Imprimir PDF Republicar

Prêmio

Nobel da Paz vai para “campeões” dos direitos humanos na Rússia, Ucrânia e Belarus

O ativista bielorrusso Ales Bialiatski, a organização russa Memorial e o Center for Civil Liberties, da Ucrânia, dividiram o prêmio

Bialiatski e as organizações Memorial e Center for Civil Liberties: defensores dos direitos humanos em região de conflito

Michał Józefaciuk / Wikimedia Commons | Tomasz Molina / Wikimedia Commons | Okunev / Cortesia Center of Civil Liberties

No ano em que a Europa se viu tragada pelo maior conflito bélico travado dentro de suas fronteiras desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – a invasão da Ucrânia pela Rússia –, a Academia Real de Ciências da Suécia decidiu premiar com o Nobel da Paz um ativista e duas entidades do continente que atuam em defesa dos direitos humanos. A láurea de 10 milhões de coroas suecas, o equivalente a R$ 4,8 milhões, será dividida entre o bielorrusso Ales Bialiatski e as organizações Memorial, da Rússia, e Center for Civil Liberties, da Ucrânia.

“Os laureados representam a sociedade civil em seus países de origem. Por muitos anos, defenderam o direito de criticar os poderosos e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos. Fizeram um esforço incomum para documentar crimes de guerra, abusos dos direitos humanos e de poder”, justificou a advogada norueguesa Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê do Nobel, durante a divulgação do prêmio, nesta sexta-feira (7/10). Com o reconhecimento, o comitê quis homenagear “três destacados campeões de direitos humanos, democracia e coexistência pacífica nos países vizinhos Belarus, Rússia e Ucrânia”.

“O Prêmio Nobel da Paz tem sido usado já há algum tempo de forma política, diferentemente do de outras áreas. A decisão deste ano, ao que parece, foi nesse sentido, de chamar a atenção para o conflito entre Rússia e Ucrânia e para as violações de direitos humanos que estão sendo cometidas nele”, destacou Sérgio Luiz Cruz Aguilar, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (FFC-Unesp), campus de Marília, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Conflitos Internacionais (GepciI).

Para Guilherme Assis de Almeida, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a academia premiou neste ano organizações que trabalham com a memória. “Foi uma escolha muito inteligente do ponto de vista político. Sem um material que mostre a violação de direitos humanos, não é possível lidar de forma adequada com o legado da violência, ao fim do conflito”, afirma Almeida, que é especialista em direito internacional de direitos humanos. “As duas organizações e o ativista bielorrusso estão fazendo um trabalho fundamental para as futuras gerações”, completou.

Dura perseguição
Aos 60 anos, Bialiatski é um dos mais combativos defensores dos direitos humanos de Belarus (ou Bielorrússia), uma autocracia comandada há 28 anos por Alexander Lukashenko, fiel aliado do líder russo Vladimir Putin – no passado, Belarus fez parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, 1922-1991). Em meados dos anos 1980, Bialiatski tornou-se um dos líderes do movimento pró-democracia que emergiu em Belarus. Formado em filosofia, ele fundou em 1996 e ainda dirige a organização Viasna (Primavera), a mais proeminente entidade bielorrussa de defesa dos direitos humanos.

“Autoridades do governo tentaram repetidamente silenciar Ales Bialiatski. Ele foi preso entre 2011 e 2014 [sob a acusação de evasão fiscal]. Após protestos de larga escala contra o regime bielorrusso em 2020, foi novamente preso. E ainda está detido sem julgamento”, informou Reiss-Andersen. “Apesar das enormes dificuldades pessoais, Bialiatski não cedeu um centímetro na sua luta pelos direitos humanos e pela democracia em Belarus.”

Em Moscou, a organização Memorial foi criada nos últimos anos do regime comunista, quando o país era dirigido por Mikhail Gorbachev (1931-2022). O primeiro líder da entidade foi o dissidente soviético Andrei Sakharov (1921-1989), vencedor do Nobel da Paz em 1975. Após o colapso da URSS, em 1991, o grupo cresceu e tornou-se a maior organização em defesa dos direitos humanos da Rússia.

Além de criar um centro de documentação sobre os horrores vividos pela população durante o período em que a União Soviética foi liderada por Josef Stalin, entre 1924 e 1953, a entidade tem compilado e sistematizado informações sobre a opressão política e as violações dos direitos humanos ocorridos no país nos últimos anos. Com isso, tornou-se a principal fonte de informação sobre prisioneiros políticos em instalações russas.

O grupo, regularmente citado como um potencial vencedor do Nobel da Paz, esteve na mira das autoridades russas por anos. Em dezembro de 2021, o governo determinou o fechamento da organização e o encerramento de suas atividades, o que ocorreu nos meses seguintes, a despeito da oposição de seus membros. “Ninguém planeja desistir”, sentenciou o ativista russo Yan Rachinsky, líder da entidade.

O terceiro premiado foi a organização ucraniana Center for Civil Liberties, fundada em 2007 na capital Kiev com o objetivo de promover os direitos humanos e a democracia no país. Após a invasão russa em fevereiro deste ano, a entidade dedicou esforços para identificar e documentar crimes de guerra cometidos pelas forças russas contra a população civil da Ucrânia.

“O centro está desempenhando um papel pioneiro em responsabilizar os culpados por seus crimes”, destacou o comitê do Nobel. Em 2014, quando tropas russas deram suporte a separatistas no leste da Ucrânia e anexaram a península da Crimeia, no sul do país, a organização mobilizou-se para documentar violações aos direitos humanos e denunciar desaparecimentos de ativistas, jornalistas e críticos ao Kremlin, a sede do poder russo.

“É uma grande honra para nós receber este prêmio e também para nossos parceiros”, afirmou Oleksandra Romantsova, diretora-executiva da organização, ao jornal The New York Times. “É muito importante para o estabelecimento dos direitos humanos e para a afirmação da dignidade humana.”

Solidariedade e preocupação
O cientista político Vicente Ferraro, pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia – seção Rússia e Eurásia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, destaca dois aspectos da premiação deste ano. “Em primeiro lugar, a academia sueca quis mostrar que também está envolvida na onda de solidariedade à Ucrânia, um movimento muito forte no Ocidente”, afirma. “Além disso, quis chamar a atenção para os regimes autoritários do chamado Espaço Pós-soviético, formado por ex-repúblicas da URSS, demonstrando uma preocupação de que o autoritarismo na região representa não apenas uma ameaça às próprias populações desses países, mas também à estabilidade e à paz mundial – como a invasão da Ucrânia por Putin evidenciou.”

Ferraro diz que o prêmio não deverá ter muita repercussão na Rússia, onde os grandes meios de comunicação são controlados pelo governo, mas pode manchar ainda mais a reputação do país no exterior ao apontar para a repressão e violações de direitos humanos do regime de Putin.

O pesquisador estudou em seu doutorado como conflitos impactam regimes políticos. O foco do trabalho foram as guerras separatistas da Chechênia, ocorridas na região russa de mesmo nome nos anos 1990 e 2000. Também pesquisa o conflito no Donbass, área do leste ucraniano parcialmente dominada por grupos separatistas pró-Rússia desde 2014 e hoje invadida pelas tropas de Moscou.

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.

Republicar