O dia 29 de maio de 1919 amanheceu nublado em Sobral, no Ceará. Aos poucos, porém, as nuvens se dissiparam e um clarão entre elas se abriu. A movimentação de pessoas e equipamentos era intensa em torno do Jockey Clube da cidade, onde astrônomos vindos do Rio de Janeiro e de Londres se preparavam para observar e registrar um fenômeno que trocaria por alguns minutos o dia pela noite. Pouco antes das 9 horas da manhã, o disco da Lua começou a sobrepor-se ao do Sol, encobrindo-o por completo minutos depois. O eclipse total do Sol em Sobral entrou para a história da ciência por ajudar a comprovar experimentalmente um pressuposto científico previsto na teoria da relatividade geral, publicada quatro anos antes pelo físico alemão Albert Einstein (1879-1955): matéria e energia distorcem a malha do espaço-tempo, podendo também desviar a trajetória da luz que viaja por ele.
Para registrar o eclipse e verificar se o campo gravitacional do Sol entortava a luz das estrelas, os astrônomos das expedições brasileira e inglesa usaram placas fotográficas de vidro, agora resgatadas e restauradas por pesquisadores do Observatório Nacional (ON), no Rio de Janeiro. Foram encontradas 900 delas em caixas guardadas na biblioteca, das quais 61 registram o fenômeno e os momentos que o antecederam na pacata cidade cearense. As placas, que medem 24 centímetros (cm) por 18 e 9 cm por 12, são cobertas por uma emulsão com sais de prata sensíveis à luz. Elas estavam em uma área de obras raras da biblioteca do ON e ainda não haviam sido melhor examinadas. A maioria está bem preservada e mostra com nitidez a imagem da Lua encobrindo o Sol e o telescópio refrator astrográfico — usado para observar o eclipse. O astrônomo Henrique Charles Morize, então diretor do Observatório Nacional, por meio de um artigo publicado dias antes em um jornal local, havia pedido às pessoas que acompanhassem o fenômeno em silêncio, sem soltar fogos de artifício, para não prejudicar a observação do eclipse e a qualidade das fotografias.
Morize coordenou os trabalhos da expedição inglesa e chefiou a equipe brasileira em Sobral. Um dos objetivos da missão era fazer observações espectroscópicas da coroa solar. Durante o fenômeno, várias chapas fotográficas foram tiradas sucessivamente a partir de câmeras acopladas a telescópios, registrando a posição das estrelas próximas à borda do Sol. O eclipse durou exatamente 5 minutos e 13 segundos.“A análise das imagens registradas nas placas ajudou, mais tarde, a esclarecer melhor as leis físicas que regem o movimento dos corpos celestes”, diz o astrônomo Carlos Veiga, pesquisador da Coordenação de Astronomia e Astrofísica e chefe da Divisão de Atividades Educacionais do ON. Durante um mês, o astrônomo e outros bibliotecários trabalharam na recuperação das placas fotográficas de vidro, em que estão registradas as imagens do eclipse. Um trabalho lento, segundo ele, dada a fragilidade das placas — algumas têm as pontas quebradas.“As placas agora estão em caixas especiais e embaladas em um papel próprio para esse tipo de material, evitando reações químicas que possam danificá-las”, explica. Veiga e sua equipe pretendem digitalizar o material e disponibilizá-lo para consulta no site do Observatório Nacional.
O eclipse de 1919 foi observado ao mesmo tempo na ilha de Príncipe, na África Ocidental, por outra equipe de astrônomos ingleses. O mau tempo, contudo, prejudicou a qualidade das imagens. Em algumas placas, as estrelas apareciam de forma mais clara, em outras, sumiam em meio ao céu encoberto. Em Sobral, considerada uma das melhores regiões para a observação do fenômeno, o céu estava limpo durante o eclipse e as placas registraram 12 estrelas, usadas mais tarde como referência para medir o ângulo de desvio da trajetória de seus feixes de luz. Esse efeito, chamado deflexão da luz, havia sido previsto pela relatividade geral de Einstein: um feixe de luz vindo de uma estrela teria sua trajetória encurvada, ou desviada, ao passar em regiões com campo gravitacional muito forte. Esse desvio na trajetória da luz, segundo os astrônomos, faria com que as estrelas observadas fossem vistas em uma posição aparentemente diferente de sua posição real; sua luz, ao passar próximo ao Sol, seria desviada 1,75 segundo de arco, de acordo com a teoria de Einstein.
Os astrônomos em Sobral pretendiam medir um pequeno ângulo formado por essas duas posições. Era uma oportunidade única, uma vez que o eclipse permitiria, por alguns poucos minutos, fotografar as estrelas no fundo do céu mais próximas da borda do Sol, a uma distância de 150 anos-luz da Terra —cada ano-luz equivale a cerca de 9,5 trilhões de quilômetros. Uma das estrelas analisadas, a Hip 20712, era forte candidata para confirmar as previsões do físico alemão. A medição do ângulo de desvio da trajetória da luz não foi uma tarefa simples. As imagens de muitas estrelas estavam imersas no halo difuso causado pela luz do Sol ou encobertas pelo disco da Lua, ao mesmo tempo que a turbulência atmosférica prejudicava um pouco a qualidade das fotografias. A equipe inglesa ficou em Sobral até julho daquele ano para fotografar o mesmo campo estelar à noite, sem a influência gravitacional do Sol. A ideia era comparar nas duas imagens as posições das estrelas mais próximas de sua borda.
A confirmação das ideias de Einstein veio meses depois. Astrônomos reunidos na Royal Astronomical Society, em Londres, no dia 6 de novembro de 1919, após avaliarem os resultados obtidos a partir da análise das placas fotográficas feitas em Sobral e na ilha de Príncipe, concluíram que a teoria da relatividade geral estava correta. O resultado final das observações feitas na ilha de Príncipe apresentava um desvio médio de 1,6 segundo de arco, enquanto nas de Sobral tinham um desvio de 1,9 segundo de arco, quase duas vezes o valor estimado na teoria gravitacional do físico inglês Isaac Newton (1643-1727), elaborada e apresentada dois séculos e meio antes. Consideradas as margens de erro, Einstein estava certo. “Com isso, a teoria da gravitação universal de Newton passou a ser um caso particular da relatividade geral de Einstein”, explica Veiga.
“Podemos entender as chapas fotográficas produzidas em Sobral e na ilha de Príncipe como um momento fundamental na história da ciência no século XX, quando as ideias propostas na teoria da relatividade ainda eram encaradas com desconfiança”, diz o físico e historiador da ciência José Luiz Goldfarb, do Centro Simão Mathias da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Desafiar as ideias da mecânica clássica, desenvolvidas a partir de Newton, enfrentava fortíssima oposição, uma vez que as proposições de Einstein e de outros cientistas faziam com que nossa compreensão do mundo fosse completamente redesenhada.” Para ele, preservar as placas fotográficas é manter viva a memória das transformações que se deram na ciência no início do século XX e que ainda influenciam a maneira como vemos o mundo atual.
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