Maria Carolina SampaioA primeira vez que alguém se lembra de tê-lo ouvido contar essa história em público foi no dia de sua aposentadoria e ele tinha então os seus 67 anos de idade. Depois da merecida festa que os seus colegas fizeram, ele chamou a atenção de todos e, emocionado que estava, agradeceu a homenagem e ao final contou a história que iria determinar o seu cotidiano a partir de então.
“Bom, vocês sabem que a mãe do Jorge Luis Borges morreu bem velhinha…”
“A mãe do Borges? Morreu? O Borges da… da… contabilidade? E ninguém me diz nada?”, o Ernesto o interrompeu inconsolável, além de totalmente bêbado, e pôs-se a chorar convulsivamente.
Diante do silêncio estupefato de todos os presentes, alguém cochichou algo no ouvido do Ernesto, que só então sossegou. Restabelecida a ordem, e quebrando o constrangimento criado, o homenageado continuou.
“… pois bem, ela tinha 99 anos quando morreu. Em seu enterro, uma velha amiga do Borges chega-se a ele e diz que era uma pena que ela tivesse morrido com aquela idade, mais um ano e teria 100! Sabe o que o Borges respondeu?”
Não, ninguém sabia. O silêncio imperava.
“Vejo que a senhora é uma entusiasta do sistema decimal… foi a resposta do Borges” e, sem esperar reação alguma da audiência que ainda tentava assimilar a história, ele completou: “Eu também sou um entusiasta do sistema decimal. Nada me entusiasma mais hoje do que o sistema decimal! Vou homenageá-lo da forma que a mãe do Borges não conseguiu. Vou chegar aos 100 anos!”
Um aplauso unânime se juntou aos gritos de hurra! Mas a verdade é que, pelo estado em que ele chegou ao final da festa, vomitando e cambaleante, não havia quem apostasse um níquel sequer que ele conseguiria cumprir a sua promessa.
Mas o tempo passou e ele parecia cada vez mais jovem, cada vez com mais vitalidade. Fosse porque deixou de ir trabalhar naquele escritório insalubre por mais de dez horas diárias, todo o santo dia, fosse porque só então ele pôde se dedicar mais assiduamente às coisas que tanto gostava de fazer, o ponto é que ele foi ficando cada vez mais jovem. Muitos de seus amigos ficaram pelo caminho, um a um deixando de ouvir novamente esta história, a história que ele tanto gostava de repetir a cada aniversário seu. A mesma história, o mesmo entusiasmo.
Com o passar do tempo, os amigos foram se acostumando com ela, já fazia parte da festa de seu aniversário, assim como o Parabéns a você ou o bolo de chocolate com cereja. Na festa de aniversário de seus 78 ou 79 anos, um de seus netos resolveu puxar um pique-pique:
“E para o sistema decimal, nada?”
“Tudo!!!”
“E como é que é?”
E o pique, a partir de então, foi também incorporado às celebrações de seus aniversários.
Aos noventa, ele estava de namorada nova, já tinha enterrado suas duas ex-esposas, “as primeiras duas…”, ele dizia maliciosamente nas noites de pôquer, para deleite de seus amigos, sempre renovados na roda e cada vez mais jovens em comparação a ele. E saiu para viajar com ela por longos dois meses. Foi por esta época que todos os que o conheciam sabiam que ele iria sim conseguir cumprir o prometido em sua homenagem.
E, de fato, cumpriu. No dia em que completou 100 anos de idade, ele reuniu todos os seus amigos, os parentes, e até os só conhecidos. Como sua história já era parte do folclore da pequena cidade em que morava, apareceram muitas pessoas que ele sequer conhecia, foram só para poder cumprimentá-lo, participar daquela homenagem histórica ao sistema decimal. O jornal da cidade publicou uma matéria toda especial, fazendo um paralelo entre a vida dele e o desenvolvimento do sistema decimal, entrevistaram até um matemático famoso da USP. E, em um canto, um grupo de conhecidos acertava as contas de uma antiga aposta que fizeram sobre se ele chegaria ou não àquela data.
Quando o bolo especialmente confeccionado para a ocasião entrou na sala, um coral de crianças cantou, de surpresa e em primeira mão, o Hino do sistema decimal composto especialmente para a festa. O prefeito, que não pôde comparecer pessoalmente, mandou o seu melhor representante e a festa só ficou completa quando ele contou, mais uma vez, a história da mãe do Borges. Contou, desta vez, de forma tão emocionada que o próprio Borges, o da contabilidade, chorou de saudades de sua progenitora.
Mas só ele sabia do esforço que foi chegar a esse dia. Se ele parecia cada vez mais jovem e entusiasta com o passar do tempo, a verdade é que, nos últimos dois ou três anos, uma dúvida o atormentava diariamente. Toda manhã, ele se olhava no espelho e se perguntava por que é que se impunha esta meta, afinal, e se seria capaz de cumpri-la. Só ele sabia que o ânimo que demonstrava ao conversar sobre isso com as pessoas era apenas de fachada, cada vez mais falso, inseguro que estava. Só o espelho sabia o peso que o sistema decimal passara a ser para ele. Já estava cansado, sentia-se cansado e velho e ainda faltavam esses três, esses dois ou esse um ano, esses tantos meses, essas tantas semanas. Um dia, ele desabafou com uma amiga que, vez ou outra, trazia o seu almoço de domingo, mas ela não entendia o que o exasperava então. E o que o exasperava era a obrigação que ele se impôs tanto tempo atrás. Nestas horas, sentia medo de não poder cumpri-la, de morrer como um derrotado no final das contas, virar a eterna chacota dos sobreviventes, piada familiar nos almoços dominicais. Pequenas gripes, ele que nunca tivera nenhuma doença mais grave, traziam consigo sempre grandes preocupações, e a cada espirro, um sinal vermelho se acendia em sua mente. Sentia que não podia mais andar sozinho pelas ruas sem ser observado, percebia as pessoas falando dele a distância, se parasse de andar, por tolo motivo que fosse, parecia que todo o mundo também parava e segurava a respiração até ele se mover de novo.
Aquilo estava pesando e pesando cada vez mais.
Depois que o bolo foi cortado e ele recebeu os cumprimentos protocolares de todos, e depois de uns tantos discursos que teve que ouvir, ele olhou ao redor e, repentinamente, se sentiu aliviado. Com o peso de seus três dígitos nas costas, caminhou até o quarto que ele usava como escritório, sentou-se em sua poltrona de leitura e, na penumbra, sorriu o sorriso dos aliviados. E dormiu, e como dormiu, o sono dos justos, o sono dos centenários…
Flávio Ulhoa Coelho é diretor do IME-USP e escritor. Publicou os livros de contos: Contos que conto (1991), Ledos enganos, meras referências (1996) e Gambiarra e outros paliativos emocionais (2007).
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