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Energia

No fundo dos lagos

Metano acumulado em hidrelétricas pode gerar mais energia elétrica

Uma equipe de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, em São Paulo, criou um sistema para capturar o metano acumulado nos reservatórios de usinas hidrelétricas e, com ele, produzir energia elétrica. Estimativas do grupo apontam que, juntas, todas as represas do mundo emitem entre 18 e 24 milhões de toneladas de metano por ano, o que corresponderia a cerca de 5% a 7% desse gás liberado na atmosfera por todas as atividades humanas como, por exemplo, o cultivo de arroz, os aterros sanitários, a mineração de carvão, a extração de petróleo ou a pecuária. Junto com o dióxido de carbono (CO2), o gás metano (CH4) é um dos principais vilões do efeito estufa do planeta. O potencial de aquecimento do metano é entre 21 e 25 vezes maior do que o do gás carbônico. Isso acontece porque, apesar de ter um tempo de vida menor do que o CO2, a molécula de metano é mais opaca do que a de carbono à radiação térmica, provocando um aprisionamento maior de calor na superfície terrestre.

A solução dos pesquisadores brasileiros poderia elevar em 30% a capacidade produtiva das hidrelétricas localizadas na bacia do rio Amazonas. As líderes na emissão de metano são as construídas em áreas de florestas úmidas, como as brasileiras Tucuruí, Balbina e Samuel, e a Petit Saut, na Guiana Francesa, todas elas na Amazônia. Somente Tucuruí, a maior delas, libera entre 700 mil e 1,2 milhão de toneladas de metano por ano. “Há evidências, ainda sem comprovação científica, de que há grandes estoques de metano no fundo de Itaipu. Ninguém foi ainda lá para medir, mas o gás teria origem nos dejetos jogados no lago por fazendas e granjas de criação de animais situadas no entorno do reservatório”, diz o pesquisador Fernando Manuel Ramos, do Laboratório Associado de Computação e Matemática Aplicada (LAC) do Inpe, autor do projeto com outros três colegas do instituto, Luís Antônio Waack Bambace, Ivan Bergier Tavares de Lima e Reinaldo Roberto Rosa.

O metano dos reservatórios é produzido principalmente por bactérias que participam do ciclo de decomposição subaquática do carbono existente na matéria orgânica remanescente da época da formação da represa ou levada, na forma de sedimentos, pelos rios que deságuam no reservatório. O gás permanece dissolvido na água, principalmente nas camadas mais profundas do lago, e escapa para a atmosfera quando passa pelas turbinas e pelos vertedouros das usinas. “É parecido como abrir uma garrafa de refrigerante. A água das represas é subitamente despressurizada e libera o gás, no caso o metano, dissolvido nela”, diz Ramos.

Barreira física
A idéia do grupo do Inpe para evitar que o metano chegue à atmosfera é capturá-lo ainda no fundo do lago. O primeiro passo é a colocação de uma barreira física, na forma de uma grande membrana, para impedir que as turbinas das hidrelétricas, normalmente posicionadas de 40 a 60 metros de profundidade, suguem águas ricas em metano. Essa membrana seria feita com lona encerada usada nos caminhões para proteção das cargas e ancorada por pesos e estacas no fundo da represa. “Ela seria colocada numa distância segura para não ser sugada pelas turbinas e seria fixada a bóias na superfície que controlariam seu posicionamento e nivelamento. Com essa barreira, a água que entraria nas turbinas viria de camadas superficiais da represa, com menor concentração de metano”, explica Bambace.

Um sistema de tubulações conectado a bombas semelhante ao aspirador de uma piscina coletaria a água rica em metano “aprisionada” no fundo da represa e levaria para balsas na superfície, onde seria feita a extração do gás por um sistema de vaporização em ambiente fechado. Esse equipamento reproduziria o mesmo processo que ocorre na saída das turbinas e nos vertedouros das usinas, quando o gás é liberado pela formação de spray e borbulhamento da água. A água tratada contendo metano residual voltaria para o fundo da represa por outro sistema de dutos e o gás extraído seria utilizado para geração de energia. “O metano poderia ser armazenado e transportado para uma termelétrica qualquer, mas o melhor é que a geração de energia ocorresse em centrais junto às hidrelétricas para aproveitar as mesmas linhas de transmissão”, diz Ramos. Assim, o metano coletado será queimado numa turbina a gás, de forma semelhante ao querosene na turbina de um avião, para geração de energia elétrica. O CO2 resultante da queima do CH4 vai para a atmosfera, mas não produz efeito estufa adicional porque foi capturado anteriormente desta mesma atmosfera pela vegetação e outros organismos vivos do reservatório ou seu entorno.

Os pesquisadores do Inpe estimam que a construção de um sistema para captação de 1 milhão de toneladas de metano por ano exigiria investimentos da ordem de US$ 100 milhões. Essa quantidade de gás é suficiente para gerar 1.780 megawatts (MW) de energia, a potência de uma hidrelétrica de médio porte – para efeito de comparação, Tucuruí I tem 3.960 MW de potência instalada. “A instalação de sistemas de aproveitamento de metano nas usinas de Tucuruí, Balbina e Samuel, as três maiores da Amazônia, elevaria em 30% a capacidade produtiva delas”, destaca Ramos. “Com isso, além de gerar energia limpa e reduzir uma fonte do aquecimento global, ainda contribuiríamos para reduzir a pressão pela construção de novas hidrelétricas na região.”

Longo caminho
O trabalho do grupo foi publicado na revista científica Energy, em junho. No momento, os pesquisadores estão tentando obter financiamento para construir o primeiro protótipo. Eles estimam que o modelo experimental ficaria pronto em um ano. A construção de um sistema produtivo, como, por exemplo, na represa Balbina, que tem 250 MW de potência instalada, levaria entre três e quatro anos para tornar-se operacional. O grupo prevê que a barreira física instalada no fundo do lago de Balbina teria cerca de 850 metros de comprimento por 25 metros de altura e custaria algo em torno de R$ 1 a 2 milhões. Ramos acredita também que a lâmina d’água livre, com cerca de 10 metros, será suficiente para peixes e outras espécies aquáticas se movimentarem. Estudos específicos nas represas poderão avaliar cada detalhe do impacto ambiental.

“Ninguém produz ainda energia em escala industrial a partir do metano encontrado em reservatórios, mas há um caminho a ser percorrido para sua maturação”, diz Ramos. Uma importante etapa a ser cumprida é o mapeamento dos estoques de metano dos reservatórios brasileiros e no mundo, que pode ser feito por sondagem ou amostragem, com a análise da água do fundo do lago. Para o sistema ser economicamente viável, explica Bambace, é preciso que a represa tenha concentrações na faixa de 20 gramas de metano por metro cúbico de água, nível encontrado a 60 metros de profundidade no lago de Tucuruí. “É possível também que exista muito metano nos reservatórios de São Paulo, em função da poluição que eles recebem dos rios. Mas somente com o mapeamento dos estoques saberemos do real potencial da solução que estamos propondo.”

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