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Prêmio

Nobel da Paz é concedido a dois jornalistas

A filipina Maria Ressa e o russo Dmitry Muratov foram escolhidos pelos seus esforços na defesa da liberdade de expressão

Niklas Elmehed / Nobel

Em uma clara mensagem sobre a importância de uma imprensa livre para o fortalecimento das democracias e a manutenção da paz entre as nações, a Academia Real de Ciências da Suécia laureou os jornalistas Maria Ressa, das Filipinas, e Dmitry Andreyecich Muratov, da Rússia, com o Prêmio Nobel da Paz de 2021. Os dois criaram em seus países veículos de comunicação independentes e irão dividir igualmente o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (cerca de US$ 1,15 milhão ou R$ 6,3 milhões).

“Não há democracia, nem frágil ou avançada, sem liberdade de expressão”, destacou a advogada norueguesa Berit Reiss-Anderson, presidente do Comitê do Nobel, durante o anúncio do prêmio, ocorrido nesta sexta-feira (8/10). Ela também ressaltou que uma imprensa livre é uma pré-condição para uma paz duradoura.

“Maria Ressa e Dmitry Muratov estão recebendo o Nobel da Paz por sua corajosa luta em prol da liberdade de expressão nas Filipinas e na Rússia. Ao mesmo tempo, são representantes de todos os jornalistas que defendem esse ideal em um mundo em que a democracia e a liberdade de imprensa enfrentam condições cada vez mais adversas”, disse Reiss-Anderson.

De acordo com a organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), Filipinas e Rússia são países onde o livre exercício do jornalismo profissional enfrenta restrições. O país do Sudeste Asiático, comandado desde 2016 pelo presidente Rodrigo Duterte, ocupa a 138a posição no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, organizado pela entidade e que inclui 180 países e territórios. A Rússia, presidida por Vladimir Putin, aparece no 150o lugar da lista. O ranking é liderado pela Noruega.

A premiação dos dois jornalistas, segundo o historiador Angelo Segrillo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e especialista em Rússia, enfatiza o ambiente autoritário em que os premiados estão trabalhando. “É uma condenação bem direta ao cenário político da Rússia e das Filipinas”, sustenta.

Para os organizadores do prêmio, “o jornalismo livre, independente e baseado em fatos serve para proteger contra abusos de poder, mentiras e propaganda de guerra”. O reconhecimento ao trabalho desempenhado ao longo de anos por Ressa e Muratov é também uma reação às campanhas de desinformação e às restrições à liberdade de imprensa protagonizadas por líderes populistas ao redor do mundo.

Notícias falsas

Ressa, de 58 anos, é cofundadora e CEO da Rappler, uma empresa de mídia digital criada em 2012 que pratica o jornalismo investigativo. A jornalista, que se declarou chocada ao saber que havia ganhado o prêmio, tem sido uma das principais vozes contra a violenta campanha antidrogas de Duterte, que já provocou, segundo a organização Human Rights Watch, mais de 12 mil mortes, a maioria de pessoas pobres. Muitas das vítimas foram assassinadas por agentes de segurança do Estado.

“O número de mortes é tão alto que a campanha [governamental] se assemelha a uma guerra travada contra a população do país”, destacou a academia. “Ressa e a Rappler também documentaram como a mídia social está sendo usada para espalhar notícias falsas, assediar oponentes e manipular o debate público.”

A filipina é, até então, a única mulher agraciada com o Nobel neste ano. A academia já divulgou os vencedores de Medicina, Química, Física e Literatura – todos eles homens. Falta apenas escolher a pessoa que receberá o prêmio de Economia, previsto para segunda-feira (11/10).

O russo Muratov, de 59 anos, por sua vez, trabalha há décadas a favor da liberdade de expressão na Rússia e, em 1993, foi um dos fundadores do jornal independente Novaja Gazeta, com sede em Moscou. Dois anos depois, assumiu o posto de editor-chefe, no qual permaneceu por 24 anos. O jornal é considerado hoje o mais independente veículo de imprensa do país, com uma atitude sempre crítica em relação ao poder. Um de seus proprietários é Mikhail Gorbachev, o último líder soviético. Ele usou o dinheiro que recebeu quando ganhou o Nobel da Paz de 1990 para ajudar a criar a empresa jornalística.

Para os organizadores do Nobel, o jornalismo baseado em fatos e a integridade dos profissionais do Novaya Gazeta fizeram dele uma importante fonte de informações sobre aspectos da sociedade russa raramente divulgados por outras empresas de comunicação. Em uma entrevista coletiva concedida após o anúncio do prêmio, Muratov dedicou a honraria aos jornalistas mortos em decorrência de seu exercício profissional. “Para nós, esse prêmio é, antes de mais nada, um reconhecimento à memória de nossos colegas perdidos.” Por sua postura combativa, o jornal moscovita já teve seis de seus jornalistas assassinados.

“Essa premiação torna mais clara a relação essencial que ata o jornalismo à paz. Sociedades pacíficas são necessariamente sociedades livres e bem-informadas”, diz o jornalista Eugênio Bucci, professor titular da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. “Dmitry Muratov e Maria Ressa criaram em seus países órgãos de imprensa que hoje são respeitados pela independência e pela qualidade. Com isso, arriscam suas vidas e mantêm suas sociedades mais informadas.”

Segundo Bucci, autor do livro Existe democracia sem verdade factual? (Estação das Letras e Cores, 2019), ao conferir o Nobel da Paz a dois jornalistas combativos, a Academia Real de Ciências da Suécia fortalece a atividade jornalística. “Em primeiro lugar, porque fica evidente que o jornalismo profissional, praticado e pensado com independência e método, é um construtor insubstituível da paz. Em segundo lugar, porque dois expoentes da imprensa do nosso tempo ganham uma camada de proteção, inclusive física, contra os atentados que os espreitam o tempo todo.”

Integrante do Conselho Curador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o jornalista Fernando Rodrigues concorda. “O prêmio ajuda a dar relevo à missão dos jornalistas, que é a de apurar a verdade dos fatos –, e assim combater inverdades que circulam com muita facilidade desde a disseminação do uso da internet”, afirma.

Rodrigues, que também exerce o cargo de diretor do jornal digital Poder360, avalia que o bom jornalismo profissional ajuda a aperfeiçoar a democracia ao publicar informações que são sempre apuradas de maneira correta, com boa-fé e método. “Por ser uma premiação muito reconhecida, o Nobel da Paz para dois jornalistas reforça a necessidade de a indústria do jornalismo profissional ser valorizada, sobretudo numa era em que há um oceano de dados disponíveis e desconexos na internet.”

Situação no Brasil
Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que mais de mil jornalistas foram assassinados na última década em todo o mundo. De acordo com a organização RSF, o jornalismo está totalmente ou parcialmente limitado em 73% dos países avaliados. O controle da atividade da imprensa é revelado pelos dados do ranking elaborado pela entidade, que mede as restrições de acesso e os entraves à cobertura jornalística.

Ocupando o 111o lugar na listagem global da RSF, o Brasil faz parte do mesmo grupo de países onde estão Rússia e Filipinas, no qual o jornalismo se encontra em uma “situação difícil”. “O Brasil continua sendo um país particularmente violento para a imprensa, em que muitos jornalistas são mortos”, aponta o relatório da organização. “O sigilo das fontes é regularmente prejudicado e muitos jornalistas investigativos são alvo de processos judiciais abusivos.”

Para Bucci, o Brasil tem uma imprensa livre e democrática – embora pudesse ser mais plural e diversa. “Ela nos ajuda a conhecer os erros e abusos do poder”, destaca. “Os brasileiros não saberiam de quase nada dos desmandos que nos vitimam se não fosse o trabalho dos jornalistas, nos mais diversos veículos.”

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