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Sociologia

Números para mudar o Brasil

Núcleo de Estudos abastece autoridades, pesquisadores e segmentos da sociedade com dados sobre violência

Uma pesquisa concluída no final do ano passado constatou que os assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil quadruplicaram no período de 1980 a 2002. O levantamento pretendeu preencher lacunas no conhecimento sobre violência contra brasileiros de 0 a 19 anos. A taxa passou de 3,1 mortes para 12,6 por 100 mil crianças e adolescentes. Em números absolutos, os assassinatos aumentaram de 1.825 para 8.817 em 22 anos. Quase 90% das mortes ocorreram na faixa etária dos 15 aos 19 anos, com predominância do uso de armas de fogo (59%). A situação é mais grave em São Paulo (36,8% dos homicídios no país) e no Rio de Janeiro (17%).

Desde sua criação, em 1987, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) tem se preocupado em estudar e monitorar a evolução dos homicídios no Brasil, em especial a violência fatal nos grupos etários jovens. Para tanto vem desenvolvendo metodologia aplicada no tratamento estatístico e qualitativo de série de dados, de que têm resultado periódicos relatórios, inclusive participação destacada no Relatório mundial sobre violência contra a criança (2006), editado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e coordenado pelo professor Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador do NEV-Cepid/USP. Há mais de duas décadas, sua tarefa tem sido árdua, porém fundamental para alimentar estudos, pesquisas e suprir as autoridades na formulação ou aprimoramento de políticas para combater a violência. Tanto quanto apurar, o desafio é disseminar essas informações, devido à natureza dos objetos com que o centro trabalha – violência, direitos humanos e democracia.

Os dados do NEV se tornaram uma ferramenta indispensável para pesquisadores e comunidade acadêmica, formuladores de políticas públicas e operadores do sistema de Justiça, legisladores e formadores de opinião pública, representantes da sociedade civil organizada, educadores e público em geral. Para tanto, de acordo com o público desejado, foram identificados os meios mais adequados para atingi-los das formas mais eficientes possíveis. Na área acadêmica, explica o coordenador Sérgio Adorno, isso é feito por diversos meios, como a publicação de artigos em revistas e periódicos acadêmicos, livros e capítulos de livros nacionais e internacionais. Os pesquisadores do núcleo também participam de seminários e congressos, oficinas e encontros no Brasil e no exterior. Ao mesmo tempo, organizam eventos semelhantes, como o recente “Responsabilidade e julgamento em Hannah Arendt”, ministrado por Bethânia Assy, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ainda na academia, o núcleo participa do corpo editorial de periódicos, como Social Identities (A journal of study of race, nation and culture) e a revista Análise Social, publicação científica do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; atua comopeer-reviewers em publicações nacionais e internacionais; coleta e organiza dados primários por meio do Banco de Dados da Imprensa sobre as graves violações dos direitos humanos – que incluem linchamentos, execuções e uso de força letal pela polícia, desenvolvendo metodologias próprias de armazenamento e tratamento de informações extraídas da imprensa periódica. Mantém também bancos de dados sobre as atitudes, normas culturais e valores em relação à violência em dez capitais brasileiras; sobre a legislação, segurança pública e justiça criminal no estado de São Paulo de 1822 a 2000; e sobre impunidade penal para crime violento registrado no município de São Paulo, de 1991 a 1997.

Na mesma direção, o NEV contribuiu para a criação da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (ANDHEP), cuja presidência e secretaria executiva se encontram sob a responsabilidade de pesquisadores deste Cepid. Igualmente, o coordenador do NEV, professor Sérgio Adorno, é o atual coordenador da Cátedra Unesco/USP de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância. Outra atuação diz respeito ao desenvolvimento de material didático adaptado para curso a distância pela internet, como o de prevenção da violência de jovens para pós-graduados em saúde pública, organizado e implementado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), assim como a colaboração para o relatório de desenvolvimento humano Racismo, pobreza e violência (2005), editado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Políticas
Fora da universidade, o foco maior do núcleo é abastecer administradores e formuladores de políticas públicas e operadores do sistema de justiça. Nesse segmento, a disseminação de informações é realizada de diversas formas. Primeiro, pela participação de pesquisadores e coordenadores do NEV em seminários, congressos, oficinas, nacionais e internacionais. Outra atividade é a participação em fóruns, como o Fórum Metropolitano de Segurança Publica, com o objetivo de fomentar e aumentar a articulação entre diferentes setores públicos.

Para esse público, o NEV produz material para a atualização profissional a respeito das experiências internacionais em gestão pública de segurança, justiça e direitos humanos. Como, por exemplo, as séries de livros Polícia e sociedade e Direitos humanos, editadas pela Edusp e realizadas com apoio da Fundação Ford e da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Adorno destaca também a publicação de relatórios como o Relatório sobre armas de fogo, Relatório de homicídios de crianças e jovens no Brasil: 1980-2003 e os Relatórios nacionais sobre os direitos humanos no Brasil (1º ao 3º Relatórios). Cursos para aprimoramento de gestão pública são outra forma de disseminação do trabalho do NEV, com a participação de professores da USP (FFLCH, FEA, Poli-Produção), FGV-SP, PUC-RS e Cândido Mendes-RJ, além dos experts estrangeiros Linn Hammergren (Banco Mundial), René Levi (pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, CNRS) e Paulo Gomes, subtenente da polícia pública de Setúbal, Portugal. Um exemplo recente foi o “Curso de gestão organizacional em segurança pública e justiça criminal”, que formou duas turmas de gestores públicos – participaram oficiais da Polícia Militar, delegados da Polícia Civil, promotores de Justiça do Ministério Público estadual e juízes de direito.

O núcleo também produz subsídios para definição de políticas de prevenção da violência nos paises andinos junto à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (GTZ). Na linha de manuais para treinamento, destacam-se o Manual de treinamento de policiais no atendimento de casos de violência contra mulheres, produzido em parceria com a ONU. Por último, membros do núcleo participam de comissões de acompanhamento e monitoramento de atividades dos operadores técnicos e não-técnicos do sistema de justiça criminal.

Segundo Adorno, para os legisladores e formadores de opinião pública os principais meios utilizados para divulgar os estudos do NEV têm sido entrevistas e artigos para a imprensa (jornais, revistas, redes de televisão e rádio); participação em mesas-redondas, audiências e debates públicos; divulgação das publicações e debate dos resultados alcançados com os projetos de pesquisa, em especial aqueles que envolvem matéria legislativa em discussão nas câmaras municipais, assembléias legislativas e Congresso Nacional. Neste caso, os exemplos de maior repercussão foram o referendo das armas ou a discussão da Lei Maria da Penha, que regulamenta a violência contra mulheres.

Lideranças
Outro bloco atendido pelo núcleo com suas informações reúne lideranças da sociedade civil organizada. Isso tem sido feito de diversas formas: presença de membros do NEV em conselhos diretores de entidades da sociedade civil voltadas para a promoção dos direitos humanos; promoção de grupos que atuam para a redução da violência e elaboração de políticas públicas na área da segurança, entre os quais, o Instituto São Paulo contra a Violência, a Comissão Teotônio Vilela, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).

E não é só isso. A instituição implementou com a sociedade civil a Rede de Observatórios em Direitos Humanos, um projeto de formação de jovens para o levantamento de informações qualitativas sobre a situação dos direitos humanos em comunidades afetadas pelos problemas da violência e da pobreza. Assim, os jovens são capacitados neste tema e, ao mesmo tempo, realizam a pesquisa nas áreas em que vivem, divulgando os resultados para outros moradores e para a opinião pública.

Para os educadores, as principais estratégias de disseminação adotadas foram a produção de livros de amplo acesso ao público. Dentre eles, O que é violência (Pinheiro e Assis), da série Folha Explica; e Violência nas escolas: um guia para professores e pais, em parceria com a ANDHEP e editado pela Imprensa Oficial. Outras atividades são a participação de membros da equipe do NEV em seminários, congressos, oficinas e encontros, nacionais e internacionais, organizados por educadores; realização de cursos, como “Violência, direitos humanos e educação para a cidadania”, semi-presencial, e o curso a distância de gestores em direitos humanos.

No caso do público em geral, a propagação de dados se foca principalmente na imprensa de amplo alcance, por meio de: entrevistas em rádio, TV, jornais e revistas. Ao longo de 2006, foram ao menos 41 entrevistas/participações em debates e painéis na televisão; 40 entrevistas na imprensa nacional e internacional; 34 entrevistas para rádios; 11 entrevistas para revistas nacionais e internacionais; e 24 para agências de notícias e sites da internet. Parte dos textos se encontra disponível na seção Clipping do website do NEV. Por fim, a produção de livros de amplo acesso ao público, como os citados volumes da série Folha Explica e o guia sobre violência nas escolas.

Proteção
Desde sua criação, o NEV tem procurado, em virtude dos problemas sociais a que tem se dedicado, aliar a pesquisa científica inovadora e de impacto à intervenção no debate público, à educação para os direitos humanos, contribuindo para a redução de preconceitos, e à formulação de políticas públicas de proteção dos direitos humanos, que incluem o direito de todos à segurança pública e a contenção dos crimes no contexto do Estado democrático de direito. A atividade de intervenção para a proteção dos direitos humanos do NEV está vinculada, desde o início, ao trabalho desenvolvido pela Comissão Teotônio Vilela, criada em 1982 pelo senador Severo Gomes para investigar um massacre que ocorrera no hospital psiquiátrico em Franco da Rocha. Entre os membros fundadores do grupo estavam o padre Agostinho Duarte de Oliveira, Antonio Candido, Fernando Gabeira, Fernando Millan, Helio Bicudo, José Baptista Breda, José Gregori, Paulo Sérgio Pinheiro e o senador Teotônio Vilela.

No ano seguinte, o grupo se transformou numa comissão e deu início ao trabalho de combate às violações praticadas em instituições totais, especialmente o sistema penitenciário, para crianças e adolescentes e asilos para doentes mentais. Logo se percebeu a necessidade de desenvolver um trabalho de pesquisa em paralelo e, em 1985, por intermédio de Paulo Sérgio Pinheiro, iniciou-se o processo de criação de um centro de pesquisas sobre criminalidade e direitos humanos na USP. Com a parceria do professor do Departamento de Sociologia Sérgio Adorno, em 1987, nasceu o Núcleo de Estudos da Violência, vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, grupo ao qual, pouco depois, veio se associar Nancy Cardia, presentemente co-coordenadora do NEV-Cepid/USP.

No momento, o trabalho é desenvolvido por mais de 40 pessoas altamente capacitadas, entre pesquisadores, consultores, assistentes, assessores e técnicos. Os dados são coletados por meio de pesquisas de campo, dados
de ONGs, fontes documentais e indicadores proporcionados por instituições internacionais e órgãos do governo (ministérios, secretarias estaduais e municipais, agências que compõem os sistemas de segurança pública e justiça, de saúde coletiva e de educação etc.). No seu site, o NEV Cidadão se tornou uma das páginas mais visitadas da USP. A proposta do website é reunir e centralizar informações que promovam, garantam e fortaleçam os direitos da população. Para isso, busca agrupar de forma clara e simples informações sobre equipamentos públicos, serviços e programas, geridos pelo governo ou por organizações não-governamentais, gratuitos ou de baixo custo, nas áreas de educação, saúde, trabalho, renda, cultura, lazer, segurança, justiça e cidadania.

Sérgio Adorno observa que os estudos e pesquisas do NEV podem não sensibilizar os poderes públicos na velocidade que se deseja, mas as conquistas nesses 20 anos foram muitas e relevantes e de grande impacto na opinião pública. Como, por exemplo, o compromisso dos governos, resultante da Cúpula Mundial dos Direitos Humanos (ONU, Viena, 1993) de formularem e implementarem Plano Nacional de Direitos Humanos que habilitasse autoridades a avaliar avanços e desafios, inclusive os Objetivos do Milênio. Outro avanço tem sido a reforma do aparato policial, focado sobretudo no atendimento comunitário.

O sociólogo explica que o trabalho da instituição não encontra dificuldades decorrentes, por exemplo, da ausência de experiência científica acumulada. Hoje, após 20 anos de existência, essa experiência está lastreada em estudos e pesquisas, publicadas através de prestigiados veículos de divulgação e freqüentemente citadas como referência, assim como a presença do NEV-Cepid não apenas no debate público mas também nos planos e projetos, governamentais e não-governamentais de promoção de direitos humanos. Porém a instituição ainda encontra dificuldades, entre as quais a confiabilidade das fontes de informação, não raro dificultada pelos obstáculos ao acesso às fontes oficiais de segurança pública. Do mesmo modo, as resistências de alguns setores da sociedade contra direitos humanos, motivadas por preconceito ou desconhecimento.

Os dados do NEV podem ser acessados através do site e também do Consórcio de Informações Sociais, CIS.

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