Sair do laboratório às 5 da tarde era um ato que envolvia um conjunto de procedimentos cautelosamente preparados de modo a manter o tempo sob controle. Às 4h30 (minutos antes ele levantaria os olhos do microscópio para o enorme relógio branco na parede) uma agenda de pequenos passos começava a mover suas páginas na sua mente, uma atividade de cada vez, e os cromossomos manchados diante de seus olhos no foco da lente pareciam indóceis; sim, trata-se de outra trissomia, o que ele já sabia antes mesmo de olhar, mas é preciso fazer tudo de novo a cada procedimento de modo a manter a natureza sob estrito controle, ele fantasiou, já um pouco tenso, porque o grande ponteiro à frente avançava resoluto para o número 8, e ele estaria, quem sabe, 40 segundos atrasado, e sorriu, supondo que alguém soubesse de sua previsibilidade, algum microscópio gigante que o visse assim como ele vê o cromossomo (reproduções espelhadas uma na outra até o infinito como na estampa de um óleo de soja de sua infância) e o ponteiro avançou de novo, uma estocada silenciosa de um segundo. Ele anotou o resultado da lâmina, exame número 39.02.977.07, a senha do técnico responsável, registrou POSITIVO PARA e a coluna da direita já dispunha doze opções, das quais ele escolheu a terceira, e retirou a lâmina para depositá-la nos encaixes do lado direito, o número sobre o código de barras, mas desta vez não pegou a próxima lâmina, embora, no limite, houvesse tempo para isso, ele especulou – mas não, o ponteiro avançava, agora faltavam 16 minutos para as 5 horas e ele imaginou o que dizer hoje, se é que algum dia teria coragem de dizer algo. Nada. Um homem sem palavras. Melhor não pensar, e ele finalmente pensou em Mariela, o rosto tímido oculto na sombra da própria mecha de cabelo que lhe caía na testa, teimosa, sempre que fitava alguém, o gesto de levar para o alto um pedaço de si mesma que teimava em cair de volta aonde estava, para ocultá-la. O ponteiro avançava mais rápido agora, ele deduziu, o coração batendo – nesse exato instante ela está fechando a porta de sua sala no outro prédio, volta-se para um lado do corredor, dá quase um passo completo e lembra-se que deve ir para o outro lado, e ele sorri, imaginando o que nunca viu, colocando a capa sobre o microscópio ao mesmo tempo que confere os minutos restantes no relógio impiedoso – ele deve desligar o computador, e isto está 2 minutos atrasado hoje, o que vai exigir um passo estugado ao longo do corredor onde espera não encontrar ninguém para dizer nada porque terá ainda dois lances de escada a enfrentar (melhor que o elevador, que não tem lógica) e então – então ele conferiu o relógio uma última vez, tudo estava bem no melhor dos mundos e sentiu um manto de felicidade, o fim do trabalho, o encontro previsto, a ausência de chuva (há vários meses seu único inimigo, desorganizador, infernal – a chuva), e abriu a porta com a mão esquerda, o chaveiro na mão direita, mas havia esquecido, não as luvas (olhou para as mãos) – e isso angustiou-o como um chão que falta súbito – mas não, basta tirar o guarda-pó, é claro que há tempo; pendurou o guarda-pó e correu de volta à porta imaginando onde ela estaria agora, certamente avançando pelo também longo corredor para o pátio e dali para o caminho que ele vai cruzar como em tantas outras vezes, um espaço seguro de trinta metros em que isso é sempre possível, e depois eles se afastarão até o outro dia se ele não puder falar (e não vai falar, ele sabe). Ela agora está, talvez, esperando o elevador, ele calcula; não precisará ir tão rápido se não encontrar ninguém e não há ninguém à vista naquele horizonte estreito do corredor que ele vai palmilhando firme pensando pela milésima vez no que poderia dizer – algo como – assim, que não assustasse Mariela, o nome no crachá que ele uma vez flagrou milagrosamente numa pausa, em que ela levantava a mecha dos olhos enquanto a outra mão, o esmalte vermelho nas unhas, ajeitava alguma coisa na fivela do sapato azul-escuro enquanto a sombra dele resvalava no caminho estreito, assim meio de lado, para não esbarrar – assim como – mas ele é um homem sem palavras, ele só tem olhos, olhos exatos, capazes de reconhecer cromossomos, bacilos, proteínas, estafilococos, o que estiver na lâmina, com uma agudeza absoluta. O melhor: Rogério é o melhor. Naquele microscópio, ninguém bate o Rogério, ele ouvia no cafezinho, e se afastava, discreto. E rápido, ele é muito rápido também, e Rogério apressou o passo para ao mesmo tempo fugir da lembrança de si mesmo e não perder os seus trinta metros. Dizer, talvez: Eu trabalho ali. Ou então – e lhe ocorreu que não tinha plano para esta segunda parte, já vencida e dominada a primeira, que era justamente encontrá-la, tê-la praticamente ao alcance dos braços, a um palmo de seus olhos; descendo as escadas, sentiu essa nova angústia, a necessidade de uma sequência ou ele ficaria louco – era o que diziam, cara, você é muito maluco, e ele não achava graça, as outras pessoas são só desorganizadas, falta-lhe senso de humor, alguém lhe disse, e ele deu uma gargalhada falsa para provar o contrário. Ele sempre sorri, para dentro – as pessoas são muito óbvias, eu não, repetiu mentalmente, descendo as escadas degrau a degrau e imaginando Mariela a pisar nesse exato momento a pista de encontro, e ele lembrou como sempre andavam na mão dos carros, ele pela direita, ela também, e sempre fingiam – ele, pelo menos, corrigiu-se, ajustando o microscópio da própria alma para torná-la mais nítida – uma casualidade inexistente, um jeito ostensivamente falso de andar, como um soldadinho de plástico colocado ali olhando para o céu, mas é uma falsidade externa, ele se corrigiu de novo, já sentindo o vento no rosto quando passou pela porta automática e evitou o olhar de um conhecido, descendo sete degraus rapidinho e assumindo a pista de concreto que ia reta até o outro prédio, com o mesmo medo de sempre de erguer a cabeça e não encontrá-la, o mesmo pânico de que o espelho da casa não funcionasse mais e não lhe devolvesse o próprio rosto, mas alguma outra coisa, desconhecida; no quinto passo ergueu a cabeça e lá estava o vulto de Mariela vindo em sua direção, seriam aproximadamente quinze passos de cada um até que ela passasse por ele ajeitando a mecha, talvez, se ele tivesse sorte. Pressentiu o discretíssimo perfume de Mariela, às vezes mais forte, às vezes mais fraco, de acordo com a brisa, e lhe ocorreu súbito que ele seria o personagem central de um filme publicitário sob as ordens de um Grande Microscópio, mas esqueceu desse absurdo porque se cruzaram sem se olhar no mesmo passo de sempre – e cinco passos depois ele fez o que nunca havia feito – parou, e olhou para trás; e lá estava Mariela, simétrica, imóvel, e olhando para ele, a mão ainda levantando a mecha dos olhos, como para vê-lo melhor. Um décimo de segundo (ele calculou mais tarde) e voltou a andar, tonto, sob as pancadas brutas do coração, antecipando desde já a epifania de amanhã, um passo adiante, se não chovesse, e ele olhou para o céu.
Cristovão Tezza é escritor, autor de vários romances, entre eles O fotógrafo, Breve espaço entre cor e sombra, Uma noite em Curitiba, Um erro emocional e Beatriz. Com O filho eterno (2007) ganhou os mais importantes prêmios literários do país – o Zaffari & Bourbon 2009, Portugal Telecom 2008, São Paulo de Literatura 2008, Jabuti 2008, Bravo! 2008 e APCA 2007.
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