Cheguei em agosto de 2019 na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, para desenvolver parte do meu doutorado. Fui com uma bolsa da Fulbright, programa patrocinado pelo Departamento de Estado daquele país. O programa para o qual fui selecionada oferecia apenas 30 vagas para doutorandos de todo o Brasil. Sou formada em pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo [FE-USP], onde faço doutorado em história da educação. Investigo as relações raciais na história do ensino superior.
Nos Estados Unidos, o momento de virada para a anormalidade foi rápido. Por causa da Fulbright, estava em contato com grupos de bolsistas brasileiros espalhados por outros estados do país. No início de março, alguns deles começaram a mandar notícias da piora da situação em seus estados, relatando como as instituições de ensino começaram a fechar. Demorei a entender que a pandemia afetaria a cidade em que morava mais cedo ou mais tarde. Estava vivendo em Urbana-Champaign, em Illinois, uma pequena cidade universitária, repleta de bibliotecas. Na segunda semana de março, as aulas presenciais foram canceladas e passaram a acontecer virtualmente. Vi um vídeo indicado por uma amiga sobre a situação na Itália em que a rotina já tinha mudado há algum tempo. O vídeo dizia que, primeiro, era um clima de férias, mas depois tudo ficava muito difícil. Eu já estava entrando na reta final da pesquisa, no momento de análise dos dados e da escrita da tese. Cursava disciplinas e pesquisava nas inúmeras bibliotecas da cidade, que são muito distintas. Conforme meu humor, ia trabalhar em uma biblioteca diferente. Algumas delas são mais silenciosas, outras mais aconchegantes, ou com clima mais sóbrio. Era bom poder variar de ambiente de trabalho.
Além dos meus dois filhos, de 10 e 11 anos, estavam comigo meus pais, que me acompanharam aos Estados Unidos para dar suporte com as crianças. Após o início do isolamento, passamos uma semana sem muito direcionamento, mas logo em seguida colocamos em prática uma nova dinâmica familiar, com uma rotina que envolvia a todos. Meu pai é músico e, durante as manhãs, tínhamos aulas de iniciação musical com ele e, depois, aulas de yoga com minha mãe, que já praticava há algum tempo. Em seguida as crianças se envolviam com as atividades da escola, enquanto eu me dedicava ao doutorado. O mais importante para mim, naquele momento, era a interação familiar. O fato de sermos um grupo ajudou a manter a disciplina. Além disso, quando um estava desanimado, os outros tentavam ajudar. Conseguimos manter uma rotina, mas a mudança abalou meu ritmo de estudos, pois tive de passar a dedicar mais tempo à dinâmica familiar. Aos poucos, fui me adaptando e retomando o trabalho. Porém, ao mesmo tempo, também tinha de lidar com uma dimensão emocional que tirava meu foco da pesquisa.
Quando a pandemia chegou, a recomendação da Fulbright era de que retornássemos ao Brasil para evitar o risco de não ter voos disponíveis posteriormente. Eu não queria voltar, estava amando a experiência e não sabia se seria seguro atravessar o continente com minha família. Ao mesmo tempo, também tinha medo do risco real de não ter mais voos nos meses seguintes. Era uma decisão difícil, envolvendo dois idosos e duas crianças. Conversamos muito e tomamos a decisão de permanecer. Periodicamente, repensávamos nossa opção. Meus pais falam pouco inglês. Eu estava em uma posição de responsabilidade, mas estávamos nos sentindo seguros em permanecer, já que a cidade é pequena e registrava menos casos do que em São Paulo, então fomos ficando.
No final de maio, decidimos que era hora de voltar. Eu já estava no fim do programa, tinha concluído as disciplinas, o contrato de aluguel estava por expirar e os voos para o Brasil estavam sendo cancelados. Tivemos de decidir a data de retorno de um dia para o outro. Arrumamos tudo rápido. Morávamos a três horas de Chicago, onde tomaríamos o avião para o Brasil. Uma longa viagem, a ser feita por cinco pessoas com bagagens de um ano. Nos atrasamos para desmontar o apartamento e quase perdemos o avião. Foi muito estressante. Estar em outro país em uma situação de pandemia faz tudo se tornar mais intenso. Chegamos no começo de junho, apenas 15 dias antes do inicialmente previsto. Minha primeira dificuldade foi ter de procurar casa para morar. Não pude me isolar assim que cheguei.
Ao longo de todo meu doutorado, sempre trabalhei e estudei, além de cuidar dos meus dois filhos. Levava uma vida extremamente corrida. Era um esforço enorme para conseguir conciliar doutorado, emprego e cuidar das crianças. Nos Estados Unidos, pela primeira vez, estava me dedicando exclusivamente à pesquisa. Tinha bolsa e não podia trabalhar. No Brasil, nunca pude ser bolsista, pois o valor das bolsas não cobria minhas despesas. Quando voltei ao país, optei por manter esse formato. Foi uma grande mudança no meu modo de pensar, mas queria seguir me dedicando exclusivamente ao doutorado. Com uma bolsa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e apoio de familiares, hoje posso me dedicar exclusivamente à pesquisa acadêmica.
Por mais que eu enfrente uma situação emocional complicada, por conta do distanciamento social e de sentir falta de fazer coisas fora de casa, considero que estou em um momento positivo da vida. Mesmo morando apenas com meus filhos, consegui reestruturar minha rotina, com uma organização parecida com a que tínhamos nos Estados Unidos. Na parte da manhã, fico junto deles, fazemos yoga ou alongamento, tomamos sol. Preparo o almoço e, na parte da tarde, as crianças seguem para sua rotina escolar, com aulas on-line e atividades domiciliares, e eu me dedico aos estudos. Tenho a guarda compartilhada com o pai deles, então as crianças passam 15 dias comigo e outros 15 dias com o pai. Tenho esse descanso, ou seja, não estou sendo mãe solo em tempo integral. Meu prazo inicial para depositar a tese seria fevereiro, mas o programa onde faço doutorado estendeu esse limite por mais um ano, por causa da pandemia.
Tudo está mais intenso, inclusive as questões envolvendo as relações raciais no Brasil. Lidar com essa situação, nesse momento em que estamos isolados, tem sido um grande desafio. Retomei a terapia. Percebi que seria necessário um suporte para atravessar essa fase. Falo tudo isso de um lugar específico, na condição de pesquisadora negra. Nos Estados Unidos, foi a primeira vez em que eu pude escolher que disciplinas envolvendo o tema das relações raciais eu queria cursar. A universidade oferece um catálogo amplo de cursos. As relações raciais são discutidas em diferentes áreas, a partir de múltiplas perspectivas. Cheguei na universidade e percebi como eram amplas as possibilidades de debater e aprofundar meus estudos. Lá, há muitos departamentos e pesquisadores dedicados ao assunto. Tive diversos professores e colegas negros, diferentemente do que acontece no meu programa de pós-graduação na FE-USP, onde o tema das relações raciais é marginalizado e eu nunca tive professores negros. A vivência com tantos intelectuais negros nos Estados Unidos me trouxe novas possibilidades de pertencimento ao mundo acadêmico que não tive no Brasil. Por causa de tudo isso, mesmo com a chegada inesperada da pandemia, minha experiência por lá foi potente e poderosa. Aqui, temos a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, que realiza um trabalho excelente, mas além dela eu não conheço nenhuma outra desse porte que reúna intelectuais negros do Brasil e de outros países, como eu pude ver por lá. Penso que uma das formas de manifestação do racismo institucional acontece nessa marginalização do tema na minha área de estudos e na ausência de professores e estudantes negros. Certamente, há racismo nos Estados Unidos, mas no ambiente acadêmico tive a sensação de que eles estão mais incluídos do que no Brasil. Lidar com essas e outras situações de racismo institucional no contexto atual da pandemia e de saúde mental fragilizada tem sido especialmente difícil.
Na minha pesquisa de doutorado, trabalho com a hipótese de que a fundação da USP na década de 1930 teve um papel importante no processo brasileiro de construção social da ideia de raça. Diversos pesquisadores que investigam a história da USP afirmam que ela foi uma escola criada pela elite para a elite, mas poucos deles trazem a questão racial para o centro de suas análises. Penso que o fato de ter sido criada pela elite para a elite também inclui a ideia de que foi criada de brancos para brancos. Esse é o argumento central que estou trabalhando na tese. Para fazer essa construção, estou considerando as vozes e debates educacionais de intelectuais negros daquele período e analisando o processo de formação institucional da USP.
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