Generosidade, delicadeza e elegância são traços marcantes da personalidade da escritora Lygia Fagundes Telles. Ganhadora de todos os prêmios literários importantes do Brasil, homenageada nacional e internacionalmente e, este ano, indicada para o Prêmio Nobel de Literatura pela União Brasileira de Escritores, a ocupante da cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras (ABL) é dona de indiscutível prestígio intelectual. Cultiva leitores, fascina admiradores e atrai estudiosos para sua obra. Sua característica mais notável, porém, é a necessidade vital de escrever.
“Quando fico desesperada, ao invés de recorrer às pílulas ou aos terapeutas, ou então ao uísque, me entrego ao meu trabalho que é escrever. O que eu sei fazer e amo fazer”, escreveu ela em resposta às perguntas para compor este perfil. Por recomendação médica, Lygia tem evitado entrevistas feitas pessoalmente. A escritora enxerga cada leitor como um parceiro, um cúmplice. “Através do trabalho, espero escapar, ou melhor, me livrar do desespero. Sem atormentar o meu próximo, ofereço a esse próximo um conto, uma crônica, um romance.” Fazendo referência ao livro A negação da morte (Record, 2007), de Ernest Becker, ela pergunta: o que vem a ser a negação dessa morte? “A arte”, responde. “A fé nessa arte. O pianista vai tocar piano, o dançarino vai dançar. E o escritor vai escrever.”
É por essa razão que, mesmo fragilizada pela idade e por uma fratura no fêmur que a obriga a andar de bengala, Lygia segue escrevendo e vivenciando a literatura, definida por ela como uma forma de amor. Raramente falta aos encontros semanais da Academia Paulista de Letras (APL), no Largo do Arouche, em São Paulo, e cumpre uma agenda de compromissos com a Companhia das Letras, sua editora desde 2009, responsável pelas reedições de seus trabalhos. “Enquanto tiver inspiração, quero continuar apenas escrevendo, obedecendo à minha vocação, em latim, vocare: o chamado”, diz Lygia.
Nascida em 1923, paulistana do bairro de Santa Cecília, a escritora desconhece a vida sem histórias. Quando pequena, morou em várias cidades do interior paulista, seguindo as nomeações do pai, que era promotor e delegado. Nesses municípios, recebia o cuidado de babás dotadas de um farto repertório de lendas. Foram aquelas mulheres que deram à menina imaginativa um sem-fim de histórias povoadas por mulas sem cabeça que ela recontava e reinventava para outras crianças. Lygia gosta de dizer que começou a escrever antes mesmo de saber escrever. Sua predileção, na infância e na primeira juventude, era pelas histórias de terror.
São elas que deram o tom a seu livro de estreia, Porão e sobrado (1938), com edição bancada pelo pai. Seis anos depois, lançaria Praia viva. Ambos os trabalhos se encontram hoje inacessíveis. Lygia, sob o argumento de que deseja que conheçam o melhor dela mesma, não quis jamais que fossem reeditados. O início da sua real formação literária coincide com a entrada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em 1941. “A faculdade foi, para ela, um rito de passagem”, afirma Celso Lafer, professor emérito de direito, ex-presidente da FAPESP e colega da APL e ABL, que a conheceu ainda na faculdade do Largo São Francisco. “Ela é uma grande expressão desse cenário criativo que o ambiente universitário da época tanto estimulou. As memórias daquele período sempre serviram para ela como matéria da ficção.”
Foi durante o curso de direito que Lygia – cuja beleza parava os corredores, segundo relatos de admiradores – conheceu o primeiro marido, o professor Goffredo da Silva Telles Jr. (1915-2009), pai de seu filho, Goffredo Telles Neto (1954-2006). Seu segundo marido foi o intelectual e crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977). Até hoje, quando fala de Paulo Emilio, Lygia demonstra saudade e paixão. Com ele, adaptou Dom Casmurro, de Machado de Assis, para o cinema; por ele, bateu em muitas portas atrás de recursos para a Cinemateca Brasileira – instituição que o crítico fundou e ela chegou a presidir. A intensa presença do cinema em sua vida prosseguiria, após a morte de Paulo Emilio, por meio do filho. Goffredo, pai das duas netas de Lygia, Lúcia e Margarida, herdou do padrasto a paixão pelas imagens em movimento. Cineasta e videoartista, ele morreu em 2006, aos 52 anos.
Dentre as várias coisas que admiro na Lygia está a forma pela qual ela conseguiu, não superar, porque isso não se supera, mas lidar com a perda do filho, que era tão seu companheiro”, testemunha a escritora Anna Maria Martins, amiga de muitos caminhos cruzados. Em 1973, elas lançaram juntas os livros A trilogia do emparedado, de Anna, e As meninas, de Lygia. Em 1982, Lygia passaria a ocupar, na APL, a cadeira 28, que coubera ao marido de Anna, Luís Martins (1907-1981). Hoje, são também colegas de academia. “Ela é solidária com as pessoas em geral e com os companheiros de trabalho. Sempre deu atenção a todo mundo.” Procurado para falar sobre as características da amiga, o poeta Paulo Bonfim resumiu: “Generosidade e genialidade rimam nesse depoimento”.
Uma das grandes amigas de Lygia foi Clarice Lispector (1920-1977). Ficou famoso o conselho dado por Clarice para que Lygia, de incontornável simpatia, não risse nas fotos a fim de que a levassem a sério. Outra autora com quem teve intimidade foi Hilda Hilst (1930-2004). Nos Cadernos de literatura brasileira, editado pelo Instituto Moreira Salles, a colega de ofício escreveu: “Sempre assusto ela, digo que estou morrendo pra ela aparecer […]. Ela quase não vem aqui. Às vezes até brigo com ela, de ciúmes da Nélida Piñon”. Nélida, nas palavras de Hilda, por ser mais “arrumada”, combinava melhor com a amiga que, sóbria e discreta, “tem pavor de coisas escandalosas”. O ciúme escancarado de Hilda dá a medida da benquerença despertada por Lygia.
Mesmo habitando um mundo interior denso e complexo, Lygia tem um exterior divertido e prosador. Cabe a José Saramago (1922-2010), num texto escrito para os Cadernos, uma das descrições mais precisas do modo de conversar da escritora. O português relatou um encontro entre vários autores, em Hamburgo, Alemanha, no qual todos escutavam com “terna atenção e respeito” o falar de Lygia: “Aquele seu discorrer que às vezes nos dá a impressão de se perder no caminho, mas que a palavra final irá tornar redondo, completo, imenso de sentido”.
O primeiro grande livro de Lygia é Ciranda de pedra (1954), romance que aborda temas como lesbianismo e suicídio e que foi considerado pelo professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e crítico literário Antonio Candido o marco intelectual da escritora. Outro ponto alto de sua carreira surgiria duas décadas depois: As meninas. O livro, considerado um dos melhores títulos da ficção brasileira do século XX, funde a história do país aos monólogos interiores de três moças – uma delas militante política.
Apesar do reconhecimento pela excelência dos romances, alguns críticos consideram o conto como o gênero de excelência dentro de sua obra. Para Saramago, o conto “Pomba enamorada ou uma história de amor” é uma obra-prima. No “realismo cru, cruel, cruento” dos contos de Lygia, como escreve o crítico Alfredo Bosi no posfácio da reedição de A estrutura da bolha de sabão (1978), “não há saídas nem para o círculo do sujeito fechado em si mesmo nem para o inferno das relações entre os indivíduos”. Tudo, em sua prosa, está submetido à lei da gravidade: “Tudo tem peso, já caiu, ou está prestes a cair”.
A unir toda a escrita de Lygia, seja a narrativa longa ou curta, estão alguns temas: a fuga, a solidão, a loucura e a rejeição. Em suas histórias, a dor está sempre à espreita. E a grande matéria-prima a nutri-las é a memória – ao ponto de a protagonista de As horas nuas (1989) ser uma atriz decadente que tenta escrever um livro de memórias. Em Invenção e memória (2000), livro no qual fragmentos de história pessoal se mesclam à ficção, a epígrafe é uma frase de Paulo Emilio: “Invento, mas invento com a secreta esperança de estar inventando certo”.
Apesar da escrita que nem sempre se entrega com facilidade ao leitor – o conto “Senhor diretor”, por exemplo, se encerra com dois pontos –, Lygia conhece relativa popularidade e teve obras adaptadas para a TV. Ciranda de pedra virou novela em 1981, trazendo Lucélia Santos no papel principal; em 1993, a série Retrato de mulher, protagonizada por Regina Duarte, levou ao ar uma adaptação da própria Lygia para o conto “O moço do saxofone”. Ela, no entanto, nunca quis escrever para a televisão e não esconde seu espanto com o fato de terem colocado, em Ciranda de Pedra, 10 casamentos. “O livro não traz um sequer”, declarou várias vezes, todas elas rindo.
Bem-humorada, Lygia sabe que a vida não se vive em linha reta. Talvez por isso não siga linhas retas nem no discurso nem no caminhar – permitindo-se sempre os desvios, as voltas. Isso tudo faz com que a fama de distraída se justifique. De distraída e de atrasada. Paulo Emilio a chamava de Cuco, em referência ao relógio da avó inglesa que, assim como Lygia, estaria sempre atrasado. Outra fama colada à sua personalidade é a do apego aos gatos.
“Gosto muito dos gatos, mas não os tenho mais faz anos”, diz, quando perguntada sobre os prazeres que a rodeiam atualmente. “Meus prazeres são meu trabalho, meus amigos, minha família: minhas netas e bisnetas que estão sempre comigo. Uma vida tranquila, com a sensação de que cumpri minha missão.”
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