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Ecologia

O bom uso da floresta

Projeto de aproveitamento da caixeta melhora perspectivas dos moradores dos pântanos do Vale do Ribeira

Olhe bem o lápis que você tem sobre sua mesa de trabalho. Ou a tampa de madeira do seu perfume ou loção de barba. Pode ser que eles sejam feitos de uma árvore modesta, mas de múltiplas utilidades, que cresce em áreas pantanosas dos litorais leste e sul do Brasil, a caixeta (Tabebuia cassinoides ). Sua importância deve aumentar nos próximos anos. Já está em fase final de construção, por exemplo, em Iguape, no litoral sul de São Paulo, uma serraria comunitária, que vai trabalhar com a madeira da caixeta, melhorando a qualidade e a disponibilidade desse material.

A serraria representará, certamente, melhores rendimentos e mais qualidade de vida para as cerca de 12 famílias que participam do projeto. Está inserido, também, num projeto de manejo florestal sustentável, fruto de uma pesquisa sobre a caixeta que professores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq-USP) de Piracicaba realizam no litoral paulista desde 1992. Há três anos, a pesquisa conduziu ao projeto temático Manejo Integrado e Sustentável de Florestas de Caixeta no Vale do Ribeira (SP) , que conta com um financiamento de aproximadamente R$ 150 mil da FAPESP.

“Não existe incompatibilidade entre conservação e desenvolvimento se as populações tiverem condições de manejar bem suas florestas”, diz o engenheiro florestal Virgílio Maurício Viana, professor de silvicultura tropical do Departamento de Ciências Florestais da Esalq e coordenador do projeto temático. Isso representa uma notável mudança de enfoque. Em nome da conservação, o corte da caixeta de florestas nativas chegou a ser proibido, em 1989, provocando forte desemprego em várias áreas do litoral de São Paulo. Só em Iguape, chegaram a funcionar nove serrarias que trabalhavam com a caixeta, responsáveis por cerca de 400 empregos diretos e indiretos.

Natureza intocada
A pesquisa surgiu justamente de um debate que professores universitários organizaram em torno do futuro da população da região da Juréia, no litoral sul de São Paulo, próxima a Iguape. A proibição do corte da caixeta foi um dos aspectos do conflito que existia entre muitos habitantes da área e a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, naquela época. “O problema era resultado de uma concepção equivocada de conservação, baseada no modelo de parques dos Estados Unidos”, comenta o professor Viana. “Nela, a natureza é vista como intocável e dissociada das populações tradicionais”, acrescenta.

Uma das primeiras constatações dos pesquisadores foi a de ver que os caixeteiros, os habitantes da área que trabalham com a árvore, sabiam muito mais sobre os pontos básicos da ecologia e do manejo da espécie do que o mostrado nos livros. Quando se interessaram pelo assunto e foram fazer uma revisão bibliográfica sobre a exploração da caixeta, em 1992, os professores da Esalq descobriram que não havia nada sobre o tema, apesar de a caixeta ser a principal atividade econômica dos moradores das áreas pantanosas da Mata Atlântica e sua madeira ser usada na fabricação de lápis por empresas importantes, como a Labra e a Johann Farber.

“Só encontramos pesquisas sobre o reflorestamento”, diz o professor Viana. Essas pesquisas foram feitas na década de 1960 e não deram bons resultados. Por exemplo, a caixeta é uma planta de áreas alagáveis e as mudas transplantadas muitas vezes bóiam, o que exige medidas especiais para ficarem no lugar. Muitas informações de posse dos caixeteiros, por sua vez, não foram levadas devidamente em conta. Por exemplo, a de que a caixeta é uma árvore que rebrota depois de cortada – o que pode dispensar a demorada e cara reprodução por sementes.

Nova legislação
O primeiro passo dos professores da Esalq foi realizar uma pesquisa, Diagnóstico das Áreas de Caixeta , em parceria com a Associação dos Caixeteiros de Iguape e com o Núcleo de Populações em Áreas Úmidas do Brasil (Nupaub) da USP, que recebeu financiamento de U$10 mil da Fundação Ford. O trabalho chegou à conclusão de que há um grande potencial econômico no manejo da caixeta e uma demanda social, urbana e rural, por atividades relacionadas com o aproveitamento de sua madeira. Além disso, um relatório escrito por Viana, em parceria com os caixeteiros de Iguape, deu subsídios para uma nova legislação, que está em vigor desde 1992, e estabelece normas para o manejo e colheita da caixeta.

O trabalho não parou por aí. De um lado, está um programa, que conta com financiamento de cerca de R$ 150 mil da Fundação Ford, destinado a espalhar as informações obtidas pelas pesquisas entre os caixeteiros, pessoas envolvidas com marcenarias que usam a madeira da caixeta, e professores da rede pública. Do outro, o projeto temático, financiado também com R$ 150 mil pela FAPESP, destinado a obter uma abordagem mais sistematizada de vários aspectos do programa e a desenvolver novas tecnologias para a colheita e o manejo da caixeta.

Estão envolvidos no projeto 23 pesquisadores, dos quais sete são professores. Ele está organizado em quatro linhas gerais de pesquisa: ecologia de florestas de caixeta; genética de populações de caixeta; manejo de florestas de caixeta; e aproveitamento de recursos madeireiros e não-madeireiros provenientes das florestas de caixeta. O objetivo é gerar bases conceituais e tecnológicas para o estabelecimento dos critérios e indicadores do manejo florestal, com bases sólidas na biologia e na silvicultura, de maneira a melhorar o aproveitamento dos recursos das áreas de caixeta e, em conseqüência, aumentar o nível de vida das pessoas ligadas à exploração da árvore.

Calcula-se que o trabalho vai permitir a criação de um sistema de certificação florestal (selo verde) para a caixeta e fornecer elementos para uma revisão da legislação florestal relacionada com seu manejo. Não é pouca coisa. A caixeta ocorre em áreas paludosas do litoral brasileiro de Pernambuco a Santa Catarina e é explorada tradicionalmente por populações dessas áreas há mais de 50 anos. Só em Iguape, há mais de 50 caixetais, com áreas entre 2 e 500 hectares, cobrindo cerca de 1.100 hectares de florestas com possibilidades de manejo.

Dupla reprodução
As pesquisas já levaram a resultados importantes. Uma delas é a confirmaçãode que a caixeta se reproduz também a partir de rebrotos que surgem das raízes. Esses rebrotos aparecem até mesmo em árvores jovens. Isso é bom, pois a maioria das árvores só se reproduz por meio de sementes, produzidas apenas por árvores adultas, que precisam de muito tempo para chegar a essa condição. A caixeta se reproduz tanto por rebrotos como por sementes. Um manejo adequado, assim, elimina a necessidade do reflorestamento, difícil pelas condições dos terrenos em que crescem as árvores.

Outra conclusão importante é a de que a colheita da caixeta não afeta significativamente a qualidade e o volume da água dos ribeirões que passam pelas áreas em que a árvore é dominante. Não é o que acontece quando a floresta é substituída, por exemplo, por plantações de banana, a atividade agrícola mais importante das regiões em que ocorre a caixeta.

Os pesquisadores organizaram também uma fórmula matemática para calcular o volume de madeira existente numa área. Com essa fórmula, o proprietário do caixetal, a partir dos diâmetros de suas árvores, pode planejar a colheita e a comercialização, de maneira a aumentar a sustentabilidade da produção.É um passo importante. Antigamente, o proprietário simplesmente cedia a área a uma equipe de caixeteiros ou a uma serraria e recebia uma porcentagem do material retirado. O processo, além de ser largamente inexato, levava a desperdícios e a falta de cuidados na manutenção da área.

O novo método pode, inclusive, superar a tendência existente de eliminar caixetais para o plantio de banana, contribuindo, assim, para a conservação ambiental da região do vale do Ribeira. Os pesquisadores da Esalq já têm planos para treinar os caixeteiros em métodos simples de inventário e planejamento. Com isso, a madeira da caixeta poderá transformar-se na primeira das florestas naturais da Mata Atlântica a obter o selo verde, muito importante para a exportação.

Os técnicos também elaboraram um novo sistema de colheita da madeira, com divisão em talhões para os caixetais maiores e médios, que alimentam a indústria, e colheita seletiva, com base nos diâmetros das árvores, para as florestas menores, cuja madeira é usada principalmente em obras de artesanato. Os dois sistemas garantem a presença constante de árvores em situação de aproveitamento. A caixeta leva entre oito e dez anos para chegar ao ponto de corte.

Bromélias e orquídeas
O lucro da floresta não está só na madeira, destaca a economista doméstica Adriana Maria Nolasco, professora da Esalq, co-coordenadora do projeto temático e responsável pelo tema Aproveitamento dos Recursos Florestais . Por exemplo, quando fizeram a caracterização dos diversos tipos de caixetais, os pesquisadores descobriram que as árvores abrigam, no alto, grande número de epífitas, como bromélias e orquídeas. Na derrubada tradicional, essas plantas ficam abandonadas no chão, para morrer.

Assim, um dos trabalhos dos pesquisadores vem sendo o de identificar e quantificar essas epífitas e determinar seu potencial econômico. “Já temos uma classificação das plantas por espécie e tamanho”, diz Adriana.No entanto, para que essa nova fonte de renda se transforme em realidade, será necessário introduzir uma legislação específica, pois a legislação atual limita a colheita de bromélias e orquídeas nativas.

A madeira, no entanto, não foi esquecida. Fez-se uma caracterização do sistema industrial e artesanal nos três usos mais difundidos da caixeta, tábuas para lápis, saltos de tamancos e obras de artesanato, com avaliações do rendimento e perdas em resíduos. A conclusão foi a de que há perdas enormes, tanto na fase de retirada da floresta como no processamento. As causas: mão-de-obra sem qualificação, comprimento inadequado das toras na colheita e pouca diversificação de produtos. No caso dos lápis e saltos de tamancos, o aproveitamento máximo de uma tora é de apenas 40 %.

Os remédios são vários. A indústria, por exemplo, quer toras com entre 1,10 e 1,20 m de comprimento e, no caso de árvores maiores, as sobras devem ter outros destinos. Isso pode ser conseguido integrando a produção de tábuas para lápis e saltos de tamancos com a fabricação também de objetos menores, como caixinhas e tampas de perfumes. A serragem proveniente do beneficiamento, por sua vez, pode servir, misturada com esterco, como substrato para o plantio de cogumelos, bromélias e orquídeas, aparecer como matéria-prima para a produção de papel artesanal ou, mesmo, ser usada como combustível nos fornos destinados à secagem da própria madeira.

Com a melhor qualificação da mão-de-obra e o uso de equipamentos mais aperfeiçoados e melhor regulados, afirma Adriana, a caixeta, como matéria prima, será muito melhor aproveitada. “Estamos propondo um novo modelo para a indústria aprimorar seu sistema de produção e que pode ajudar a aumentar o rendimento e a rentabilidade dessa atividade, além de gerar mais empregos e ter um impacto menor nas florestas”, acrescenta a professora. A nova serraria comunitária, montada em conjunto com a Associação de Caixeteiros de Iguape, faz parte desse projeto.

Depois, há o problema das pessoas que fazem artesanato com a madeira de caixeta. Estão nessa situação 30 famílias na região de Iguape, 90 em São Sebastião e 30 em Parati. Com poucas exceções, nenhuma tem estrutura de comercialização e se contentam em vender seus produtos nos mercados locais. Uma das exceções comprova o grande potencial da atividade. Um produtor de Saco de Mamanguá, na região de Parati, fez parceria com um comerciante que coloca seus trabalhos em outras partes do País e no exterior. Cerca de dez famílias da região, assim, usando esse canal, têm renda que ultrapassa os cinco salários mínimos por mês por artesão.

Ou seja, tudo indica que o trabalho do grupo da Esalq  já está tendo e terá em breve resultados positivos para uma das parcelas mais pobres de uma das regiões mais empobrecidas do Estado de São Paulo, o Vale do Ribeira. “Nosso projeto não é só acadêmico, pois atende reivindicações de uma população marginalizada, além de contribuir para valorizar o desenvolvimento sustentável numa região problemática, cuja realidade atual gera destruição e miséria”, diz o professor Viana. Além de dar subsídios para a elaboração de políticas públicas, completa, o projeto temático tem, ainda, uma importância fundamental: provar que é possível conciliar conservação da natureza e desenvolvimento.

Perfil
O professor Virgílio Maurício Viana formou-se em engenharia florestal pela Esalq em 1983. No ano seguinte, foi coordenador de educação ambiental da Secretaria de Agricultura do Estado do Rio de Janeiro. Tem mestrado em biologia evolutiva pela Universidade Harvard, dos Estados Unidos, obtido em 1986, e doutorado sobre o mesmo assunto, de 1989. Foi professor visitante da Universidade da Flórida em 1993 e 1994. Há dez anos é professor de silvicultura tropical do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq-USP), de Piracicaba.

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