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Artes visuais

O design de uma era

Eventos e livros mostram preocupações crescente no entendimento da concepção visual das artes gráficas no Brasil

Quem diria, Alberto Santos Dumont (1873-1932) era, além de inventor do avião, um designer. Talvez o próprio se surpreendesse com esse termo da contemporaneidade. Mas foi o tratamento que ele recebeu na exposição Santos Dumont Designer, que ficou em cartaz no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, até 31 de julho. O sucesso foi tamanho que o evento teve de ser prorrogado por um mês. No mesmo período, duas outras iniciativas semelhantes promovidas na capital paulista mostraram que o tema passa por uma valorização no Brasil.

A 8ª Bienal Brasileira de Design Gráfico, realizada na Galeria Marta Traba, no Memorial da América Latina, pretendeu apontar as tendências da produção nacional. Este ano, em vez de trabalhos por categoria – mais de 40 foram inscritos, entre publicações, embalagens, marcas, sites, cartazes, animações etc. -, a mostra foi dividida por núcleos de tendências, organizados por uma curadoria composta pelos designers André Stolarski, Bruno Porto, Fernanda Martins e Marco Aurélio Kato.

No Pavilhão da Criatividade, também no Memorial da América Latina, fica em cartaz até 25 de agosto a Trienal Internacional de Eco-posters e Design Gráfico. Com organização e curadoria de Ruth Klotzel, reúne 80 cartazes, selecionados entre os trabalhos dos vencedores da Trienal Internacional de Eco-Posters, realizada na Ucrânia desde 1991. O principal objetivo é chamar a atenção da comunidade mundial para questões sociais e ecológicas. Conhecida também como 4th Block – nome do reator que explodiu na usina nuclear de Chernobyl em 1986 -, a deste ano tem como tema os 20 anos da tragédia ocorrida na Rússia.

No mercado editorial, o interesse crescente por estudos sobre o tema pode ser visto nas coleções de duas editoras. A Rosari tem duas séries, com 17 volumes já publicados – as coleções Textos Design e Fundamentos do Design. Os ensaios são apresentados em volumes com capa dura e sobrecapa e foram escritos por alguns dos mais representativos especialistas da área. Como Adélia Borges – que teve uma coluna especializada no jornal Gazeta Mercantil e hoje dirige o Museu da Casa Brasileira -, Chico Homem de Melo, Cláudio Ferlauto, Heloísa Jahn, Lucrécia D’Alessio Ferrara, Sandra Ramalho e Oliveira, Alexandre Wollner e Rodolfo Fuentes, entre outros. A eles se junta a valorização de criadores históricos como Sergio Rodrigues, José Zanine Caldas (1919-2001) e Lina Bo Bardi (1914-1992).

A Cosac Naify acaba de mandar para as livrarias o segundo livro de uma série – iniciada com O design brasileiro antes do design, organizado por Rafael Cardoso e premiado pelo Museu da Casa Brasileira como melhor publicação da área em 2005. O novo título é O design gráfico brasileiro anos 60, organizado por Chico Homem de Melo, com longos ensaios de João de Souza Leite, André Stolarski e Jorge Caê Rodrigues. O volume nasce como referência para o estudo da história do design no Brasil.

Impresso em papel especial e em cores, interessa até mesmo a quem é leigo, mas curte artes visuais. Para esse público, permite um passeio de nostalgia por capas de livros e discos, cartazes de cinema e pelo mundo das revistas e jornais que modernizaram a imprensa. São 514 imagens que revelam a riqueza e a singularidade de uma época.

Vertiginosas
Professor de programação visual da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Homem de Melo destaca que a produção de design foi parte integrante de um processo de mudanças “vertiginosas” em todo o mundo. “Ao longo da década, os mestres modernistas continuaram seu percurso seguro, em particular na área de identidade corporativa”, escreve ele. Ao mesmo tempo, várias frentes novas foram abertas e deu-se início a uma ruptura com os dogmas racionalistas.

No Brasil, as conquistas da arte construtiva dos anos 1950 continuaram a render bons frutos para o design nos dez anos seguintes. Segundo ele, o livro permite uma reflexão sobre isso e apresenta a documentação do que se fez num período pouco analisado em suas diversas vertentes. “O design permanece escondido em algumas poucas bibliotecas públicas, em coleções particulares, ou perdido em revistas de época”.

Um dos méritos da obra é contextualizar o assunto num momento de grande turbulência cultural, política e comportamental no mundo todo. Ao observar as rupturas produzidas que marcaram a história das décadas seguintes – Che Guevara, Beatles, Vietnã, ida do homem à Lua, ditaduras militares e movimento estudantil -, compreende-se as imagens emblemáticas que influenciaram significativamente a produção do design gráfico no Brasil.

Os autores, assim, discutem o que pode ser considerado como o período de consolidação no país. Homem de Melo – que escreveu três capítulos – lembra que, até então, não existia a noção da profissão como se tem agora: “Algumas pessoas faziam livros, outras faziam identidade visual, e por aí afora”. O fortalecimento da atividade do design gráfico nacional coincidiu com o surgimento das escolas de design, com a difusão mais ampla de imagens e com a transformação de vários ícones da ruptura cultural em símbolos gráficos.

Ímpar
A análise dos autores aprofunda a relação entre tipografia, ilustração e fotografia em duas revistas importantes, Senhor e Realidade, citadas como exemplos de inovação. Enquanto isso, Rogério Duarte se tornou uma figura ímpar, como diz Jorge Caê Rodrigues: ligado ao tropicalismo, criou projetos gráficos tão complexos e alegóricos quanto as mudanças propostas pelo movimento. Também contrapôs sua expressão psicodélica às composições mais “ulmianas”. O design das capas de livros é um dos pontos mais analisados, quando resgata nomes importantes que exibiram soluções gráficas de grande inovação, como Eugenio Hirsch, Marius Luaritzen Berne e Glauco Rodrigues.

Em A identidade visual toma corpo, André Stolarski fala da consolidação da identidade visual no Brasil. “Tanto pela qualidade dos trabalhos quanto pela atitude profissional, que aliava à elaboração estética uma visão de design ligada ao planejamento das aplicações e usos de uma marca”. O autor trata das origens desse processo, que passou pela Bauhaus, construtivismo, Suíça e Escola de Ulm – e sua influência nos expoentes máximos dessa expressão no Brasil dos anos 1960: Alexandre Wollner, Ruben Martins, João Carlos Cauduro, Ludovico Martino e Aloísio Magalhães.

A coordenação editorial e o projeto gráfico de O design gráfico brasileiro anos 60 couberam a Elaine Ramos, diretora de arte da Cosac Naify. Como o livro faz parte de uma coleção, ela teve que seguir algumas diretrizes do livro anterior. “A partir delas, tentei dialogar com o que havia de recorrente no design da época, como o uso do tipo helvética e os títulos grandes, com o devido cuidado para não ficar uma imitação direta”. Os autores, diz Elaine, talvez justamente por serem designers, confiaram no seu trabalho e interferiram pouco.

Conceituar design, aliás, ainda é um problema para quem não faz parte do meio. Para Elaine, trata-se de uma arte aplicada, que tem a dimensão da criação, mas traz sempre um problema a ser resolvido – a relação com um determinado conteúdo, questões técnicas, o autor ou cliente, custos etc. “O objetivo é sempre comunicar. É muito diferente das artes plásticas, vejo um paralelo mais evidente com a arquitetura”.

André Stolarski afirma que design não é arte, embora possa ser entendido como tal em determinadas circunstâncias. “O que falta é reconhecer o design como design, com a contribuição específica que ele tem a dar para a cultura em geral e para a brasileira em particular. Não há preconceito, há falta de informação”. O cenário é o inverso: o design é muito comentado e celebrado, mas nunca se sabe direito o que quer dizer a palavra. Assim, explica ele, o termo acaba por virar sinônimo de ‘luxo’, ‘arte’, ‘sofisticação’, “que estão muito distantes de dar conta do que a atividade faz”. Pelo seu conceito, trata-se do projeto de nossa existência no planeta e tudo o que isso envolve.

Do ponto de vista histórico, afirma Stolarski, a modernização do design começou na verdade nos anos 1950. Como no caso de alguns movimentos descritos por ele no ensaio A identidade visual toma corpo. “Creio, no entanto, que os outros ensaios do livro – e a própria apresentação – falam de uma ruptura mais profunda, vinculada à linguagem da televisão e da fotografia, plenamente inserida nos anos 1960”. O designer, porém, não chamaria o processo de ‘modernização’, mas apenas de ‘transformação’. Uma mudança de 1950 que vai contribuir com 1960 foi o “fortalecimento da arte construtiva nas vertentes concreta e neoconcreta”.

As duas influências mais importantes no design brasileiro, então, foram a Escola de Ulm e a produção visual norte-americana. A primeira, mais ligada à sistematização e à proposição racional do papel do design e do designer. A segunda, vinculada à pujança comercial da propaganda e da sedução do mercado.

E o que passou ‘batido’ no Brasil e foi importante lá fora? Stolarski cita os movimentos de renovação e crítica do design moderno ocorridos desde a década de 1970 nos Estados Unidos e na Europa. Como a atividade do suíço Wolfgang Weingart e as experiências da escola norte-americana de Cranbrook, que demoraram muito para ganhar alguma força ou reconhecimento no Brasil – o que só começou a ocorrer no início da década de 1990. “Acho que o esforço para encontrar algo ‘típico’ ou ‘original’ entre ‘artistas’ e ‘estilos’ é vão nesse caso. Melhor seria dizer que a produção brasileira, embora vinculada em muitos aspectos aos movimentos internacionais, contribuiu com seu traço de originalidade, ajudando a construir a identidade do país”.

Considerado o decano dos designers brasileiros, Alexandre Wollner, aos 77 anos, define o design como projeto, conceito cultural, técnico e cientifico inovador e que tem a arte como parte do processo criativo. Principalmente a partir da arte concreta (Max Bill), como pensamento matemático, mas se desligou do processo de arte pela arte como nós a conhecemos desde o século retrasado.

Apanhado
A estética, observa ele, faz parte do design, mas não é só estética. “Caso contrário, seria artesanato”. Na sua opinião, o livro organizado por Chico Homem de Melo mostra em especial o quanto as artes gráficas brasileiras se modernizaram na década de 1960. A obra lhe parece um apanhado de artes gráficas, o que vem a ser bem diferente do design visual. “A gráfica brasileira não é de agora”.

Wollner observa que o design começou realmente no fim dos anos 1950. “Vamos dizer, desde o quarto centenário de São Paulo. Não antes. E se desenvolve atualmente com a evolução da tecnologia, da ciência, da cultura e das necessidades contemporâneas”. Afirmar que o design existe por décadas, prossegue ele, seria falta de conhecimento. “O design vem sendo estimulado desde que o homem era macaco (veja o filme de Stanley Kubrick, 2001 – Uma odisséia no espaço e aí você vai entender) e faz parte de um processo evolutivo das necessidades humanas dando valores a novos signos e funções. Falar em décadas é de interesse antropológico”.

Nesse processo, o Brasil sempre teve uma tendência de assimilar culturas alienígenas. “Somos colonizados desde 1500, não há interesse pelos brasileiros de sustentarem um desenvolvimento cultural próprio. Não há este estímulo nem pelas instituições governamentais, culturais, industrial e comercial, estamos sempre seguindo as tendências de fora, por exemplo, hoje estamos ‘californicados’ pela cultura visual americana”.

Assim mesmo, entretanto, alguns designers conseguiram fazer alguma coisa de qualidade reconhecida no mundo todo. Sobre as revistas Senhor e Realidade, Wollner diz que “tudo é esteticamente muito bonito, mas não há projeto estrutural de revista como hoje nós entendemos projeto”. No segmento de capas de disco, tem-se a mesma função de capas de livros e de embalagens de sabão em pó: “São decorativas e seguem uma tendência de mercado bastante efêmero. Não é como as capas de jazz da (gravadora) Verve, com uma linguagem de identidade cultural visual, o comportamento da Verve é de design, se é que dá para entender”.

João de Souza Leite discute, no capítulo “De costas para o Brasil: o ensino de um design internacionalista”, o exemplo emblemático da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi), que marcou o início da profissão como se conhece hoje. Segundo Wollner, percebe-se que a tendência é ainda cultivar as escolas de artes e ofícios, principalmente francesas do século passado, que regem as faculdades de arquitetura e de design do Brasil.

E avalia, bem a seu estilo de sinceridade: “A escolha são de nossos doutores, que não deixam desenvolver o processo evolutivo da profissão de design em nível internacional. Criticam a cultura de design das escolas alemãs que é adotada pelas mais importantes escolas do mundo. É para voltar ao artesanato? Por quê? A FAU/USP atualmente está tentando um caminho, vamos ver”.

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