A interrupção de serviços odontológicos tornou-se inevitável com a escalada de casos da Covid-19. Diante da escassez de equipamentos de proteção individual (EPI) para profissionais da saúde e do alto risco de contaminação, várias cidades brasileiras optaram por tratar apenas casos urgentes na rede pública. Em lugares onde o atendimento está sendo retomado, o desafio de adaptação à nova realidade exige mudanças em procedimentos rotineiros. É o caso da caneta de alta rotação, popularmente conhecida como “motorzinho do dentista”. Amplamente utilizada no tratamento da cárie, a ferramenta agora é fator de risco potencial à saúde pública. Isso porque produz aerossóis, ínfimas partículas suspensas no ar, aumentando a exposição de pacientes e dentistas ao vírus Sars-CoV-2 – transmitido principalmente por meio de gotículas de saliva. Especialistas são unânimes em afirmar que a situação emergencial instaurada pela pandemia recolocou no centro do debate uma antiga questão: o descompasso entre avanços científicos na área odontológica e tratamentos oferecidos à população em geral.
“É necessário empreender um esforço maior para promover a articulação entre o conhecimento gerado na academia e o atendimento odontológico oferecido na rede pública”, afirma Marisa Sugaya, coordenadora de Saúde Bucal da prefeitura de Suzano, na Região Metropolitana de São Paulo. Nos últimos anos, o município estabeleceu colaborações com instituições de ensino superior e pesquisa a fim de ter acesso rápido a informações científicas que possam subsidiar novas políticas e procedimentos voltados à saúde bucal. Em parceria com a Universidade de Mogi das Cruzes e a Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FO-USP), uma técnica minimamente invasiva chamada Tratamento Restaurador Atraumático (ART) foi adotada pelo sistema de saúde da cidade. “O objetivo inicial, antes da pandemia, era ampliar o tratamento da cárie em escolas municipais”, diz Sugaya.
– Os efeitos da Covid-19
– O tratamento possível
– As incertezas sobre a imunidade coletiva
– Embalo na filantropia científica
A chegada da pandemia reforçou a necessidade de promover procedimentos não invasivos nos serviços de atenção à saúde bucal. No dia 24 de junho, o Ministério da Saúde publicou uma portaria incluindo o ART na tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS). O método (ver box) se baseia na remoção de cáries e restauração dos dentes utilizando instrumentos manuais, que não precisam de eletricidade para funcionar. “A abordagem é simples, barata e permite resolver problemas dentários com a mesma eficiência das brocas, mas dispensando anestesia e cadeira odontológica”, explica Fernanda Campos de Almeida Carrer, coordenadora do Núcleo de Evidências em Saúde Bucal (NEv), criado em 2018, fruto de cooperação entre a FO-USP e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Carrer diz que a técnica não chega a ser uma novidade do ponto de vista científico, mas sua aplicação nunca foi bem aceita em consultórios. “Existe um estigma associado ao ART, porque o método foi desenvolvido na década de 1980 para tratar pacientes em zonas rurais ou regiões mais pobres.” O fato de a formação em odontologia privilegiar o uso de tecnologias de ponta também contribuiu para que o tratamento fosse subestimado, avalia a pesquisadora. Sua difusão pode criar condições para a retomada de atendimentos eletivos paralisados nos últimos meses. Desde o início da pandemia, em todo o país o número de consultas odontológicas via SUS caiu 80%, de acordo com levantamento realizado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
O diálogo entre universidades e profissionais que atuam em unidades de saúde, contudo, não deveria se limitar à busca por soluções apenas em situações emergenciais como a atual, argumenta Vinício Felipe Brasil Rocha, professor da Universidade José do Rosário Vellano (Unifenas) e dentista do Centro de Especialidade Odontológica de Varginha, em Minas Gerais. “Colaborações sólidas com grupos de pesquisa permitem que gestores e profissionais da saúde tenham acesso a dados epidemiológicos e novas tecnologias capazes de melhorar a qualidade e a eficiência dos tratamentos dentários.” Varginha foi uma das primeiras cidades do país a implementar políticas públicas baseadas em evidências científicas no campo odontológico, mediante o apoio do núcleo de evidências da FO-USP. Nos últimos dois anos, a parceria possibilitou a introdução de ações de educação em saúde mediadas por recursos com base na tecnologia da informação, que está alterando práticas e usos em vários setores da medicina e da odontologia. “Também incorporamos processos para simplificar a produção de próteses dentárias, ganhando tempo no consultório, reduzindo custos e aumentando o acesso da população a esse tipo de tratamento reabilitador fundamental.”
Diálogo científico
Convencer administradores públicos da importância de ouvir mais os cientistas é fundamental, considera Sugaya. Da mesma forma, há lacunas do lado da universidade: “Pesquisadores precisam se envolver mais no processo de tradução do conhecimento em propostas de políticas públicas”, observa. A dificuldade é que em muitos casos os estudos em odontologia não estão voltados a demandas específicas do SUS. Embora o Brasil tenha incluído o tratamento dentário na atenção básica da rede pública, a maioria dos profissionais atende no sistema privado de saúde.
Dos quase 340 mil cirurgiões-dentistas em atividade no país, 60 mil estão vinculados ao SUS. Além disso, aproximadamente 80% dos cursos de odontologia são privados. Como a formação está majoritariamente voltada para o mercado odontológico privado, boa parte das linhas de pesquisa é direcionada para a resolução de problemas específicos desse setor. “Ocorre que as demandas do serviço privado são distintas das necessidades da maioria da população”, avalia Roger Keller Celeste, do Departamento de Odontologia Preventiva e Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
De acordo com o pesquisador, enquanto o mercado investe continuamente em estudos no campo da odontologia estética – com potencial de gerar novos produtos e serviços que agreguem valor a procedimentos como implantes e clareamentos dentários –, cresce a demanda por pesquisas que ajudem a compreender, por exemplo, o perfil epidemiológico de doenças bucais, que hoje afetam mais de 3,5 bilhões de pessoas em todo o mundo. “Do total de moléstias, a cárie é a mais prevalente, especialmente em países de baixa e média renda”, informa Keller, que participou de uma série de estudos internacionais sobre saúde bucal publicados na revista The Lancet em 2019.
O estudo chama a atenção para a necessidade de mais pesquisas odontológicas capazes de dialogar com aspectos sociais e econômicos que afetam a saúde da população. “No mundo todo, os cuidados de saúde bucal e as abordagens para prevenção de doenças ainda operam, em grande parte, de forma não integrada a políticas públicas relacionadas a questões como abastecimento de água fluoretada, padrões de alimentação e desigualdade social”, constata Keller. Ele cita como exemplo o impacto do açúcar na incidência de cáries. Apesar de avanços como o aumento da cobertura de fluoretação da água de abastecimento público e do nível de flúor em cremes dentais, o tratamento da cárie também exige esforços no sentido de combater o consumo excessivo de açúcar – a principal causa da doença, de acordo com o pesquisador. “A cárie é multifatorial, apresenta forte interação com fatores culturais, comportamentais e fisiológicos.” Em sua avaliação, a pesquisa odontológica precisa se engajar mais em projetos multidisciplinares, dedicados a investigar determinantes sociais que impactam na saúde bucal da população.
Por exemplo, fatores como menor renda domiciliar per capita e baixa escolaridade influenciam a percepção das pessoas sobre a própria saúde bucal, conforme mostra investigação publicada em 2019 por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Universidade do Porto, em Portugal, e da USP. Analisando dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, os autores sugerem que a compreensão de indicadores de posição socioeconômica pode contribuir para o melhor direcionamento de políticas públicas de saúde bucal para grupos sociais vulneráveis.
Outro estudo publicado ano passado por pesquisadoras da Faculdade de Odontologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araçatuba, sugere que pesquisas no campo da saúde coletiva ainda são minoria na odontologia. Foram analisados 3.008 trabalhos apresentados na 35ª reunião anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica (SBPqO), realizada em 2018, e constatou-se que apenas 92 resumos versavam sobre projetos e ações coletivas na saúde bucal. Desse total, 46% tratavam de promoção da saúde, 27% de epidemiologia, 17% de educação em saúde e 10% de atenção à saúde bucal. Observou-se também que, da totalidade de trabalhos analisados, 63% eram da região Sudeste, 67% de instituições públicas e apenas 38% foram financiados por agências de fomento, principalmente pela FAPESP, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
No âmbito internacional, a pesquisa brasileira em odontologia aparece com destaque em artigos publicados em coautoria com estrangeiros nos principais periódicos da área, como mostra levantamento feito em 2019 por cientistas da UFPel, da Universidade de Münster, na Alemanha, e da USP de Ribeirão Preto. De acordo com o estudo, implantodontia e materiais dentários foram as subáreas odontológicas – nem sempre relacionadas a questões de saúde pública – com mais coautoria envolvendo brasileiros e pesquisadores de outros países, especialmente os Estados Unidos. No total, foram analisados 2.155 papers publicados em 38 revistas científicas entre 2015 e 2017.
Pesquisa direcionada ao mercado
Em nações ricas com acesso universal à saúde, como Inglaterra, Canadá e Suécia, observa-se que a não inclusão do atendimento odontológico no sistema público interfere diretamente no tipo de pesquisa desenvolvido nas universidades. No modelo britânico, por exemplo, há atendimento público em hospitais odontológicos universitários, mas geralmente restrito a serviços de alta complexidade. O atendimento primário fica com as clínicas particulares, que podem ou não ser credenciadas à rede pública. “O governo adotou um sistema de cotas, no qual os dentistas do sistema privado são pagos de acordo com o tipo de procedimento realizado”, explica Mario Vettore, do Departamento de Odontologia Social e Preventiva da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“O problema é que serviços básicos e de prevenção são os de remuneração mais baixa. Portanto, o profissional é incentivado, mesmo que indiretamente, a optar por mais estratégias de intervenção, como restauração de dentes, do que pelas ações promotoras de saúde”, diz Vettore, que foi professor por seis anos do curso de odontologia da Universidade de Sheffield, no Reino Unido. Consequentemente, observa ele, a pesquisa no país dedica-se mais ao desenvolvimento de produtos, como instrumentos odontológicos e novos materiais, caso das facetas em porcelana, utilizados em tratamentos estéticos.
Pode-se dizer que o Brasil ocupa posição intermediária entre os países de alto investimento em pesquisas voltadas para o mercado odontológico e os de pouco investimento nesse setor bilionário. “O fato de a Política Nacional de Saúde ter incluído o tratamento odontológico na atenção básica contribuiu para que as demandas do SUS fossem contempladas, ainda que de modo limitado, pelos programas de pós-graduação, principalmente aqueles voltados para a saúde coletiva”, avalia Paulo Frazão, da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Ele destaca o papel de pesquisas dedicadas a investigar a extensão da distribuição de dentistas no território brasileiro, que ainda se concentra nas cidades mais desenvolvidas. Considerado um dos estudos mais completos sobre o tema, o Perfil atual e tendência do cirurgião-dentista brasileiro foi publicado em 2010 e apontava que, naquela época, o Brasil era o país com o maior número de dentistas, concentrando 19% do total de profissionais em atuação no mundo. Apesar disso, 57% se encontravam em apenas três estados: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. “Os profissionais acabam se instalando em regiões onde têm mais chances de obter retorno financeiro prestando serviços em clínicas e consultórios particulares”, afirma Frazão.
Fernanda Tricoli, coordenadora de Saúde Bucal da Secretaria Estadual de Saúde do Estado de São Paulo, acredita que a situação não se alterou muito na última década. “Os dentistas costumam ser formados para trabalhar em consultórios particulares, o que acaba mantendo-os isolados dos grandes problemas populacionais relacionados à saúde bucal do território onde atuam”, diz Tricoli. Ela destaca, no entanto, que a criação do programa nacional Brasil Sorridente, em 2004, promoveu uma melhora ao estruturar uma rede articulada com o SUS, com o objetivo de expandir o cuidado odontológico para as áreas mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico. “Essa política abriu espaço para parcerias entre o SUS e as universidades, criando vagas de estágio para que estudantes de odontologia possam ter contato com a rede pública de saúde e com diferentes realidades locais.”
Ainda assim, diz Tricoli, a cobertura de tratamentos odontológicos pelo SUS é consideravelmente baixa no país. No estado de São Paulo, ela informa, apenas 34% da população consegue ter acesso. “Por conta do subfinanciamento do SUS, a rede pública acaba ficando mais restrita a ações de prevenção em Unidades Básicas de Saúde”, observa. “O sistema até oferece procedimentos mais complexos, como cirurgia ortognática para corrigir deformações no maxilar, mas em quantidade baixa, por falta de recursos para contratar profissionais especializados e incorporar tecnologias de ponta.” Paulo Frazão, da USP, destaca que a porcentagem de dentistas que trabalham no serviço público odontológico chega a 51% em países de baixa renda. “No Brasil, porém, a taxa é de 30% a 35% apenas.”
Por essa razão, Fernanda Carrer, da USP, defende que pesquisas tecnológicas não são de interesse apenas do mercado, mas também do SUS, uma vez que produtos e serviços inicialmente direcionados para atender uma parcela restrita da população – aquela que pode pagar por tratamentos caros – eventualmente podem ser incorporados pelo SUS, se o custo-benefício compensar. “O implante dentário, por exemplo, já foi algo bastante elitizado, mas se popularizou”, diz Carrer, citando também o exemplo do laser de baixa potência – uma tecnologia com ação anti-inflamatória utilizada para tratar lesões bucais como herpes e efeitos colaterais ocasionados por tratamentos oncológicos. “Era um equipamento muito caro, mas hoje pode ser encontrado em consultórios públicos nos Centros de Especialidades Odontológicas [CEOs] em São Paulo”, informa.
Desenvolvido no início da década de 1980 por professores da Universidade de Groningen, na Holanda, o Tratamento Restaurador Atraumático (ART) foi inicialmente pensado para expandir o atendimento odontológico a comunidades socialmente vulneráveis e sem acesso à luz elétrica. Ao contrário de procedimentos mais invasivos para tratar a cárie, o ART dispensa o uso da caneta de alta rotação – o “motorzinho do dentista” – e pode ser utilizado fora dos consultórios, em locais como escolas e acampamentos. A técnica consiste na remoção do tecido danificado do dente do paciente apenas com instrumentos manuais como pinças, espátulas e a chamada colher de dentina. Na sequência, é feito o preenchimento da cavidade com um material adesivo, o ionômero de vidro de alta viscosidade, que é biocompatível e libera flúor.
A segurança e a eficiência do método têm sido comprovadas em estudos científicos publicados nas últimas décadas, explicou Elizabeth de Souza Rocha, pesquisadora da Faculdade de Odontologia da USP, em apresentação ao vivo realizada pelo Observatório Iberoamericano de Políticas Públicas em Salud Bucal. “Com o tempo, percebeu-se que as vantagens do ART são inúmeras”, disse Rocha. Um dos principais benefícios é a diminuição do uso de anestesia e de tecnologias de ponta, não exigindo uma estrutura tão complexa em comparação com outros procedimentos. Além disso, há evidências de que o ART reduz a dor durante o tratamento e a ansiedade que muitos pacientes sentem ao frequentar consultórios e ouvir o barulhinho da broca odontológica.
Os primeiros estudos que testaram a eficiência do ART em campo foram feitos no início dos anos 1990 na Tanzânia, na Tailândia e no Zimbábue. As pesquisas, lideradas pelo holandês Jo Frenken, mostraram que a técnica não só era capaz de remover cáries de forma minimamente invasiva, mas também contribuir para a implementação de programas de promoção da saúde bucal. Em 1994, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a importância do procedimento no combate à cárie, especialmente em países mais pobres. O ART passou a ser utilizado no Brasil, especialmente no atendimento de crianças em escolas, mas de forma pontual em alguns municípios, entre eles São Paulo. Em 2002, o Centro Colaborador da OMS em Nijmegen, na Holanda, publicou o Basic package of oral care, um guia com recomendações para tomadores de decisão no campo da saúde pública. “O documento ainda é bastante atual”, ressaltou Rocha. “Ele define três pilares para o atendimento odontológico: sanar urgências, como dor e trauma, promover o uso de creme dental fluoretado e tratar lesões com a técnica de ART.”
Embora venha sendo aprimorado nas últimas décadas, o método não substitui completamente o uso do motorzinho, ressalvou Rocha. O ART não é indicado para tratar lesões profundas, em que haja comprometimento da polpa dentária ou a presença de pólipos na gengiva, por exemplo. “Por isso, é fundamental fazer o diagnóstico adequado, avaliando o grau da lesão e a real necessidade de um tratamento mais complexo ou menos invasivo.”
Artigos científicos
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