A identidade da América Latina e o lugar do Brasil no continente são temas clássicos que encontram uma original e feliz abordagem no livro de Bernardo Ricupero. Para ele, tanto a ideia de América Latina quanto a de Brasil não são naturais, fixas ou atemporais, mas construídas historicamente. Sua questão central é como um conjunto de autores refletiu sobre as identidades latino-americana e brasileira por meio das metáforas da peça A tempestade, de William Shakespeare. Escrito no século XVII, o texto do dramaturgo inglês se prestou a uma variada gama de interpretações, que a partir do romantismo passaram a realçar o contexto colonial americano e a alterar o significado dos protagonistas, em especial Próspero, Ariel e Caliban.
O livro de Ricupero possui diversos méritos, destacando-se: a análise do processo de circulação e reelaboração da ideia de América Latina, a reconstituição de importantes debates sobre a identidade continental e, principalmente, uma abordagem a partir do Brasil, analisando como tais discussões repercutiram no ambiente intelectual e politico nacional. São demarcados três grandes momentos do debate identitário. O primeiro deles, denominado Ariel, definido pelas diferenças culturais entre latinos e anglo-saxões; o segundo, Caliban, de crítica radical do colonialismo; e, finalmente, Próspero, de desilusão com a modernidade norte-americana.
A publicação do opúsculo Ariel pelo uruguaio José Enrique Rodó, em 1900, foi decisiva para forjar a identidade latino-americana ao pautar os valores de toda uma geração que formou uma rede intelectual espalhada entre a América Latina e a Europa. O narrador era Próspero, um velho professor que se despedia dos discípulos alertando-os sobre o choque entre as duas grandes civilizações das Américas, desafio a ser enfrentado por meio de valores humanistas. Ele sintetizou o clima ideológico de repúdio aos Estados Unidos, que haviam tomado à força Cuba, Porto Rico, Filipinas e Guam do domínio espanhol, em 1898.
Os latinos foram identificados com a personalidade idealista, culta e racional de Ariel, o gênio do ar; e os anglo-saxões com os atributos negativos associados a Caliban, o escravo deformado: utilitarismo, materialismo e barbárie. Dessa forma, o uruguaio atualizou e fortaleceu o sentido anti-imperialista da expressão América Latina, criada pelos opositores do expansionismo norte-americano sobre o México e o Caribe, em meados do século XIX.
É muito interessante a análise dedicada ao Brasil no contexto arielista. A Proclamação da República estimulou a aproximação com a América Latina, mas permaneceu a forma ambígua de o Brasil se reconhecer como parte da região, tradicionalmente associada ao atraso e ao caudilhismo. Apesar das raízes culturais ibéricas e de certos problemas comuns aos países, intelectuais brasileiros e hispano-americanos estreitaram laços apenas de forma limitada. Parece, assim, acertada a hipótese de Ricupero de que, mais do que influência recíproca, houve afinidade entre eles, que acabaram trilhando caminhos paralelos e convergentes.
Por sua vez, o terceiro momento é de inflexão, definido pela inversão do significado dos personagens. É demarcado pela publicação do ensaio Caliban, do escritor cubano Roberto Fernández Retamar em 1971. Longe do idealismo arielista, tratava-se de valorizar a figura do escravizado como símbolo da revolta dos oprimidos da América Latina contra o capitalismo e o imperialismo. Não deixa de surpreender a tese de que essa etapa teria se iniciado justamente no Brasil, com o advento do modernismo em busca de uma autêntica cultura nacional. Para Ricupero, ao questionar a Europa a partir da América, o Movimento Antropofágico teria desenvolvido nada menos que uma visão pós-colonial avant la lettre.
Por fim, a última parte se detém no debate em torno da obra do norte-americano Richard Morse, em especial O espelho de Próspero, livro publicado no Brasil em 1988. O historiador constatava uma profunda crise da civilização norte-americana e da própria modernidade ocidental em contraste com as possibilidades de uma outra modernidade, ibero-americana, alimentando as polêmicas sobre as alternativas para o Brasil e a América Latina no contexto da redemocratização. Uma leitura mais que oportuna quando as duas Américas voltam a se chocar.
José Luis Beired é professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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