardar o desenvolvimento do Alzheimer ainda nos seus primórdios”, diz a patologista Lea Grinberg, coordenadora do banco de encéfalos humanos da FMUSP, fonte das amostras de cérebros para o estudo e primeira autora do artigo. “Nosso estudo confirma que o tronco cerebral é obviamente a primeira região vulnerável ao Alzheimer e ponto de disseminação dessa doença devastadora”, afirma Helmut Heinsen, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de Würzburg, um dos pesquisadores alemães que dividem a autoria do trabalho com os brasileiros. “Esperamos que esses resultados obtidos com modelos humanos dêem um novo ímpeto ao desenvolvimento de estratégias de prevenção e tratamento do Alzheimer.” Injeções de células-tronco, transplantes de células cerebrais reprogramadas, imunoterapia guiada por imagens – todas essas técnicas ainda em gestação talvez um dia possam ser testadas no núcleo dorsal da rafe como candidatas a terapias.
Os emaranhados neurofibrilares aparecem devido a uma alteração química na estrutura da proteína tau, responsável pela formação de microtúbulos que transportam nutrientes e informações dos prolongamentos dos neurônios ao seu corpo celular e vice-versa. Modificada, a proteína desestabiliza os microtúbulos, levando ao colapso desse sistema e à morte de neurônios. Ao lado do surgimento de placas extracelulares decorrentes do acúmulo anormal da proteína beta-amiloide, um segundo tipo de lesão também intimamente associada à ocorrência do Alzheimer, a presença dos emaranhados é uma marca registrada no cérebro da progressão da doença. Não há consenso entre os especialistas sobre qual das duas alterações anatômicas, os emaranhados ou as placas, é mais importante para o desenvolvimento dessa forma de demência. “Mas há evidências de que a progressão dos emaranhados é mais crucial do que a das placas da proteína beta-amiloide para determinar a gravidade clínica do Alzheimer”, afirma Lea.
Região esquecida
Não é nova a constatação de que o núcleo dorsal da rafe apresenta emaranhados neurofibrilares no Alzheimer. No entanto, a ciência acreditava que as lesões nesse ponto do tronco cerebral surgiam depois, e não antes, de setores do córtex terem sido acometidos pelas alterações típicas da doença. Na verdade, não se dava muita importância a essa parte do cérebro nos exames patológicos que buscavam alterações anatômicas associadas a demências. “Até esse novo trabalho dos brasileiros e alemães ninguém que trabalhava com Alzheimer olhava para o tronco cerebral”, comenta o bioquímico Sérgio Teixeira Ferreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estudioso da doença. “Ter jogado luz sobre essa região é o grande mérito do estudo.”
No chamado sistema Braak e Braak, que classifica em seis estágios as lesões do Alzheimer em função da área cerebral tomada pelos emaranhados, todo o foco está sobre áreas do córtex, intimamente ligado à questão da memória. Alterações de grau 1, o mais baixo da escala, são aquelas que se restringem ao córtex transentorrinal, o ponto cerebral usualmente descrito como o local onde tem início o Alzheimer. Por esse sistema, não se leva em conta a existência de lesão no tronco cerebral – nem mesmo no núcleo dorsal da rafe, que dista mais ou menos três centímetros do córtex transentorrinal – para atribuir o eventual grau de extensão do Alzheimer. “Propomos incluir as lesões nessa região do tronco cerebral como um estágio neuropatológico anterior ao atual estágio 1 do sistema Braak e Braak”, escrevem os autores do artigo científico na Neuropathology and Applied Neurobiology. “Realmente o achado [do artigo] é uma novidade em seu campo e está muito bem fundamentado”, comenta o neurocientista Iván Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), uma das autoridades mundiais no estudo dos mecanismos de formação e extinção da memória. “Os autores do estudo estão de parabéns.”
Doença neurodegenerativa de origem ainda misteriosa e sem cura, cujas lesões cerebrais levam à morte progressiva de neurônios e à perda crescente da memória e posteriormente de outras funções cognitivas, até o ponto de comprometer a execução de tarefas triviais, como atravessar a rua, reconhecer um parente ou escovar os dentes, o Alzheimer afeta preferencialmente pessoas com mais de 60 anos. O envelhecimento da população mundial – tendência também verificada no Brasil, onde a quantidade de idosos, hoje na casa dos 19 milhões de pessoas, deverá dobrar nas próximas duas décadas – fez com que a doença seja atualmente vista como uma das prioridades da pesquisa médica. É difícil a luta contra o Alzheimer, visto que sua progressão pode ser silenciosa. Do momento em que surgem as lesões iniciais no cérebro até o aparecimento dos primeiros sintomas clínicos de perda de cognição, mais de uma década pode ter transcorrido. Só há uma forma de diagnosticar sem erro a doença: fazendo uma autópsia do cérebro para procurar as alterações anatômicas típicas da doença. Clinicamente, antes da realização da autópsia, é impossível ter 100% de certeza de que um idoso sofre de Alzheimer, sobretudo se ele estiver no início do processo de perda de cognição. Afinal, nem todos os que se esquecem das coisas, sejam idosos ou não, estão, necessariamente, com Alzheimer ou algum outro tipo de demência.
Buscar a cura da doença de Alzheimer é uma ambição mais do que válida para a pesquisa médica. Mas, no curto prazo, talvez seja mais realista pensar em formas de retardar a progressão das lesões cerebrais que levam ao Alzheimer e de postergar o máximo possível o aparecimento dos problemas cognitivos que, aos poucos, reduzem a qualidade de vida dos pacientes. Dessa forma, a medicina reduziria o período de morbidade da doença. “Se conseguirmos atrasar em dez anos o aparecimento dos sintomas clínicos da doença de Alzheimer, isso equivalerá a praticamente não ter a doença para muitos idosos”, explica o neurologista Ricardo Nitrini, da FMUSP, outro autor do estudo.
Único no país, o banco de encéfalos humanos da FMUSP começou a ser montado em 2004, basicamente com recursos da própria Faculdade de Medicina, do Ministério da Saúde e do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Hoje seu acervo conta com cerca de 2 mil amostras de tecido nervoso de pessoas que tinham ao menos 50 anos quando morreram de causa natural e, por isso, foram autopsiadas pelo Serviço de Verificação de Óbito (SVO) da cidade de São Paulo, ligado à FMUSP. Anualmente, o SVO realiza cerca de 13 mil autópsias. São usados em estudos científicos apenas os cérebros que os familiares dos mortos concordam em doar para a pesquisa. Além de autorizar a cessão dos encéfalos, os parentes têm que consentir em responder a questões destinadas a aferir se o familiar falecido apresentava alguma perda de cognição ou manifestação clínica que pudesse ser associada a algum quadro de demência. “A boa receptividade das pessoas aos nossos estudos foi surpreendente”, comenta Lea, que passa a maior parte do ano na Alemanha, onde faz pós-doutorado na Universidade de Würzburg, com bolsa da Fundação Humboldt. De posse dos dados passados pelos familiares, os pesquisadores confrontam o diagnóstico clínico do doador com os resultados de exames histopatológicos realizados em seu cérebro. Assim fecham um veredicto final sobre a condição do doador: se era normal ou se tinha alguma forma de demência, apenas com sintomas clínicos ou também com lesões anatômicas.
À medida que foi crescendo e se estruturando, o acervo de encéfalos, que faz parte do Projeto Envelhecimento Cerebral da FMUSP, passou a fornecer amostras de tecido nervoso para vários grupos de pesquisa, da própria universidade e de outras instituições. Um dos primeiros trabalhos feitos com esse material é justamente o que pode ter descoberto onde as lesões do Alzheimer surgem no cérebro humano. Mas há outros estudos em curso, alguns já com resultados palpáveis, outros ainda em estágio inicial. O DNA de cérebros foi extraído e enviado ao Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, que vai tentar encontrar genes ligados à ocorrência de demências. Helena Brentani, do Hospital do Câncer A.C.Camargo, estuda a expressão da molécula RNA nos cérebros de pacientes com Alzheimer. Numa outra linha de pesquisa, visando avaliar as alterações cerebrais decorrentes do envelhecimento, a equipe de Roberto Lent, da UFRJ, realizou um trabalho interessante com amostras fornecidas pela USP. “O banco de cérebros é exemplar e muito bem organizado”, diz Lent. Com auxílio de uma metodologia própria, os pesquisadores cariocas estimaram a quantidade de neurônios e de outros tipos de células em cérebros de indivíduos saudáveis do ponto de vista cognitivo. Alguns resultados são surpreendentes.
Demência mais comum
Com uma rica amostra de tecidos nervosos à sua disposição, os próprios pesquisadores do Projeto Envelhecimento Cerebral estão tendo a chance de confirmar, agora com o auxílio de exames modernos e precisos, informações epidemiológicas sobre a incidência de demências na população brasileira. Por terem um acervo muito grande de cérebros, representando tanto indivíduos que eram sadios em termos de doenças cognitivas quanto pessoas que tinham variados tipos de problemas neurológicos, eles podem desenhar estudos com as mais diversas finalidades. Dados preliminares desses trabalhos confirmam que o Alzheimer é realmente a doença cognitiva mais comum entre os idosos, respondendo por cerca de 60% dos casos, índice semelhante ao normalmente apregoado pelos estudos clínicos. Em seguida vieram as demências vasculares (25%), a doença do corpúsculo de Lewy (10%) e outras desordens cognitivas. “Essas outras demências são em geral subdiagnosticadas do ponto de vista clínico”, explica Lea.
Hipertensão e diabetes são doenças associadas fundamentalmente aos problemas do coração. Mas também deveriam ser mais freqüentemente vistas como fatores de risco para demência. Numa amostra de cérebros com algum comprometimento cognitivo, o grupo da USP constatou a existência de alterações microvasculares em metade deles – um índice alto. “Essas alterações têm impacto direto na piora da cognição, tendo a pessoa Alzheimer ou não”, comenta Nitrini. Outro dado intrigante que surge desses estudos: cerca de 40 pessoas com mais de 80 anos que, do ponto de vista neuropatológico, apresentavam lesões típicas do Alzheimer no cérebro não tinham, segundo o relato de seus familiares, nenhuma manifestação clínica de demência. Isso pode indicar que esses indivíduos tinham algo que neutralizava os efeitos deletérios das lesões, talvez algum fator de proteção, com provável implicação no tratamento da doença. “Estamos tentando entender por que essas pessoas não ficaram doentes”, explica Wilson Jacob-Filho, professor de geriatria da FMUSP e gerente-geral do Laboratório de Fisiopatologia no Envelhecimento. “Isso pode ter ocorrido devido a alguma característica genética ou a determinantes comportamentais e ambientais no transcorrer de sua vida.” Como se vê, mistérios a ser desvendados em torno do Alzheimer não faltam.
A geografia das células nervosas
Três de cada quatro neurônios humanos estão no cerebelo, e não no córtex, diz trabalho de brasileiros
Entre os animais, o cérebro humano é o mais complexo porque tem mais neurônios no córtex, certo? Os neurocientistas Suzana Herculano Houzel e Roberto Lent, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que acabam de concluir a contagem de neurônios em amostras de cérebros humanos cedidos pelo banco de encéfalos da Universidade de São Paulo (USP), não concordam com esse dogma da ciência. Para eles, que devem publicar em breve um estudo sobre o tema, o grande diferencial do Homo sapiens está na quantidade de células nervosas do cerebelo. Responsável por manter o equilíbrio e a coordenação motora, essa parte do cérebro representa pouco mais de 10% do tamanho do encéfalo, mas, segundo os cálculos dos pesquisadores, abriga aproximadamente 75% de todos os neurônios humanos. “O córtex não tem mais do que 20% dos nossos neurônios”, diz Lent. No entanto, seu peso equivale a 70% do encéfalo. “Sob essa ótica, o cerebelo, e não o córtex, representaria o pináculo da evolução humana.” O resto dos neurônios humanos está distribuído por estruturas menores, como o bulbo.
Para os neurocientistas, a descoberta não foi totalmente inesperada. Ao contrário. A dupla da UFRJ, que desenvolveu um método próprio de contar neurônios, publicou trabalhos científicos nos últimos três anos mostrando que em 13 espécies distintas de mamíferos (seis roedores, seis primatas e um tupaia) a quantidade de neurônios no cerebelo aumenta em função do tamanho do cérebro, enquanto o número de células nervosas do córtex varia, proporcionalmente, bem menos em relação à dimensão do encéfalo. Nos roedores o córtex tinha em média apenas 18% do total de neurônios e o grosso das células nervosas estava no cerebelo. Nos primatas não-humanos a porcentagem de neurônios presentes no córtex variou entre 19% (galago) e 42% (macaco-de-cheiro) do total, índices sempre menores do que os encontrados no cerebelo.
De acordo com o trabalho dos pesquisadores, a quantidade total de neurônios no cérebro humano não é muito diferente do que se preconiza normalmente. Eles contabilizaram cerca de 90 bilhões de células nervosas. O número clássico diz que o encéfalo de nossa espécie abriga cerca de 100 bilhões de neurônios. A pequena diferença talvez se deva à particularidade de eles terem contado os neurônios de indivíduos idosos, que podem ter perdido uma parte de suas células nervosas com o passar do tempo.Se a quantidade total de neurônios se manteve dentro do esperado, o mesmo não se pode dizer do número de células gliais, que servem de suporte e nutrição aos neurônios: a equipe da UFRJ encontrou cerca de 90 bilhões de células gliais, mais ou menos uma para cada neurônio. “Os livros científicos dizem que há dez células gliais para cada neurônio”, comenta Lent. “Mas achamos uma quantidade muito menor.”
O Projeto
Diagnóstico nosológico de demência em população brasileira (06/55318-1); Modalidade Linha Regular de Auxílio à Pesquisa; Coordenador Ricardo Nitrini – FMUSP; Investimento R$ 125.595,45 (FAPESP)
Artigo científico
GRINBERG, L.T. et al. The dorsal raphe nucleus shows phospho-tau neurofibrillary changes before the transentorhinal region in AD. A precocious onset? Neuropathology and Applied Neurobiology, a ser publicado on-line.