A costureira Felipa de Sousa, de 35 anos, não escapou ilesa por ter manifestado seus desejos. Considerada culpada de “diversos namoricos com outras mulheres”, ela foi a primeira lésbica condenada no Novo Mundo. Em consequência do castigo imposto pelo visitador do Santo Ofício em Salvador, em 1591, Sousa seguiu acorrentada do Terreiro de Jesus até a Sé da Bahia, “onde, vestida simplesmente com uma túnica branca, descalça, com uma vela na mão, defronte às principais autoridades eclesiásticas e civis, ouviu sua ignóbil sentença”. Em seguida foi açoitada enquanto escutava o meirinho declarar seu crime, o do “pecado nefando de sodomia com mulheres”. E concluía: “Que seja degredada para todo o sempre para fora desta capitania”.
O caso da costureira da Bahia é narrado pelo antropólogo Luiz Mott no primeiro dos 24 ensaios inéditos de pesquisadores de estudos de gênero e sexualidade coletados na antologia Novas fronteiras das histórias LGBTI+ no Brasil (editora Elefante, 2023). O livro é um esforço para “pular o muro da universidade”, nas palavras do historiador Paulo Souto Maior, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que organiza a publicação com o advogado Renan Quinalha, especialista em direitos humanos e professor de direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A estrutura da coletânea revela as intenções da dupla: romper as fronteiras históricas, territoriais e temáticas que confinam a compreensão da vivência LGBTI+ (sigla para designar, entre outras, pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e intersexo) no país. Esses recortes dão título às três seções em que os textos se distribuem.
A primeira fronteira questionada é a histórica. No abre-alas da antologia está Mott, um dos principais nomes do movimento gay no Brasil e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) – atualmente orienta alunos de pós-graduação na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). No texto “História cronológica da homofobia no Brasil: Das capitanias hereditárias ao fim da Inquisição (1532-1821)”, o antropólogo percorre a documentação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal, recolhido no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, para contar histórias de sodomitas, como eram chamados na época aqueles que fugiam do padrão heterossexual.
“Mais de 500 processos estão lá, todos digitalizados. É o maior acervo mundial do dia a dia dessa população naquele período”, afirma Mott. Segundo o pesquisador, embora a Inquisição espanhola tenha sido mais ampla, com tribunais no México, no Peru e na Colômbia – ao contrário do Santo Ofício português, que não instalou cortes no Brasil –, os relatos não eram preservados na íntegra. Os espanhóis, observa ele, resumiam os processos. “Em Portugal encontrei até mesmo cartas de amor”, conta. No artigo, Mott elenca os casos em quatro categorias: sodomitas do Brasil; sodomitas portugueses degredados para o Brasil; residentes na colônia confessos e acusados de sodomia; e réus do crime de sodomia do Brasil encarcerados e sentenciados no tribunal de Lisboa. O texto traz ainda uma cronologia dos principais fatos ligados à homossexualidade e à homofobia no Brasil inquisitorial.
O artigo de Mott faz jus ao que os organizadores pediram: resumir, de forma acessível para um público amplo, o resultado de suas pesquisas. A intenção de Souto Maior e Quinalha foi reunir os efeitos do crescimento e da diversificação dos estudos de gênero e sexualidade no país, sobretudo nos últimos 20 anos. De acordo com a dupla, esse incremento acompanha os avanços no marco legal e jurídico do que, na introdução do livro, chamam de “processo de cidadanização de pessoas LGBTI+”, ocorrido na última década.
No prefácio, o brasilianista James Green escreve que a antologia é a realização de seu “sonho do começo dos anos 2000 – ver dezenas de livros, centenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado e milhares de acadêmicos produzindo pesquisas” no país. O historiador, à frente da Iniciativa Brasil na universidade americana Brown e ligado ao ativismo LGBTI+, viveu no país entre 1976 e 1982. Na década de 1990 fez seu doutorado na Universidade da Califórnia (Ucla), que originou o livro Além do Carnaval – A homossexualidade masculina no Brasil do século XX (Editora Unesp, 2000). Na ocasião, como recorda no mesmo texto, “havia um artigo e três livros” que serviram de referência para escrever a tese. Green foi o responsável por localizar um estudo pioneiro na área de ciências sociais, escrito pelo sociólogo José Fábio Barbosa da Silva (ver Pesquisa FAPESP nº 113). A monografia, que traçava o perfil dos homossexuais masculinos de classe média e de elite na São Paulo da década de 1950, foi defendida em 1960, na Universidade de São Paulo (USP), para uma banca composta pelos sociólogos Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni (1926-2004) e Florestan Fernandes (1920-1995), que orientou a pesquisa. Em 2005 o trabalho foi publicado no livro Homossexualismo em São Paulo e outros escritos (Editora Unesp), organizado por Green e pelo antropólogo Ronaldo Trindade.
A multiplicação recente de abordagens acadêmicas sobre a comunidade LGBTI+ não reflete, evidentemente, a sua existência social. Para Remom Matheus Bortolozzi, do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), “a grande ironia da história é falar ‘no meu tempo não existia’”. Ele é autor de “Por entre melindrosas, almofadinhas e transformistas do Triângulo: Novos gêneros e sexualidades na Belle Époque paulistana do início do século XX”, que também integra o eixo histórico da antologia.
A partir de páginas de jornais e outros periódicos, o artigo trata, sobretudo, da reação social a mulheres e homens, as melindrosas e almofadinhas do título, cujos códigos indicavam uma inversão de gênero. Como escreve o pesquisador, “a moda dos anos 1920, fundamental para a cultura das melindrosas, foi marcada por uma silhueta esguia, retilínea […] e pela influência do vestuário masculino. As mulheres do período seguiam uma androgenia ou ‘masculinização’ no vestuário que se dava ao não valorizar o busto e a cintura e ter o cabelo cortado curto”. No caso dos almofadinhas, as publicações do período destacavam “a elegância da indumentária e o uso de maquiagens como batom, rouge e pó de arroz, além de unhas feitas e pés tratados”, bem como dos “maneirismos afeminados, da delicadeza, de ser belo e encantador, além da fala em falsete, do requinte da educação e do apreço que recebem das mulheres”.
“No começo do século, essas identidades se associavam ao anseio de ser moderno, europeu, de não ser tradicional, quando São Paulo aspirava ao cosmopolitismo”, analisa Bortolozzi. Trata-se de identidades culturais que não necessariamente estão ligadas à homossexualidade. “Naquele momento, a medicina social moldava o olhar médico, jurídico e policial, abrindo espaço para a formação institucional de LGBTfobia”, afirma o pesquisador.
Além de um dos organizadores da obra, Souto Maior é coautor de artigo presente na segunda seção, “Fronteiras territoriais”, dedicada à cena LGBTI+ em lugares como os estados de Mato Grosso e Rondônia. No texto, que assina com Bruno Silva de Oliveira, mestre em história pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Souto Maior aborda a experiência de homens gays e travestis na cidade de Campina Grande (PB) nas décadas de 1970 e 1980. “É recorrente no imaginário LGBTI+ o que o filósofo francês Didier Eribon chama de ‘a fuga para a cidade’, com o anonimato dos grandes centros urbanos permitindo a essas pessoas viverem e expressarem suas sexualidades”, diz Souto Maior. Essa “fuga”, segundo ele, não significa que inexistam espaços no interior do país ou nas capitais fora do Sudeste para a vivência dessa sociabilidade.
O artigo recupera a história de espaços públicos e privados que constituíram pontos de encontro desses grupos, como a Toca do Caranguejo, bar que funcionou na periferia da cidade entre 1980 e 2004, que realizava anualmente o concurso Miss Campina Grande Gay. Esse convívio, contudo, foi afetado pela epidemia da Aids. A síndrome, que tivera seus primeiros casos diagnosticados no Brasil em 1983, foi tratada no cenário de Campina Grande inicialmente como uma doença importada por quem viajava para fora do país. Só a partir de 1985 começou a ganhar menção na imprensa local, tornando-se motivo de pânico e desconfiança na cidade. Os sintomas descritos pela imprensa passariam “a funcionar como uma tatuagem em quem possuísse a doença, denunciando quase automaticamente a sexualidade”, escrevem os autores.
Entre os primeiros estudos acadêmicos sobre a cena homossexual da cidade paraibana figura a dissertação de mestrado da historiadora Kyara Maria de Almeida Vieira, defendida na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), em 2006. Vieira escreve, com a historiadora Rozeane Porto Diniz, um dos artigos do terceiro eixo da antologia, sobre as fronteiras temáticas. As pesquisadoras traçam um diálogo entre suas teses de doutorado, desenvolvidas respectivamente na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2014, e na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em 2017, em que abordaram representações literárias das lesbianidades.
O artigo parte da premissa de que “o que a história não diz, não existiu” para analisar os cordéis O homossexual (2010), de Raimundo Nonato da Silva, e A confusão da sapatão com a ronda do quarteirão (2008), de Jair Moraes, bem como o romance Eu sou uma lésbica (1981), de Cassandra Rios (1932-2002), escritora de grande alcance popular, que viveu exclusivamente de direitos autorais de seus livros.
Na opinião de Vieira, embora os cordéis não reflitam “todas as transformações ocorridas ao longo dos últimos 70 anos” para a população LGBTI+ no país e lancem mão de uma linguagem estereotipada por meio de termos como “sapatão”, essas obras literárias populares nomeiam e dão visibilidade à experiência lésbica. “Há neles a representação, mas não representatividade”, observa a pesquisadora, que atualmente leciona na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa).
Já o romance de Cassandra Rios, diz a historiadora, questiona códigos morais, além de preceitos científicos e religiosos para falar do desejo entre mulheres em plena ditadura militar (1964-1985). A história foi publicada originalmente como folhetim, em 1980, em uma revista masculina. No ano seguinte, o livro, que narra a trajetória de Flávia e o desabrochar de sua sexualidade ainda na infância, saiu pela editora Record. Em 2006, ganhou reedição da Azougue Editorial. Trata-se da única obra da autora paulistana a reivindicar, no título, a sexualidade da protagonista.
Em outro artigo que integra o eixo das fronteiras temáticas da antologia, os antropólogos Paulo Victor Leite Lopes e Silvia Aguião discutem a questão da homossexualidade em favelas a partir de suas dissertações de mestrado com foco no cenário carioca. Aguião, que defendeu a dissertação em saúde coletiva na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 2007, deteve-se em Rio das Pedras, favela que surgiu no final dos anos 1960 na capital fluminense sendo marcada pela atuação da milícia (na época chamada de “polícia mineira”), que inibiu a atuação de traficantes de drogas armados no local. “A ausência do tráfico armado não significa a conformação de um território livre de poderes coercitivos, que, no caso, são exercidos pela milícia”, diz a pesquisadora. “Ao longo da pesquisa foi possível perceber a existência de lugares tidos como mais ou menos confortáveis para pessoas não heterossexuais em Rio das Pedras. Demonstrar ‘excessivamente’ a orientação sexual era considerado falta de respeito e um tipo de comportamento sujeito a sanções por parte da milícia.”
A antropóloga começou a investigar Rio das Pedras com o recorte de homossexualidade, raça e mestiçagem ainda no trabalho de conclusão do curso de ciências sociais na Uerj, em 2003. Durante a pesquisa de mestrado, viveu por quatro meses na favela, no segundo semestre de 2006. Na ocasião, ela pendurou um cartaz na quitinete que alugou com a frase “Abaixo a homofobia”. “Meu convívio mais próximo em Rio das Pedras era com pessoas não heterossexuais, como gays, lésbicas e travestis, e, quando entravam na minha casa, costumavam me perguntar o que significava homofobia.” Na época, essa não era uma palavra de uso comum, segundo Aguião, hoje pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro-Cebrap). Ela diz que naquele momento a discussão sobre as ações afirmativas e a defesa de direitos relacionados a gênero e sexualidade despontava nas universidades. “Eu ficava intrigada em saber como isso chegava ao cotidiano da favela.”
A questão inspirou a pesquisa de doutorado que realizou entre 2008 e 2013 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com apoio da FAPESP. No estudo, Aguião investigou de que forma os processos políticos em curso no país no início do século XXI tornaram possível a constituição da população, que naquele momento era designada LGBT, como sujeitos de direito no plano governamental brasileiro. Entre as iniciativas nesse sentido figuraram, por exemplo, a criação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, em 2001, e o lançamento do programa federal Brasil sem Homofobia (2005). “Se quisermos entender a produção do sujeito de direito nesse âmbito, precisamos necessariamente olhar para a relação mutuamente produtiva e dependente entre essas três esferas: movimentos sociais ligados à causa LGBTI+, produção acadêmica e Estado”, defende a antropóloga, cuja tese foi publicada em livro pela Eduerj, em 2018, que pode ser baixado gratuitamente. “Em função da participação nas discussões governamentais, os movimentos sociais ligados à causa LGBTI+ expandiram, por exemplo, os contatos e capilarizaram redes de atuação. Esse modo de fazer política, de se organizar, é um legado que não se perde, mesmo em cenários hostis à causa.”
Os organizadores da antologia também veem como fundamental o elo entre produção acadêmica e ativismo, com os frutos dos estudos traduzindo-se em políticas públicas para a população LGBTI+. “Nossa principal intenção não é simplesmente contar a história por um desejo museológico de preservação do passado”, diz Quinalha. “Para serem elaboradas, as políticas públicas precisam de informação técnica, dados e análises. Nesse sentido, acho que o livro pode contribuir, por exemplo, para quem for pensar essas propostas em termos locais e regionais”, finaliza.
Coletânea reúne contos escritos entre os séculos XIX e XX no país, período em que dissidências sexuais e de gênero eram vistas como doenças
Identificar na produção literária brasileira como o discurso científico passou a dominar as representações de dissidências sexuais e de gênero, sobretudo a partir do final do século XIX, e como esse discurso começa a se dissipar em meados do século XX. Essa é a meta da coletânea O homem que passou por baixo do arco-íris e outras histórias: Antologia da diversidade sexual e de gênero em contos brasileiros de 1880 a 1950, organizada por César Braga-Pinto, professor de Literatura Brasileira e Comparada da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos.
O livro, que deve sair em agosto, no Brasil, em coedição da editora Alameda e do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana da Universidade de Pittsburgh, dos Estados Unidos, reúne 73 contos sobre dissidências sexuais e de gênero. Entre eles está “A causa secreta” (1885), de Machado de Assis (1839-1908), que trata de sadismo, mas, no ponto de vista de Braga-Pinto, também de homoerotismo. Outro exemplo é “Acauã” (1892), de Inglês de Souza (1853-1918), inspirado em uma lenda do folclore amazônico sobre o pássaro do título, mas entendido pelo organizador como uma narrativa do desejo entre duas mulheres. Já o conto que batiza a antologia, “O homem que passou por baixo do arco-íris” (1934), escrito por D. Martins de Oliveira (1896-1975), fala de uma personagem transgênero no sertão da Bahia e nunca publicado em livro. Trata-se de um tema atípico na trajetória do autor baiano, cuja obra literária mais conhecida é o chamado ciclo de ficção do São Francisco, composto por títulos como Marujada (1931) e No país das carnaúbas (1933).
Braga-Pinto incluiu na coletânea seis contos do médico Gastão Cruls (1888-1959). Entre eles está “G.C.P.A.” e “A noiva de Oscar Wilde”, que Cruls publicou na Revista do Brasil, de Monteiro Lobato (1882-1948), respectivamente, em 1917 e 1919, com o pseudônimo Sérgio Espínola. Como relata Braga-Pinto na antologia, o escritor Lima Barreto (1881-1922) reagiu de forma negativa ao tema da segunda história, que também saiu no livro Coivara (1920): “O que estranho no autor de um livro tão digno, como é Coivara, é a admiração que parece ter por Oscar Wilde [1854-1900] e se traduz em frases quentes no seu conto ‘A noiva de Oscar Wilde’ […]. Toda a sua jactância [de Wilde], todo o seu cinismo em mostrar-se possuidor de vícios refinados e repugnantes”, registrou em crítica de 1921. Outro conto de Cruls presente na seleta é “Do outro lado”, narrativa de teor homoerótico que fala sobre um médico que se envolve com o assistente. “Os textos de Cruls foram editados pela última vez em 1951. Hoje são pouco conhecidos e de difícil acesso”, diz o pesquisador.
Projeto
A construção dos LGBT como sujeitos de direitos diferenciados na esfera governamental brasileira (nº 09/09786-1); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Maria Filomena Gregori (Unicamp); Bolsista Silvia Aguião Rodrigues; Investimento R$ 118.723,19.