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NEUROCIÊNCIA

O cérebro estatístico

Experimento com sequências estruturadas de sons e silêncios corrobora a conjectura clássica de que o órgão usa modelos probabilísticos para antecipar eventos

Alexandre Affonso Sequência de movimentos típica de um samba, ritmo musical de quatro temposAlexandre Affonso

O cérebro cria constantemente modelos do mundo ao redor e, com base neles, faz predições sobre o que está por vir. É uma capacidade essencial para a sobrevivência, usada, por exemplo, quando se escolhe o momento adequado para atravessar uma rua movimentada. Também é o que faz um ritmista que entra numa roda de samba e imediatamente pega o ritmo. A hipótese de que essa capacidade intrínseca ao funcionamento do cérebro seria de natureza estatística foi formulada pelo médico e físico Hermann von Helmholtz (1821-1894). Em seu Tratado de óptica fisiológica, de 1866, Helmholtz cunhou a expressão “inferência inconsciente” para designar esse modo de operar. A expressão ressalta o caráter estatístico dessa capacidade, porque os estímulos que chegam ao cérebro têm uma natureza intrinsecamente variável – e identificar regularidades em meio à variabilidade é a essência da atividade estatística. Em meio a essa imensa variabilidade, no entanto, a identificação de regularidades não pode se limitar a reconhecer se uma certa sequência de eventos se repete de maneira idêntica nos estímulos. Isso é insuficiente, por exemplo, para atravessar uma rua, pois o fluxo do trânsito não é uma repetição imutável de uma sequência fixa de veículos. Para completar a tarefa com segurança, é preciso identificar uma regularidade por trás da variedade de veículos que passa pela rua.

Um século e meio depois de apresentar essa proposição, a conjectura da inferência inconsciente formulada por Helmholtz continua a ser investigada por grupos de pesquisa mundo afora. Nas últimas décadas, verificou-se, por exemplo, que o cérebro é capaz de identificar um evento inesperado em meio à regularidade de uma sequência repetida de eventos de mesma natureza. Essa discrepância deixa uma assinatura característica na atividade elétrica cerebral e funciona como uma marca de surpresa. O desafio atual em relação à hipótese de Helmholtz era desenvolver um quadro conceitual e experimental que permitisse ir além da identificação de discrepâncias em meio a repetições. Com esse objetivo, um novo modelo matemático e um protocolo experimental original foram propostos por uma equipe multidisciplinar coordenada pelo matemático Antonio Galves, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP), e pela neurobióloga Claudia Vargas, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que integram o Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) em Neuromatemática (NeuroMat), financiado pela FAPESP. O modelo e seus resultados foram descritos em um artigo publicado em 10 de fevereiro na revista Scientific Reports.

No trabalho, os pesquisadores buscaram evidências de que o cérebro efetivamente identifica regularidades em situações muito mais intrincadas do que a simples ocorrência de discrepâncias em meio a repetições. Fizeram isso tentando modelar, de maneira simplificada, o que se passa no cérebro de um sambista que chega a uma batucada, imediatamente entende a estrutura rítmica utilizada, por mais complexa que ela seja, e logo é capaz de contribuir para o ritmo geral.

No experimento, voluntários foram expostos a duas sequências variáveis de estímulos auditivos enquanto sinais eletroencefalográficos (EEG) eram registrados por meio de eletrodos fixados em seu escalpo. Essas sequências de estímulos reproduziam de maneira simplificada a estrutura rítmica do samba e a da valsa. No samba, uma batida forte é seguida por uma fraca, que antecede uma unidade silenciosa e mais uma batida fraca. Na valsa, uma batida forte é acompanhada por duas batidas fracas. Em ambos os ritmos, essa sequência de base se repete regularmente.

Durante a execução de um samba ou de uma valsa por um ritmista, no entanto, essas estruturas periódicas regulares podem ser modificadas, com a substituição, às vezes, da batida fraca por uma unidade silenciosa. Num baile, esses apagamentos casuais ocorrem naturalmente e sua imprevisibilidade deixa os ritmos mais interessantes. No experimento realizado pela equipe do NeuroMat, os apagamentos aleatórios foram introduzidos com um propósito científico: encontrar evidências de que o cérebro dos voluntários não estava simplesmente “decorando” uma sequência periódica imutável, mas, sim, identificando o procedimento que produziu a sequência. A fim de verificar qual dos dois fenômenos estava ocorrendo, os pesquisadores expuseram cada voluntário a realizações do samba e da valsa com apagamentos diferentes das batidas fracas.

Alexandre Affonso Passos de uma valsa, dança com cadência de três temposAlexandre Affonso

Os procedimentos usados para gerar as sequências de estímulos correspondentes ao samba e à valsa podem ser entendidos como algoritmos, que, no caso desse experimento, expressavam como cada novo estímulo era escolhido em razão dos ocorridos anteriormente. A pergunta que os pesquisadores desejavam responder era se havia a possibilidade de identificar os algoritmos geradores do samba e da valsa nos registros de EEG.

No protocolo experimental proposto pela equipe do NeuroMat, um segmento de EEG era registrado cada vez que um estímulo auditivo era apresentado ao voluntário. O problema era descobrir como as características estatísticas de cada trecho de EEG dependiam da sequência de estímulos apresentada até aquele momento. No caso do samba, uma batida forte é seguida por uma batida fraca, acompanhada sempre de um silêncio constitutivo e de outra batida fraca. De tempos em tempos, porém, uma batida fraca era substituída por um silêncio ocasional. Se o último estímulo havia sido uma batida forte, o estímulo seguinte era quase sempre uma batida fraca, ocasionalmente substituída por um silêncio. De acordo com a hipótese da equipe do NeuroMat, as características do sinal de EEG registrado enquanto o voluntário havia sido exposto a uma batida forte deveriam expressar como o próximo estímulo seria gerado em função dos apresentados anteriormente.

Por que supor que as características de cada segmento do EEG codificariam como a escolha de cada novo estímulo depende dos últimos apresentados? Já era conhecido que um apagamento inesperado da batida fraca produz uma marca de surpresa. Assim, no samba, essa marca de surpresa deveria estar presente no sinal de EEG sempre que ocorrer um silencio ocasional. Em contraste, tal marca não deveria aparecer durante a ocorrência de um silêncio constitutivo.

O trabalho mostra que esse efeito vai além da simples marca de surpresa. O que está em jogo é como, em cada passo, os estímulos anteriores determinam de que maneira é escolhido o próximo estímulo. De fato, depois do silêncio constitutivo, vem quase sempre uma batida fraca ou, às vezes, um silêncio ocasional. Já o silêncio ocasional que aparece depois da batida forte é sempre seguido por um silêncio constitutivo. São essas diferentes maneiras de escolher o próximo estímulo em função daqueles que vieram antes que estão codificadas no sinal de EEG. Os pesquisadores generalizaram essa constatação para as características dos sinais de EEG associados a cada uma das posições na sequência de estímulos do samba e da valsa e, de modo mais amplo, a qualquer sequência de estímulos.

A análise estatística realizada guiada por esse modelo identificou nos registros eletroencefalográficos coletados durante a exposição ao samba e à valsa as características dos algoritmos correspondentes a cada um dos ritmos. Esse resultado indica que, apesar da variabilidade introduzida pelos apagamentos aleatórios, os participantes capturaram o que havia de comum nas diversas execuções de cada ritmo às quais eles foram expostos.

Em conclusão, observam Galves e Vargas, “uma pergunta derivada da conjectura de Helmholtz conduziu à construção de um novo modelo matemático que, por sua vez, sugeriu o protocolo experimental utilizado. Uma metodologia estatística inovadora também teve de ser desenvolvida para a análise dos dados. Os resultados dessa análise levaram a novas perguntas neurobiológicas e sugeriram desdobramentos ao modelo matemático, constituindo-se assim em um círculo virtuoso”.

Projeto
Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática – NeuroMat (nº 13/07699-0); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Jefferson Antonio Galves (USP); Investimento R$ 28.209.502,86.

Artigo científico
HERNÁNDEZ, N. et al. Retrieving the structure of probabilistic sequences of auditory stimuli from EEG data. Scientific Reports. 10 fev. 2021.

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