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José Fernando Perez

No cenário aberto, o desafio é escolher bem os próximos passos

Dominado por um entusiasmo irreprimível que o sucesso do projeto daXylella fastidiosa só fez expandir, o físico José Fernando Perez, 55 anos, diretor científico da FAPESP, olha para o futuro com algumas certezas, muitas esperanças e umas tantas indagações. Uma das certezas: ele está convencido de que há um antes e um depois no panorama da pesquisacientífica no país, demarcados exatamente pela êxito do trabalho com a X. fastidiosa, que constitui, em sua avaliação, “uma afirmação da ciência brasileira em escala”. Entre suas esperanças, inclui-se a de o Brasil apresentar, num horizonte de apenas cinco anos, um quadro novo no campo da ciência e da tecnologia, com o sistema acadêmico dando contribuições ainda de maior impacto ao desenvolvimento do país, e o sistema de inovação tecnológica revelando-se vigoroso no ambiente empresarial.

Mas ele mesmo ressalva que há algumas pré-condições macroeconômicas para que isso aconteça, às quais fez referência na entrevista concedida a Pesquisa FAPESP. Finalmente, entre as indagações que se impõem ao raciocínio fervilhante de Perez estão: dentre tantas possibilidades, qual o melhor caminho a tomar agora para o desenvolvimento da pesquisa genômica no Brasil? e qual o melhor modelo para institucionalizar a rede ONSA, sem cair em mecanismos tradicionalmente pouco eficazes para viabilizar uma interação entre a FAPESP, instituições de pesquisa paulista, eventuais parceiros e os próprios pesquisadores?

O que significou para o senhor, profissionalmente sempre ligado à academia, ver-se num grande palco, aplaudido por mais de mil pessoas de pé?
Acho que aquele aplauso destinava-se ao sucesso de uma iniciativa. Não era dirigido à minha pessoa, mas à FAPESP e a todas as instâncias da instituição que estiveram nesse projeto de forma exemplar. Eu disse ali, mas gostaria de ter enfatizado mais: o sucesso da iniciativa deve-se ao Conselho Superior da Fundação, que aceitou a proposta de um projeto de natureza singular, que envolvia uma ousadia enorme, riscos e a exigência de um volume de recursos sem precedentes na história da ciência brasileira; o sucesso deve-se à diretoria e às outras instâncias da FAPESP que também assumiram o risco. Outro ponto muito importante para o sucesso foi o gerenciamento do projeto pela Internet, desde quando as solicitações chegavam por e-mail e…

…E o que acontecia, então?
…Chegavam as solicitações por e-mail, e tudo ia sendo pilotado na diretoria científica pelo (assessor de informática) Carlos Pian, que teve um desempenho notável, uma dedicação e um entusiasmo impressionantes pelo projeto. Todo o processamento seguia em ritmo acelerado, até mesmo para os padrões normalmente ágeis da Fapesp, com destaque para a importação sob o controle da (gerente) Rosely Prado, para as contratações tocadas pelo pessoal da diretoria administrativa, sob o comando do professor (Joaquim José de Camargo) Engler, e para o excelente trabalho de divulgação feito pelo pessoal da Comunicação, sob a coordenação do diretor-presidente Francisco Romeu Landi.

A importação era principalmente dos seqüenciadores.
Sim. E devo relatar que, quando fizemos a primeira reunião do grupo de participantes do projeto e informei da decisão da Fapesp de processar a importação, porque não podíamos correr o risco de sofrer os percalços que normalmente se sofre quando ela é feita por outros órgãos, houve aplausos. E o pessoal da importação esteve à altura da expectativa. Depois veio a decisão de investir mais fundo no genoma, de transformar o projeto em programa, e em todo esse processo o apoio da instituição foi determinante. Portanto, a sensação que tive na hora dos aplausos foi de que ali estava um reconhecimento de clara dimensão institucional. Eu representava a FAPESP, não formalmente, digamos, mas em sua face de interlocução com os cientistas, que é uma das responsabilidades da diretoria científica.

Mas há sempre uma gratificação pessoal.
Veja, eu acho que é um privilégio, realmente uma honra muito grande, estar aqui na FAPESP durante todo esse tempo, participar desse projeto desde a sua concepção e chegar a esse ponto culminante, do projeto terminado, com sucesso, dentro do prazo, dentro do orçamento. Há, então, uma sensação de realização muito grande e eu obviamente fico muito honrado em ter tido esse privilégio.

Numa visão sem ufanismo, como o sucesso desse projeto situa o Brasil no contexto internacional da ciência?
A visibilidade internacional do projeto Xylella e do Programa Genoma começa a ficar muito grande. O fato de a X. fastidiosa ser o primeiro patógeno vegetal que se iria seqüenciar já havia sido ressaltado pela Nature, na notícia que publicou quando começamos. Depois, em meados de 1998, a revista publicou o trabalho escrito pelo Andrew Simpson e por mim, a convite da própria Nature, em que descrevemos a arquitetura inovadora do projeto. Isso também mostra o interesse que suscitaram o projeto, a estratégia traçada para executá-lo e o fato de ele estar sendo feito fora do eixo tradicional, digamos, das grandes potências científicas e tecnológicas.

Mas e a repercussão internacional depois da conclusão do projeto?
Em janeiro, quando a conclusão foi anunciada, em San Diego, Califórnia (no I Encontro de Genomas Microbianos Relevantes para a Agricultura), a repercussão foi muito grande. Logo em seguida, a Sociedade Americana de Fitopatologia convidou o doutor Simpson para falar da Xylella, e o professor (Fernando) Reinach, do projeto Xanthomonas, em sessões plenárias de seu congresso, em agosto próximo. E a presença dos dois não esgota a participação brasileira no evento, porque haverá outras contribuições derivadas de estudos que estão sendo realizados no projeto funcional da X. fastidiosa. Além disso, eu fui convidado para um encontro de genômica da Comunidade Européia, na França. Mas há outros desdobramentos.

Quais, por exemplo?
Já fomos consultados por uma empresa norte-americana sobre a possibilidade de fazermos, sob encomenda, o seqüenciamento de uma variante da própria Xylella. Também um grupo australiano, que está seqüenciando a Clavibacter Xyli, uma bactéria que ataca a cana-de-açúcar e que já era uma hipótese para um futuro projeto nosso, nos propôs uma parceria, considerando que assim o projeto será concluído em velocidade muito maior. Refiro-me apenas aos desdobramentos do Projeto Xylella. Acredito que a publicação, em breve, do trabalho da Xylella deve aumentar muito toda essa repercussão.

O interesse despertado pela Xylella na área política pode servir de alavanca a um maior investimento nacional em genômica e na pesquisa científica em geral?
Estou convencido de que temos um antes e um depois desse projeto, também nesse aspecto. Faço uso das palavras do professor Paulo Arruda, um pesquisador de primeiríssima qualidade que, em seu depoimento no vídeo sobre o Projeto Xylella, disse que sua vida científica tem um antes e um depois do projeto. Penso que temos a mesma demarcação do ponto de vista da política científica, porque esse projeto propiciou uma afirmação da ciência brasileira em escala, e isso pode ser até mais importante do que se tivéssemos ganhado o Prêmio Nobel. Porque há a dimensão coletiva da realização, que está ausente em premiações. Essa dimensão tem que ser sublinhada, porque ela mostra que temos um potencial muito grande para dar saltos em nossa competência. E o fato de o governo do Estado encampar essa realização lhe confere uma dimensão maior, uma dimensão política.

A Xylella então repõe a ciência na pauta da política nacional?
Exatamente. E acreditamos que a ciência entrar na pauta da política é o primeiro passo para ela ser incorporada numa visão estratégica de país. Então, realmente é importante a dimensão que o projeto adquiriu, sua divulgação, o passo acertado do governo, feliz passo, ao lhe atribuir uma grande dimensão pública.

Concluído o projeto, alguns estados se mobilizaram para estabelecer parceria com São Paulo em pesquisa genômica, não é mesmo?
Sim, o que mostra a percepção de que há uma forma nova de fazer ciência, cooperativa e, ao mesmo tempo, competitiva internacionalmente. Ciência que produz grande visibilidade científica, que remete a problemas nacionais e cujo papel estratégico, portanto, a classe política começa a perceber. Mas há o perigo de se concluir que, daqui por diante, deve-se fazer só projetos dessa natureza, o que seria um erro.

É preciso todo tipo de projeto para consolidar a base científica no país…
Exatamente. Aliás, o projeto da Xylella só foi possível, desde sua concepção, graças à base de recursos humanos em ciência que vem sendo construída neste país ao longo dos últimos 35 anos. E é importante perceber que o projeto chegou ao fim apresentando entre seus principais parâmetros de sucesso exatamente a ampliação dessa base de competência – gente formada e treinada na fronteira do conhecimento e novas lideranças científicas.

Estão previstos convênios com outras fundações estaduais de amparo à pesquisa para treinar pessoal de outros estados em genômica?
Já temos convênios assinados com Pernambuco e Alagoas para o projeto da cana. Novos convênios podem ser estabelecidos com outras Faps, e até com órgãos federais, no sentido de articular um grande esforçonacional na área de genômica, principalmente na parte de informática. A competência para a cooperação tem que ser desenvolvida, sem o que não conseguiremos processar eficientemente o enorme volume de dados que começa a ser gerado pelos projetos genoma.

A impressão, para um leigo, é de que o século XXI será orientado pela informática e pela genética. Pergunta-se até onde o computador vai transformar a vida cotidiana e quanto as conquistas da genética molecular vão transformar a vida humana. Qual é a sua visão?
Há um livro do físico norte-americano Freeman Dyson, The Sun, the Genome and the Internet, muito provocativo, que propõe esses três ingredientes – o sol, o genoma e a Internet – como os que terão o maior impacto na vida do homem nas próximas décadas. Eu concordo. E acho que em São Paulo, dos três elementos, só não estamos usando na pesquisa, como poderíamos, o sol, que nesse contexto está posto como o grande gerador de novas energias. De todo modo, o projeto Genoma Cana e o projeto Biota têm relação com isso. Mas aos três elementos do Dyson eu junto a questão do trabalho coletivo na ciência.

Parece-me que sua visão de uma dinâmica completa de pesquisa científica e tecnológica, num estado ou num país, pressupõe simultaneamente grandes projetos sendo feitos em cooperação, projetos tocados por equipes menores e projetos individuais; pesquisa sendo feita no ambiente acadêmico e pesquisa, sobretudo tecnológica, na empresa. Em quanto tempo esse será o quadro rotineiro no Brasil?
Acho que em cinco anos teremos um novo panorama de pesquisa científica e tecnológica no Brasil, determinado por alguns fatores que devem convergir nesse sentido: primeiro, a própria necessidade de inovar para competir, de que as empresas começam a tomar consciência, e, em segundo lugar, o estímulo que novas condições de desenvolvimento do país devem exercer para a ampliação de nossa base já existente de produção de ciência e tecnologia. É claro que as coisas serão assim se houver, de fato, uma retomada significativa de crescimento nos próximos anos, uma diminuição da taxa de juros, a entrada de mais capital de risco no país, e uma forma mais efetiva de organização desse capital de risco.

Nesse caso, como acho que já estamos com uma base preparada para essa ampliação, penso que o governo poderá exercer o papel de articular novas iniciativas em CeT – e a própria FAPESP também pode, eventualmente, ter algum tipo de atuação nessa dimensão. Vejo bons sinais vitais. Por isso acho que em cinco anos vamos ver o sistema científico acadêmico dando contribuições ainda de maior impacto e um sistema de inovação tecnológica forte em ambiente empresarial, ou pelo menos muito mais forte do que atualmente.

A rede ONSA terminou um projeto genoma e está tocando mais três. Ela está pronta agora para deixar de ser virtual e se tornar institucional?
Temos hoje, como disse, vários contatos internacionais sendo feitos, seja para seqüenciamento de bactérias, para cooperações na área do genoma cana ou para verificar as possibilidade de uso do método ORESTES em identificação de genes. Isso mostra que o potencial da Onsa para participar ou liderar projetos, tanto acadêmicos quanto de natureza mais empresarial, poderá exigir uma nova configuração da rede. Acho que a estrutura virtual vai continuar existindo, mas talvez tenhamos que achar um formato institucional que não seja simplesmente o de um conjunto de projetos, que é, de fato, o que hoje a ONSA é.

Temos 54 laboratórios trocando informações entre si, com uma visão integrada e integradora conferida pela ação da FAPESP, que não está formalizada, escrita, nada – é apenas uma ação. Talvez se possa pensar num formato diferente da interação da FAPESP com a rede e em maneiras criativas de redefinir o relacionamento da Fundação com os pesquisadores. É uma coisa complexa, porque esses pesquisadores não estão em qualquer lugar; estão em instituições de pesquisa. Então, trata-se de uma relação que tem de envolver a FAPESP, as instituições e eventuais parceiros, sem cair em mecanismos tradicionalmente pouco eficientes para viabilizar a interação.

Para quando o senhor espera a conclusão do Genoma Humano do Câncer, do Genoma Xanthomonas e do Genoma da Cana-de-Açúcar?
– O genoma da Xanthomonas é duas vezes maior que o da Xylella, tem 5,4 milhões de pares de bases, está sendo feito com pessoal duas vezes menor e vai gastar o mesmo tempo. Como o cronograma está adiantado, nossa previsão é de que o projeto esteja terminado dentro de um ano. O genoma do câncer também está muito avançado, já foram obtidas 170 mil seqüências que continuam sendo verificadas, então a meta de 500 mil seqüências vai ser facilmente atingida antes do fim deste ano. No que diz respeito à anotação, ou seja, à identificação dos genes, a coisa demora um pouco mais, mas estamos finalizando o acerto com o Instituto Ludwig relativo a um investimento para acelerar a bioinformática. E, finalmente, o projeto da cana também está indo num ritmo muito acelerado, tanto que acho que antes do fim do ano teremos a parte de seqüenciamento.

Comentam-se outros desdobramentos do projeto Xylella na área de bioinformática. O senhor pode falar sobre isso?
Queremos ter uma visão articulada da tecnologia nova de microarrays e a FAPESP, além da parceria com o Ludwig para a expansão da bioinformática, está financiando um grande centro na USP liderado pelo professor Hugo Armelin. É um projeto muito ambicioso, que vai envolver a utilização dessa tecnologia de microarrays em todos os projetos genoma já em curso. É importante aumentar nossa competência em todas as novas tecnologias que tornam mais eficiente detectar quais são os genes que se expressam mais, investigar a questão da expressão gênica.

Essa parte é essencial. E é bom observar que, como ocorreu no mundo, está começando aqui em São Paulo um processo cultural de migração de jovens que tiveram sua formação na área de física, matemática e tecnologia da informação para laboratórios de genética. Esse é um fenômeno importante, inclusive porque a migração, além de física, tem de ser de atitude. Dos conceitos e da competência. Ao longo das últimas décadas, a competência de trabalhar com um grande volume de dados se acumulou, em astrofísica, física de partícula elementar, meteorologia, e agora ela precisa se transferir para o ambiente da genética.

O senhor diria que persiste um “gap” entre as exigências das novas áreas da biologia e aquilo que os cursos de graduação oferecem?
Sim, e mesmo nos países desenvolvidos isso só começa a ser corrigido agora. Os cursos de biologia precisam treinar mais seus estudantes em matemática, não só em matemática estatística, que era a única formação nesse campo exigida tradicionalmente de um biólogo. Hoje, um biólogo precisa pelo menos dialogar de forma eficiente com quem faz matemática e física. Do mesmo modo, os matemáticos e os engenheiros têm de incorporar em sua formação básica mais biologia. Chegamos à necessidade de uma formação mais integrada e a universidade brasileira, as universidades paulistas têm de se preparar para isso. Sinto uma disposição das lideranças nesse sentido, que nem sempre corresponde a igual capacidade de ação institucional. A universidade tem seus rituais, que precisam ser agilizados para responder rapidamente a esse desafio.

Qual o passo mais importante a ser dado nesse momento pela FAPESP para criar o futuro na direção que o senhor apontou ao longo da entrevista?
O que fazer nesse instante? Veja, estamos na curiosa situação de uma pessoa que sobe o morro e do alto vê um cenário completamente novo à sua frente, com um número enorme de opções. Ao olhar isso, sua primeira sensação é de prazer por contemplar esse novo cenário. Mas o cenário existe e vai continuar existindo como oportunidade, se agirmos rapidamente. É difícil dizer o que exatamente temos de fazer agora. Acho que nosso primeiro passo essencial é consolidar nossa liderança em certas áreas, demonstrar essa competência, porque isso é que vai nos permitir fazer as opções que são reais dentro desse cenário, e não apenas miragens.

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