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Pesquisa na quarentena

“O ambiente acadêmico que propicia a troca de experiências e ideias foi quase impedido pela pandemia”

Em escritório montado em casa, o físico Rafael Ribeiro terminou e defendeu a tese de doutorado enquanto participa do desenvolvimento de um instrumento para o Telescópio Gigante de Magalhães, em construção no Chile

Escritório em casa: reuniões internacionais e defesa de tese a partir de São Carlos, no interior paulista

Arquivo pessoal

Quando a pandemia começou, eu estava escrevendo a tese de doutorado. Ao mesmo tempo, atuava como projetista óptico do GMACS [Espectrógrafo Astronômico e Cosmológico de Múltiplos Objetos] do Telescópio Gigante de Magalhães [GMT], em construção no Chile, como integrante do IAG-USP [Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo], participante brasileiro com apoio da FAPESP. No final de janeiro voltei de São Paulo para São Carlos [SP], onde moro, para me concentrar na escrita. Quando a pandemia começou, algumas semanas depois, eu já me preparava para o home office. Minha companheira e eu montamos um escritório no quarto que usávamos para hóspedes em nosso pequeno apartamento de dois quartos.

Minha tese foi sobre o desenvolvimento óptico conceitual de um instrumento para o GMT, o primeiro de uma geração dos chamados telescópios gigantes – o espelho primário terá cerca de 25 metros [m] de diâmetro, enquanto hoje os espelhos principais dos telescópios terrestres têm por volta de 10 m. Mas o telescópio precisa de instrumentos científicos e alguns já precisarão estar instalados quando ele for inaugurado, o que está previsto para 2029.

O GMACS, que tem vários subsistemas ópticos, como colimadores [dispositivo usado para mudar a direção de uma luz divergindo de uma fonte pontual para um feixe paralelo] e câmeras, é um desses instrumentos. O desenvolvimento está em etapa conceitual, por isso nada exigiria que eu estivesse na universidade para realizar minha pesquisa. Mesmo assim, foi anticlimático fazer a defesa de doutorado aqui no meu quarto, em setembro, mas tive bons retornos dos membros da banca e consegui fazer melhorias no trabalho como um todo.

Também participo semanalmente de reuniões com o grupo do consórcio internacional do GMACS, cujos integrantes estão nos Estados Unidos, na Coreia do Sul e na Austrália, por isso esses encontros sempre foram remotos. Mas um ponto negativo da pandemia foi perder o acesso direto aos colegas de nosso grupo na USP. O ambiente acadêmico que propicia a troca de experiências e ideias foi quase totalmente impedido. Hoje preciso mandar recado por WhatsApp ou e-mail para perguntar se a pessoa tem tempo de conversar, é algo frio e formal.

Me especializei em desenho óptico aplicado à astronomia instrumental para o desenvolvimento de instrumentos como câmeras e espectrógrafos. Preciso de uma infraestrutura computacional adequada e softwares específicos para desenvolver e fazer as otimizações dos desenhos ópticos. Em casa uso um notebook que está sobrecarregado, entretanto tenho acesso a um computador na USP adquirido para o projeto, com tudo o que preciso. O acesso remoto já existia, mas com a pandemia deixou de ser uma mera vantagem e tornou-se necessidade.

O grupo de pesquisa em instrumentação do IAG tem engenheiros trabalhando em engenharia mecânica, optomecânica e de sistemas, além de astrônomos. É um grupo de aproximadamente 15 pessoas e nos reunimos remotamente toda semana para discutir as atividades, sob orientação de Laerte Sodré e Claudia Mendes de Oliveira, minha orientadora de doutorado. O coordenador era o João Steiner, que faleceu durante a pandemia – uma perda gigantesca para a ciência do Brasil. Foi muito triste, nem pude ir ao velório, que foi restrito.

A coordenação da colaboração internacional foi uma preocupação inicial do investigador principal do espectrógrafo óptico do GMT, Darren DePoy, da Universidade do Texas A&M. Coordenar equipes espalhadas pelo globo foi um grande desafio e um dos bons resultados, porque deu bastante certo. Vamos aplicar o que aprendemos nas próximas fases. Tem vantagens: por exemplo, trabalho diretamente com um projetista óptico da Austrália, Damien Jones, e temos quase 12 horas de diferença de fuso horário. Eu mandava e-mails para ele antes de dormir, no final da noite, e quando acordava a resposta já tinha chegado, porque ele trabalhava enquanto eu dormia.

O desenvolvimento exige muito trabalho e planejamento nas etapas iniciais para ver se tudo funciona no papel. São inúmeras fases antes de começarmos a construir, comprar os componentes, realizar montagens e testes. Uma das câmeras que estou desenvolvendo tem oito lentes e cada uma delas custará cerca de US$ 200 mil. Se colocar uma lente a mais, acrescento esse valor ao orçamento, então preciso ter certeza de que seja necessária. O mesmo rigor vale para qualquer outra decisão técnica.

Também queremos fazer crescer ainda mais e institucionalizar o grupo de instrumentação dentro do IAG, no Departamento de Astronomia há bastante demanda. Vemos que é uma oportunidade para racionalização dos recursos e prover assistência para outros pesquisadores. Temos parcerias com outros professores do departamento, colaboramos com o Laboratório Nacional de Astrofísica, em Itajubá [MG], e com outros astrônomos do Brasil.

Temos conseguido uma boa visibilidade no exterior com a participação nesses projetos grandes, os parceiros internacionais não veem mais o Brasil como uma criança engatinhando na área. Espero que seja o começo de um caminho longo de protagonismo do país na área de instrumentação astronômica. Temos recursos humanos e infraestrutura física interessante, como o Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], o Laboratório Nacional de Astrofísica e empresas que podem prover serviços e produtos. É essencial que o projeto também contribua para o desenvolvimento das empresas paulistas e nacionais. Por estarmos perto do Chile, um dos sítios mais usados para astronomia de solo, parte do equipamento pode ser feita no Brasil, até por facilidade logística.

Quando terminar a pandemia, devemos manter o trabalho remoto em parte dos dias da semana. Em São Paulo perdemos muito tempo com transporte e muitas vezes é possível realizar o trabalho em casa, mas não podemos perder o contato semanal com os outros pesquisadores. Vamos absorver essa nova prática, dentro da possibilidade de cada um – um colega nosso faz todas as reuniões pelo celular, não é a forma adequada.

Também enfrento meus desafios. Moro próximo a uma passagem de nível da linha de trem, aqui o maquinista é obrigado a apitar. É ensurdecedor, quando estou em videoconferência fico com o dedo pronto para desligar o microfone. O trem passa, a campainha toca, o gato mia com fome. São detalhes que não existem na universidade.

Minha companheira é professora substituta da área de letras em Araraquara. A primeira aula que deu já teve que ser remota. Os alunos estão no primeiro ano e ela sente na pele as dificuldades que eles passam. Muitos não têm computador pessoal, é preciso adaptar a forma de ensinar à situação de cada um. Apesar de não termos condições ideais de trabalho, elas funcionam. Temos nossos notebooks com monitores acoplados e dividimos uma webcam, emprestada, entre os dois.

Não temos filhos, o que facilita bastante trabalharmos em casa. Mas depois de 10 meses, ainda não conseguimos definir bem o limite entre trabalho e lar. Muitas vezes passo na frente do escritório e de repente me vejo trabalhando tarde da noite, às 22h30. Nos cobramos diariamente para dar uns passos até a sala ou qualquer lugar que não o escritório, para sair do ambiente de trabalho e ir para o meio familiar. É importante tanto para termos eficiência no trabalho como na qualidade de vida, manter a sanidade.

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