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Ciência aplicada ao meio ambiente

O amigo da floresta

O biólogo Philip Fearnside defende o desenvolvimento sustentável da Amazônia

O pesquisador norte-americano, do Inpa: a favor de que a região se especialize em vender serviços ambientais

MAURÍCIO TORRESO pesquisador norte-americano, do Inpa: a favor de que a região se especialize em vender serviços ambientaisMAURÍCIO TORRES

Assim que concluiu a graduação em biologia no Colorado College, uma universidade privada do Estado do Colorado, o californiano Philip Martin Fearnside partiu para a Índia. Entre 1969 e 1971 foi voluntário da Peace Corps, uma agência federal dos Estados Unidos que promove ajuda humanitária e tecnológica para países pobres. No Estado do Rajastão, noroeste da Índia, não muito longe da fronteira com o Paquistão, aconselhou o governo local no manejo de peixes em reservatórios. Terminada a temporada asiática, retornou a seu país para começar o doutorado na Universidade de Michigan. Não que pretendesse ficar muito tempo por ali. Sua idéia era voltar em 1973 para a nação de Gandhi e adquirir o título acadêmico por meio de um trabalho sobre o número de pessoas que podem ser sustentadas indefinidamente em uma área com o emprego da tecnologia agrícola existente. Foi quando os reflexos de uma guerra mudaram o destino do ex-voluntário da paz. Em 1971, os Estados Unidos haviam apoiado o Paquistão no conflito que levou à criação do Estado de Bangladesh e os indianos, inimigos dos paquistaneses, num ato de retaliação, fecharam as fronteiras para os pesquisadores norte-americanos. Então Fearnside recorreu ao plano B: Amazônia.

Não há como saber se o biólogo, vencedor do Prêmio FCW na categoria Ciência Aplicada ao Meio Ambiente, teria sido tão bem-sucedido na Índia como acabou sendo no Norte do Brasil. Hoje, três décadas após desembarcar na região, Fearnside acumula experiência de campo – morou até em agrovilas à beira da Transamazônica para fazer seu doutorado – e saber científico sobre a Amazônia raramente encontrados em brasileiros.

Seu nome é referência internacional em muitos dos temas que tornam a grande mata tropical um assunto importante e polêmico, como a possível relação do desmatamento da floresta com as mudanças climáticas no planeta e o impacto da implantação de estradas, barragens e projetos agropecuários na região. Por seus trabalhos em prol do desenvolvimento sustentável, contra projetos ofensivos ao meio ambiente, como a construção da usina hidrelétrica de Balbina nos anos 1980, costuma ser atacado pelos defensores do progresso a todo custo, às vezes com tintas xenófobas. Desde 1978 cientista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus, Fearnside, aos 57 anos, já se acostumou com as críticas e refuta a imagem simplista de defensor da tese de que a Amazônia deve ser tratada como santuário. “Ao contrário do que afirmam alguns políticos, não existe mais gente dizendo que a Amazônia é intocável, que deveria ser um museu”, afirma.

Há quase duas décadas, o pesquisador defende a idéia de que a região deve se tornar uma vendedora de serviços para o planeta. De serviços ambientais, bem entendido. Um tipo de visão em que a floresta é mais valiosa para os habitantes da Região Norte em pé do que queimada ou desmatada, tanto do ponto de vista da ecologia como da economia. Não se trata apenas de preservar a mata por que esse complexo ecossistema é morada de uma rica biodiversidade de espécies vegetais, que, em tese, poderia ser explorada sem grande agressão ao meio ambiente por (agro)indústrias limpas ou laboratórios farmacêuticos. Para Fearnside, a floresta preservada, além de deixar de emitir poluentes decorrentes da queimada de suas árvores, retira da atmosfera grandes quantidades de carbono. O gás dióxido de carbono (CO2) é o principal poluente acusado de aumentar o efeito estufa, anomalia que já está alterando o clima em várias partes do globo. Mais dia, menos dia, prevê o biólogo, os países ricos, que despejam o grosso dos poluentes atmosféricos, terão de pagar para os brasileiros manterem a mata preservada. Essa seria uma das formas de as nações desenvolvidas evitarem mais agressões ao clima da Terra. “Vender serviços ambientais é como vender soja”, compara. “É um comércio.” No jargão do meio ambiental, essas hipotéticas transações costumam ser chamadas como o mercado internacional de carbono.

Fearnside numa madeireira do Pará: a floresta é mais valiosa em pé do que queimada ou desmatada

MAURÍCIO TORRESFearnside numa madeireira do Pará: a floresta é mais valiosa em pé do que queimada ou desmatadaMAURÍCIO TORRES

Como quase toda idéia referente à Amazônia, vender serviços ambientais é uma proposta controversa. Algumas questões precisam ser debatidas e equacionadas antes de a Amazônia se tornar uma vendedora de serviços ambientais. Quanto custarão esses serviços? Qual será o mecanismo comercial que vai regular esse comércio? Receber dinheiro do exterior para não queimar e cortar a Amazônia não fere a soberania nacional? Os países ricos concordarão em pagar um imposto ambiental em prol da Amazônia e outras áreas verdes do planeta? As perguntas não intimidam o biólogo do Inpa. “Ninguém sabe quanto poderia ser cobrado de um hipotético imposto ambiental, mas é verdade também que ninguém diz que a taxa deveria ser de 0%”, pondera. Para Fearnside, o mercado internacional de carbono só tende a se valorizar com o tempo. Por quê? Porque as outras formas de retirar CO2 da atmosfera seriam ainda mais caras, e porque o efeito estufa tende cada vez mais a se agravar. E o Brasil, se viesse a aderir a esse mecanismo, não estaria abrindo mão do controle sobre um pedaço de seu território. “Os contratos seriam por tempo determinado e o país poderia não renová-los depois de 10 ou 20 anos”, diz.

Talvez não seja prudente adiar por mais tempo esse debate na sociedade brasileira, o que não quer dizer, necessariamente, tomar partido a favor da venda de serviços ambientais. “Fearnside é um dos pesquisadores líderes na questão estratégica dos fluxos de carbono na Amazônia, com grande contribuição científica na quantificação de gases de efeito estufa provenientes de queimadas”, afirma Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). “Mas ainda é um pouco cedo para uma avaliação econômica e política sobre a adequação para o Brasil desse polêmico mercado internacional de carbono. Os vários agentes nacionais ainda têm que discutir melhor essa importante e delicada questão.” Como Fearnside, Artaxo participa do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), megaprojeto internacional de US$ 80 milhões que, desde 1999, reúne mais de 300 pesquisadores da América Latina, Estados Unidos e Europa, sob a liderança do Brasil.

Cerca de 16% da cobertura vegetal original da Amazônia já foi cortada. Segundo o biólogo do Inpa, as áreas desmatadas são mais do que suficientes para se manter uma agropecuária voltada à produção de alimentos para os 20 milhões de habitantes do Norte do país – e não para o mercado externo. “Não podemos estimular a produção de soja e gado para exportação. Isso leva à construção de obras de infra-estrutura que agridem o meio ambiente”, opina Fearnside. Apesar das resistências às suas idéias e das dificuldades de ser cientista no Brasil, ainda mais na Amazônia, fora do rico eixo Sul-Sudeste, o pesquisador norte-americano nem pensa em voltar em definitivo para sua terra natal. “Quando vou aos Estados Unidos, me sinto por fora das coisas”, diz. “Na questão das mudanças climáticas, eles são muito atrasados. Uma importante parte da população não acredita no efeito estufa.” Laços familiares também o prendem à terra que o acolheu há 30 anos. Sua mulher, a entomologista Neusa Hamada, também pesquisadora do Inpa, é brasileira, a exemplo das duas filhas. “Não é um sacrifício morar no Brasil”, avalia.

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