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MEDICINA

O ataque silencioso dos fungos

Espécies de Candida e Aspergillus causam infecções resistentes a medicamentos e matam mais que malária e tuberculose

É uma jaula de bichos perigosos. Em caixas metálicas dentro de um freezer a 80º Celsius negativos em um dos laboratórios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o infectologista Arnaldo Colombo mantém uma coleção com cerca de 4 mil amostras de leveduras e mil de fungos filamentosos colhidos de pacientes tratados em hospitais de todo o país. Os fungos eram considerados inofensivos até alguns anos atrás, mas – como resultado da redução das defesas naturais das pessoas, causada por doenças ou medicamentos – aos poucos se tornaram agressivos e estão se espalhando em silêncio e causando infecções graves, resistentes a antifúngicos, e fatais.

Entrevista: Arnaldo Lopes Colombo
00:00 / 09:12

Quase 4 milhões de pessoas no Brasil devem ter infecções fúngicas a cada ano, de acordo com um levantamento realizado por Juliana Giacomazzi, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Desse total, 2,8 milhões são infecções causadas por Candida e 1 milhão por Aspergillus, que avançam principalmente em pessoas com defesas orgânicas enfraquecidas em razão do uso de medicamentos contra rejeição de órgãos transplantados, câncer ou Aids, do uso intensivo de antibióticos ou de procedimentos invasivos como sondas e catéteres em unidades de terapia intensiva (UTI).

No mundo, o número de casos registrados de meningite causadas por Cryptococcus neoformans e C. gattii passou de poucas centenas na década de 1950 para o atual 1 milhão por ano, principalmente em pessoas com HIV/Aids. Estima-se que todos os fungos patológicos provoquem 11,5 milhões de infecções graves e micoses superficiais recorrentes, com 1,5 milhão de mortes por ano, mais que o total de óbitos decorrentes da malária e da tuberculose.

Aspergillus niger: em laboratório para identificação genética e testes de susceptibilidade a fármacos

LÉO RAMOSAspergillus niger: em laboratório para identificação genética e testes de susceptibilidade a fármacosLÉO RAMOS

“Sabe o que aconteceu neste caso?”, perguntou Colombo ao mostrar uma placa em que vários fármacos foram aplicados sobre amostras de uma variedade de um fungo recém-chegado ao seu laboratório para identificação e análise. “Nenhum fármaco funcionou e o paciente morreu em decorrência da infecção.” Várias espécies de fungos estão se mostrando resistentes aos poucos medicamentos usados para combatê-los. Em 2013 a equipe da Unifesp indicou a Candida glabrata como uma das mais preocupantes entre os casos de infecções hospitalares, por ter se mostrado resistente a quase todos os antifúngicos, começando pelo fluconazol, o mais usado, ocasionando uma taxa de mortalidade próxima a 50% em pessoas internadas em UTI. Duas espécies de fungos, Aspergillus fumigatus e Fusarium solani, foram isoladas em 36 das 164 amostras de água usada em uma unidade oncológica pediátrica de um hospital da cidade de São Paulo, indicando que o próprio sistema de abastecimento poderia ser uma fonte de contaminação, já que os propágulos – ou esporos, estruturas reprodutivas semelhantes a sementes – dos fungos poderiam ser transmitidos durante o uso das torneiras ou do chuveiro.

Estima-se que uma pessoa comum respire de 200 a 2 mil esporos por dia. Eles não estão apenas dispersos no ar, mas também dentro do corpo humano. “Temos milhões de colônias de Candida albicans na boca, no intestino e na pele, que só crescem e causam problemas quando as defesas estão debilitadas”, disse o infectologista Márcio Nucci, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele participou de um estudo que avaliou a ocorrência de infecções abdominais provocadas principalmente por C. albicans e C. glabrata em 481 pacientes internados em 13 hospitais da Itália, Espanha, Grécia e do Brasil, de 2011 a 2013. A maioria (85%) dos pacientes apresentou candidíase. A mortalidade foi de 60% e poderia ser explicada, segundo Nucci, porque infecções desse tipo normalmente acometem pessoas com doenças graves em estado terminal e em razão do diagnóstico tardio da origem da infecção, que resulta no atraso do início do tratamento adequado.

Infecções fúngicas são facilmente confundidas com as de origem bacteriana em pessoas que tiveram tuberculose. “Não se dá muita atenção para a possibilidade de diagnóstico de aspergilose crônica pulmonar, que aparece em 10% a 15% dos pacientes que apresentam sequelas da tuberculose, com cavidades no pulmão ou dilatação dos brônquios, e em geral são tratados novamente com antibióticos”, disse Colombo. Em seguida ele mostrou uma radiografia de um homem de 51 anos que perdeu peso, teve tosse crônica e febre durante meses e recebeu o tratamento contra tuberculose até saber que na verdade tinha uma pneumonia crônica associada ao fungo Histoplasma capsulatum, causa frequente de pneumonias de tratamento difícil. Outra espécie, Paracoccidioides brasiliensis, causa pneumonia mesmo em pessoas com as defesas em ordem, que moram em áreas onde essa micose é comum.

Micoteca: fungos coletados de pessoas tratadas em hospitais, imersos em óleo mineral

LÉO RAMOSMicoteca: fungos coletados de pessoas tratadas em hospitais, imersos em óleo mineralLÉO RAMOS

Para complicar, o mesmo fungo pode causar doenças diferentes, dependendo da capacidade de defesa do organismo em que se aloja. Aspergillus provoca dois tipos de pneumonia: a aguda e a crônica. Já se tem como certo que não são mais tão raras quanto há algumas décadas – a forma aguda, estima-se, deve se manifestar em até 12% das pessoas com leucemia mieloide aguda, de acordo com um levantamento realizado em oito hospitais públicos do país. Atualmente, um banco de dados internacional de acesso público, o International Society for Human and Animal Mycology (Isham, its.mycologylab.org), reúne 3.200 sequências de trechos de DNA, que permitiram a identificação molecular de 524 espécies causadoras de doenças em seres humanos, entre as mais de 500 mil descritas.

As análises genéticas indicaram que, às vezes, as amostras do que se acreditava ser uma única espécie podem incluir espécies distintas, com diferentes níveis de resistência a medicamentos. É o caso de Candida parapsilosis, reclassificada em três espécies: C. parapsilosis senso stricto, C. orthopsilosis e C. metapsilosis. As três espécies podem ser encontradas nas mãos das equipes de atendimento médico em hospitais, resultando em infecções associadas à manipulação de cateteres e outros dispositivos de uso comum em unidades de terapia intensiva.

Não é simples descobrir como os fungos adquirem a capacidade de causar infecções – a chamada virulência – e resistência a medicamentos. Em seu laboratório na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, Gustavo Goldman, biólogo de formação, verificou que Aspergillus fumigatus pode proliferar nos pulmões por meio de estratégias distintas, por causa da capacidade de escapar das defesas do organismo e dos principais antifúngicos, os azoles. Segundo ele, uma hipótese para explicar a resistência aos azoles é o uso de fungicidas para eliminar espécies danosas à agricultura em áreas próximas à cidade, que favoreceu a seleção e a disseminação de variedades nocivas às pessoas. “Fungos são organismos essencialmente oportunistas”, diz ele. “Variedades importantes para a reciclagem de carbono na natureza podem causar doenças se encontrarem hospedeiros debilitados. Além disso, têm muita plasticidade genotípica e grande poder de adaptação a diferentes ambientes.”

Unidos, os fungos conseguem ser mais resistentes e virulentos, diz Maria José Giannini, professora de micologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. Com sua equipe, ela verificou in vitro e in vivo que os aglomerados de fungos chamados biofilmes de Cryptococcus são mais virulentos e resistentes a drogas que as formas isoladas, como já havia sido visto em outros gêneros como Paracoccidioides brasiliensis e Histoplasma capsulatum. A formação de biofilmes poderia explicar a dificuldade em eliminar a onicomicose – ou micose de unha, provocada por Candida e Cryptococcus –, verificada pela equipe de Araraquara, e a resistência de Trichosporon a dois medicamentos bastante usados contra infecções superficiais ou internas, o triazole e a anfotericina B, observada pelo grupo da Unifesp.

Em políticas públicas para se dimensionar e deter as infecções fúngicas os avanços não são tão consistentes quanto em pesquisa básica, observa Maria José. “Em consequência, podemos ter sérios problemas, relacionados ao aumento das doenças causadas por fungos”, diz ela. “Cresceu a população de risco – principalmente os imunodeprimidos –, e o uso de procedimentos médicos invasivos – como sondas e cateteres –, que podem facilitar a transmissão de fungos, mas não aumentou a capacidade de resposta do sistema de saúde, que deveria estar atento e articulado para bloquear esse fenômeno”, reforça Colombo. Como exemplo, ele lembra que não há um sistema de diagnóstico específico para pneumonias fúngicas pós-tuberculose, algo relativamente fácil de fazer.

Preocupados com a situação, os pesquisadores oferecem recomendações para outros profissionais da área (ver quadro) e procuram agir em conjunto de modo a disseminar informações sobre esses problemas de saúde. A Unifesp está trabalhando com uma equipe da Universidade de Manchester, Inglaterra, e com centros médicos dos estados de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Espírito Santo para definir o alcance na população e as melhores formas de diagnóstico e de tratamento das pneumonias agudas e crônicas de origem fúngica. Outra iniciativa foi a instalação, em 2015, da unidade brasileira do Global Action Fund for Fungal Infections (Gaffi, gaffi.org), para atualização contínua de profissionais da saúde responsáveis pela identificação ou tratamento dessas doenças.

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Projeto
Aspergilose pulmonar e correlação entre as formas clínicas e a expressão diferencial de atributos de virulência em Aspergillus fumigatus (nº 2014/50294-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Arnaldo L. Colombo (Unifesp); Investimento R$ 42.905,00.

Artigos científicos
BENADUCCI, T. et al. Virulence of Cryptococcus sp biofilms in vitro and in vivo using Galleria mellonella as an alternative model. Frontiers in Microbiology. v. 7, p. 290. 2016.
COLOMBO, A.L. et al. Candida glabrata: An emerging pathogen in Brazilian tertiary care hospitals. Medical Mycology. v. 51, n. 1, p. 38-44. 2013.
GIACOMAZZI, J. et al. The burden of serious human fungal infections in Brazil. Mycoses. v. 59, n. 3, p. 145-50. 2016.

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