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Ficção

O destino bate à porta

É escritor, autor de Que fim levou Brodie? (Editora Record, 1996/Prêmio Nestlé de Literatura de 1997), Braz, Quincas & Cia. (Companhia das Letras, 2002), Não perca a prosa (Versal Editores, 2003) e Memorial de Buenos Aires (Companhia das Letras, 2006).

NELSON PROVAZIDizem que ninguém foge ao destino, porque ele sempre bate à nossa porta, mas juro que nem pensava nisso naquela manhã chuvosa de sábado, quando fui atender a campainha da porta e vi pela frente aquele homem magro, de terno surrado e encharcado, sorrindo para mim, em meio ao aguaceiro. Ele parecia faminto, e acima de tudo cansado, velho de séculos: alguma coisa além do terno já desbotado e dos cabelos completamente brancos denunciava sua ruína. Impressionado com seu estado, convidei-o a entrar e repartir comigo o café da manhã, que eu ainda não tinha tomado.

Enquanto devorava três panquecas, duas baguetes e meio pote de geléia de morango (acompanhado de muito café-com-leite), o estranho e voraz visitante contou-me que vendia sapatos masculinos importados (e apontou a mala molhada que descansava no saguão) e conseguia sustentar a família oferecendo seu produto de porta em porta, nos bairros de classe média alta como o meu. Num país de funcionários públicos e economia acanhada, não havia muitas alternativas para homens de sua idade, justificou-se.

Comovido com sua história, cheguei a elogiar seu empenho, sua dignidade de ancião, e até me dispus a comprar dois ou três pares de seu produto, antes mesmo que ele os tirasse da mala para me mostrar. Foi quando a expressão de seu rosto mudou ? e ele então me pareceu outro homem, na verdade mais velho e ainda mais cansado do que o primeiro:

“Tem certeza de que está mesmo interessado em comprar meus sapatos?”, ele me perguntou sustentando no ar a caixa retangular de papelão, sem abrir. “O senhor me acolheu tão bem em sua casa que vai ser impossível, para mim, insistir nesta farsa…”

Convidei-o então a se sentar comigo no sofá mais confortável da sala de estar, e deixei que falasse. E ele falou:

“Sou capaz de enganar o demônio, mas nunca faria isso com um moço gentil e generoso que me deu acolhida, como o senhor.”

Fez uma brevíssima pausa e prosseguiu:

“Na verdade, meu jovem, eu não vendo sapatos ” e, se permitir que eu conte minha história terrível, logo irá entender. Sou biólogo, ou pelo menos pretendi ser um dia. Alguém com uma inteligência imerecida e uma vaidade sem limites, que pensava poder brincar de Deus, manipulando a vida humana. Cometi o pecado imperdoável de achar que o ser humano era uma criação imperfeita, e pretendi que poderia melhorá-lo…

“Numa época em que experiências assim eram coisa de ficção científica, ousei fazer de meu laboratório de pesquisas a sucursal do Inferno. Não pretendo cansá-lo com detalhes: digo-lhe apenas que nossas experiências envolviam o código genético humano, aqueles famosos 23 pares de cromossomos (o senhor deve ter ouvido falar, nas aulas de biologia do ginásio), onde está contida toda a informação para a construção e funcionamento do organismo humano. Já dá para imaginar minha ousadia, não é”

“Foram anos de pesquisas em surdina, interferindo como um demiurgo na estrutura em dupla hélice do DNA, manipulando cada uma de suas bases. Enfim, sem detalhes técnicos… Para ser breve, posso lhe garantir que a sandice logo envolveu também a manipulação de espermatozóides e óvulos… Deus do céu! Tenho até vergonha de me lembrar, mas sei que a memória é um castigo implacável que vai me seguir até o fim.

“Em resumo, meu caro: depois de anos de experiências malditas naquele laboratório de trevas, criei (ou julguei ter criado) a matriz aperfeiçoada do Homem, a ponte para o Super-Homemcomo queria aquele pensador alemão delirante, devorado pela sífilis. Um Homem novo, superior, mais inteligente e provavelmente destinado a grandezas inéditas… Não era pouco, convenhamos, para um pesquisador como eu, sempre rejeitado pelas Academias de Ciência do país.”

Percebendo minha indisfarçável impaciência, o homem procurou ser ainda mais sintético:

“Que destino dar àquela descoberta” Como eu tinha que ser rápido, contei com a conivência de um ginecologista amigo, acostumado ao uso de hipnose nas consultas e exames de suas clientes mais difíceis. O senhor já deve ter imaginado: consegui inocular nada menos do que dez mulheres casadas, com a dezena de “matrizes avançadas” que consegui produzir, antes que a suspeita (nunca a certeza!) dos decanos da universidade levasse à destruição de meu laboratório e à minha sumária demissão. Nunca se soube, oficialmente, quem afinal invadiu meu gabinete na calada da noite e em questão de hora, incendiou minhas anotações, minhas pesquisas, minhas matrizes ainda embrionárias, meus sonhos, minha arrogância… O fato é que, da noite para o dia, vi-me privado de tudo “menos da curiosidade obstinada de tentar acompanhar o destino das minhas Novas Criaturas.

“Pois ali começou também meu castigo! Nove meses depois, lá estava eu tentando acompanhar, a distância, o nascimento de cada uma de minhas crias diabólicas. Mas não ousei ir além da terceira, depois de constatar toda a extensão do meu crime: por algum erro de cálculo, todas aquelas criaturinhas, aparentemente saudáveis, vinham ao mundo com o defeito aberrante de seis dedos em cada pé! Na época (já faz tanto tempo…), os jornais chegaram a noticiar a coincidência, mas não foram além de atribuir a alguma fatalidade divina ou a especulações em torno do uso de algum medicamento indevido durante a gravidez. Mas eu, que sabia a origem daquilo, não pude suportar a culpa sem tamanho” e literalmente enlouqueci. Saí pelas ruas aos gritos, avançando em todas as mulheres grávidas que encontrava no caminho. Pelo menos foi o que me contaram mais tarde os psiquiatras da Casa Verde, no dia em que finalmente pareci retornar à consciência. Tinham-se passado vinte anos!?

O velho engoliu em seco e continuou, ainda mais sintético:

“Nunca soube como reparar o meu erro. Sei, simplesmente, que hoje é tarde demais! Por isso, à falta de outra idéia, e sem coragem para qualquer iniciativa mais prática, saio todos os dias disfarçado de vendedor de sapatos, na esperança de encontrar afinal, diante de mim, um pé com seis dedos – um de meus filhinhos monstruosos. Confesso que não sei o que faria: ainda não consegui encontrar nenhum deles… Estou vendo sua expressão incrédula, e não posso culpá-lo por isso…?

Aproveitei seu silêncio e pedi licença para me retirar por um instante. Fui até meu quarto e, na segunda gaveta da cômoda, peguei o pequeno revólver até aquele dia ainda sem uso…

Eu não sabia no que acreditar de tudo aquilo. Sentado na beira da cama, sabia apenas que, se tirasse os tênis e as meias, iria ver mais uma vez (embora dessa vez com outros olhos) meus absurdos pés, cada um com seis dedos – fontes de meus complexos infantis, de minha vergonha de adolescente e de minha solidão de adulto. Fiquei ali um bom tempo, alisando a arma, confrontando idéias de vingança, entendimento e perdão, sem saber ainda o que fazer…

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